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Um capital social que diz respeito ao recíproco reconhecimento entre os jovens agricultores e os demais agentes do campesinato, sobretudo, das organizações

Capítulo IV Os Jovens Agricultores e sua condição camponesa: inserção sócio profissional e as múltiplas formas de permanecer no campo

3) Um capital social que diz respeito ao recíproco reconhecimento entre os jovens agricultores e os demais agentes do campesinato, sobretudo, das organizações

sociais/sindicais e comunitário-religiosas, conferindo a posição publicizada destes jovens, ao lado de um pertencimento ou vinculação à rede de relações constitutiva do grupo e permitiria aos agentes e aos jovens mobilizarem proximidades e trocas materiais e simbólicas (BOURDIEU, 1989).

Quando olhada a trajetória de socialização destes jovens, observa-se que a posição de agentes investidos de distinção social técnica e política foi sendo reforçada e reproduzida pelas diversas posições atribuídas aos mesmos nos diferentes campos.

4.1.1 O destaque: A construção da distinção social A- A construção exterior ao grupo doméstico...

No campo das organizações sociais/sindicais e comunitário-religiosas, bem como no campo religioso e acadêmico, vê-se que desde a emergência da ‘crise da formação’ na década de 1990, a categoria jovens agricultores seria construída socialmente pela antecipação latente

de uma espécie de nova geração no campesinato, pois nestes jovens vem sendo projetada a expectativa de ‘dar continuidade’ à agricultura e às organizações sociais. Ideia que leva a pensar os jovens agricultores enquanto uma das categorias sociais para a reprodução do espaço das posições ou das propriedades distintivas que animam a possibilidade dos agentes “agruparem-se, mobilizarem-se ou serem mobilizadados” em função “[...] de uma lógica específica, associada a uma história específica, das organizações mobilizadoras – pela e para a ação política, individual ou coletiva” (BOURDIEU, 2007, p. 101).

O destaque seria construído também pelo reconhecimento específico atribuído à instituição CFR. Esta, no campesinato da Transamazônica, apresenta um lugar social também de distinção enquanto escola, seja em seu conteúdo, seja em sua forma pedagógica. Investida do papel de mediadora das espécies de capital em jogo na ‘crise da formação’, sobretudo, o capital escolar com viés técnico e político (conforme se viu no capítulo 2) tem fundamentado o conteúdo da CFR e estaria cumprindo o efeito de codificação, ou seja, de dar os contornos à ação dos agentes nela socializados naquela conjuntura rotinizada e ‘ambientalizada’.

Quanto à forma escolar, para este lugar de formação distinta, os diversos agentes do campesinato, via socialização comunitária e, principalmente, societária, envolveram os egressos na rede de relações que teria conferido a posição publicizada aos mesmos, cujo conteúdo também atribui capital social aos CFRs, seja pela atuação conjunta dos agentes mediadores da presença na “cidade política” do campesinato organizado (STR, MPST/MDTX, FVPP, LAET, Universidade e Igreja Católica), ou ainda por fatores que os próprios agentes da CFR evidenciam: “tinha outro fator diferente das escolas tradicionais: levava os jovens pra conhecer o que era um gabinete de prefeito, sindicato..., tudo o que você tinha numa comunidade ou município.” (Liderança local/CFR. Ex-coordenador da CFR). A esta característica da forma escolar da CFR subjaz um conteúdo social (aliado ao conteúdo curricular formal/escolar) no trabalho didático que aponta desdobramentos marcadores da especificidade desta escola e daquelas espécies de capitais apresentadas pelos jovens agricultores.

A trajetória de construção da distinção social dos jovens agricultores afigura-se como uma ampliação do capital social das famílias CFRs. Nas turmas egressas estudadas, o processo e critérios de admissão de jovens apontam como fundamental a participação das famílias e/ou dos jovens em organizações comunitário-religiosas e/ou sindicais. Na amostra dos 31 ex-alunos entrevistados, todos antes de ir para a CFR tinham um papel ativo nas organizações comunitário-religiosas, principalmente, através de Grupos de Jovens da igreja católica e da atuação como dirigentes comunitários. Também participavam das reuniões e

demais ações ligadas ao STR em suas comunidades e em Medicilândia – ocorrência comum entre os alunos com mais idade, notadamente, das duas primeiras turmas. As falas a seguir ilustram estes princípios e os investimentos feitos pelos jovens na CFR, no sentido de esta escola mediar a continuidade das suas ações na comunidade, organizações sociais e na agricultura:

Já em 95 a gente começa, 94 por aí assim, começa a discussão da Casa Familiar Rural né, e eu já tinha um certo trabalho de envolvimento né nos movimentos sociais, sindicato, essas coisa, e quando surgiu: “- é esse um projeto que me interessa”, e daí a gente começou a discutir, então Medicilândia foi o projeto pioneiro, começou a discussão primeiro e já em 95 né a gente começava a 1ª turma de Casa Familiar Rural dia 6 de novembro de 95, e eu fui porque, duas coisa: uma era alternativa de estudar que eu tinha e outra por que era uma formação que ia me servir pro meu futuro que era agricultura né [...] (Ex-aluno 2/CFR -1ª turma, 37 anos. Pai 7- Colono Pioneiro).

[...] Nós tinha moto, eu ia [pras reuniões do STR em Medicilândia] mais ele [o pai126];eu sempre gostei dessas coisas: era Grupo de Jovens, de igreja, de sindicato

[...] Ah! Eu fui coordenador do Grupo de Jovem, eu era... vixe Maria! [...](Ex-aluno 11/CFR -1ª turma, 35 anos. Pai 1: Colono Pioneiro).

Eu era representante da comunidade e de jogos. A gente saía, vinha pra cá [Medicilândia], tinha Uruará. Aí tinha as palestras que a gente chegava e conversava [...] Geralmente a gente falava sobre educação. As palestras que realmente a gente fazia era sobre as pessoas, os crimes que hoje nós vivemos. Realmente as palestras eram essas. (Ex-aluno 4/CFR-5ª turma, 24 anos).

Sim, eu acho que antes mesmo eu já tinha uma visão de quase liderança [...]. Primeiramente eu já participava da igreja com a família, pai, mãe e tudo. Na era de 2002, eu comecei a me aprofundar mais na questão de igreja mesmo; outras organização nem tanto, e aí foi o tempo depois, em 2004, que eu fui pra lá [pra CFR] e aí hoje mesmo eu tô mais com questão religiosa [...] Aqui mesmo eu sou dirigente da igreja na comunidade. (Ex-aluno 5/CFR-5ª turma, 21 anos. Pai 5 – 2ª Geração dos Colonos Pioneiros).

B- A construção no interior do grupo doméstico: antecipação da sucessão... O olhar sobre a trajetória de vida das famílias CFRs – refiro-me aos pais que tiveram filhos selecionados para estudar nesta escola –, tal como demonstram os dados abordados no 3º capítulo, sugere a antecipação e/ou o reforço do efeito de distinção social dos egressos da CFR, pois estaria ligada – tal antecipação – às regras de sucessão no lote, talvez, também antecipadas e reformuladas pela necessidade do capital escolar/técnico no gerenciamento do lote. Neste caso, dois aspectos caracterizadores da posição dos jovens agricultores na família de orientação se destacam: 1) Os interesses que construíram os qualitativos orientadores da escolha do filho CFR (ser solteiro; de preferência do sexo masculino; ter habilidades de estudo e trabalho na agricultura e vontade e/ou habilidade do filho para atuar nas organizações

sociais); 2) a posição dos filhos escolhidos na escala familiar, cuja amostra evidencia que em 84% dos casos o filho escolhido ficou entre o primeiro e o segundo do sexo masculino127.

Nestes casos, observa-se que o lugar do futuro herdeiro transmitido para o segundo (ou terceiro) filho, deu-se pela ausência do filho primogênito que já havia casado ou migrado para a cidade. Vejamos a seguir a narração de um processo de escolha em que se afigura uma construção da posição do segundo filho como primogênito da família, dada a saída dos demais filhos do lote paterno, e os investimentos do pai no “primogênito substituto” para sucessão no lote, em detrimento das filhas:

Aí ele [o pai quando da escolha para o filho ir para a CFR] falou que era

interessante pelo fato de eu tá estudando e morar lá no lote, porque assim, nós era quatro irmão homens, quem morava realmente lá com eles era só eu, os outros não ficaram muito tempo lá no lote com ele. O meu irmão mais velho saiu com dezesseis anos, depois ele foi pro exército e aí nunca mais voltou lá pro lote, pra ficar lá. Ele e os outros dois foram da mesma forma, eu é que fiquei lá mais tempo com ele lá fui eu, dos homens [...] então assim, esse meu outro irmão

mais velho, ele morava em Belo Horizonte [...] aí o outro era muito jovem e o

outro nunca se interessou muito por esses estudos da CFR. [...] Na verdade quem era pra ir [para a CFR] era uma irmã minha, a mais velha, ela queria, mas

só que assim, como era pra ficar uma semana fora de casa em regime de internato pra lá, aí dificilmente um pai iria aceitar isso [...] até hoje as turmas, a maioria,

são de homens. (EX-aluno 3/ CFR – 1ª turma, 33 anos. Pai: Colono Pioneiro).

Estes são também importantes indicadores de que a distinção social destes jovens resguarda relação com a posição de ascensão econômica das famílias – mais precisamente com as respostas dadas pelas mesmas para assegurar a sua capacidade de reprodução. Isso se faz sentir principalmente na seleção dos filhos para estudar nesta escola com aqueles qualitativos e interesses que apontam a sucessão no lote e/ou a sucessão no seu gerenciamento enquanto atividades contíguas àquelas de dirigentes ou de empregados em atividades agropecuárias, as quais os filhos poderiam desempenhar sob a condição de conjugarem estas atividades remuneradas com as responsabilidades de gerenciamento do lote.

Assemelha-se este possível regime sucessório à tradicional relação entre progenitura e direitos sobre a terra nas sociedades campesinas, nas quais, tal como a estudada por Bourdieu (2004) em Bearne, antiga província francesa, as transações econômicas em torno da sucessão conduzem à escolha do filho que apresenta as melhores condições ou competências para assumir o dever de atuar como proprietário (para além do direito de propriedade), dada a função social da propriedade familiar que envolve tanto o patrimônio traduzido em terras e

127 Sendo que em 61% dos casos (19 casos), o filho escolhido foi o primeiro do sexo masculino e em 23% (7

casos) a escolha foi o 2º filho. Nos casos restantes, que compõem 16% da amostra, observou-se o seguinte: em 1 caso, foi o 3º filho homem; em 2 casos, foi 6º filho homem; em 1 caso, foi o caçula de 12 irmãos; em 1 caso foi a 2ª filha mais velha.

renda, quanto o que se poderia definir como um patrimônio (ou capital) social das famílias que advém de seu “nome”, de sua reputação, de seu poder simbólico em um determinado grupo, pois é “[...] la salvaguarda del patrimônio, indisoluble de la continuidade de la estirpe [...]”. Assim é que:

[...] el derecho de primogenitura y la condición de heredera (heretère) pueden recaer em uma hembra no significa, en absoluto, que el uso sucesorio se rija por la igualdad entre los sexos, lo que contradiría los valores fundamentales de uma sociedad que otorga la primacía a los varones. En la realidad, el heredero no es el primogênito, hembra o varón, sino el primer varón, aunque llegue em séptimo lugar [...]. Si se prefere que el hedero sea um varón, es porque así se asegura la continuación del apellido y porque se considera que um hombre está mejor capacitado para dirigir la explotación agrícola [...] cuando el herdero o la herdera abandonan la casa y la terra, pierden su derecho de primogenitura porque este es inseparable de su ejercicio [...]. Se pone así de menifesto que este derecho no está vinculado a uma persona concreta, hombre o mujer, primogénito o segundón, sino a uma función socialmente definida [...]. (BOURDIEU, 2004, pp. 24-5).

No campesinato da Transamazônica, notadamente no grupo estudado, a função social do filho no qual se investe a sucessão do patrimônio da família, possivelmente atribuída ao filho CFR (portanto, o varão escolhido), parece assim inscrever-se em um costume sucessório em que o estudo na CFR se incluiria (de forma não tradicional) estrategicamente a fim de reproduzir a posição das famílias (que são também a base das organizações sociais) em duas direções: a primeira, no âmbito das unidades domésticas, em que se assiste à incorporação da ideia do agricultor profissional (estudado e habilitado com técnicas agrícolas adequadas ao tipo de uso que estes herdeiros precisam fazer da terra: recuperá-las e torná-las produtivas pelo uso da agricultura intensiva e ‘ambientalizada’). A segunda, também de forma não tradicional, incluiria nas expectativas das famílias a possibilidade destes filhos escolhidos – possíveis herdeiros – trabalharem (portanto, assalariarem-se) como técnicos agrícolas, assumindo, no entanto, o gerenciamento do lote, orientado pelos saberes técnicos.

Neste caso de incorporação do estudo e da possibilidade do filho herdeiro empregar- se (possivelmente conjugando atividades no campo e na cidade) – elementos não tradicionais da sucessão nas sociedades campesinas – seria uma conseqüência das crises que geraram a necessidade da escola CFR, notadamente, a ‘crise dos sistemas de produção’ e ‘crise da base’ que fragilizam a reprodução do grupo (?). Desta forma estariam estas transformações – o estudo, o tornar-se um dirigente e o tornar-se um técnico agrícola oriundo da coletividade

camponesa e aí vivendo organicamente – sendo condição de possibilidade para a manutenção do grupo estudado (?). 128

4.2 As diversas formas de permanecer no campo e as práticas em que se manifestam a distinção social dos jovens agricultores

A posição de destaque dos egressos da CFR afigura-se como uma espécie de crédito depositado nestes jovens, que é objetivado em suas formas de pensar, sentir, perceber e transmitir a trajetória e a posição da classe da qual fazem parte; créditos estes acionados conforme as oportunidades de inserção social – assim fazem crer as características dos jovens agricultores expostas a seguir.

As trajetórias individuais destes jovens, no entanto, são diferenciadas, de modo a configurar diversas posições, segundo o volume e a estrutura daquelas espécies de capitais incorporados, para o que influenciaram os diferentes espaços e agentes nos quais/com os quais estes jovens puderam interagir, principalmente após a CFR, bem como os diferentes meios – como capital social e econômico – a eles possibilitados, seja pelas famílias, seja pelas organizações sociais/sindicais e comunitário-religiosas.

Assim, trata-se agora de jovens agricultores que têm publicização e legitimidade no interior do grupo ou coletividade camponesa (e também na relação com a sociedade envolvente). Porém, percebe-se que há clivagens internas no seio desta categoria social, sobretudo na relação destes jovens com o campo e a cidade, com a terra e com o trabalho agrícola, bem como com a atuação política nas organizações sindicais e comunitário- religiosas –, ainda que ocupem estruturalmente a mesma posição de destaque.

A fim de traçar uma caracterização atual dos 70129 jovens agricultores em seus

modos de vida e inserções sócio-profissionais, tomando-se como critérios o vínculo de

128 As transformações nas sociedades campesinas para a manutenção de sua capacidade de se reproduzir parecem

ser mais comuns do que se possa imaginar, levando-as, em situações de crise, a incorporar como tradição o que antes era condenado. Um exemplo desta característica é observado na sociedade campesina estudada por Bourdieu (2004), na qual o celibato (antes condenado tanto quanto a emigração) dos jovens passou a ser incorporada pelo costume sucessório. O celibato foi introduzido como estratégia de reprodução das famílias, modificando as trocas matrimoniais, dado um quadro de crise desta sociedade após a Segunda Guerra Mundial: os dotes contaram cada vez menos nos matrimônios; profunda transformação de valores como a queda da autoridade paterna e a conseqüente ida dos filhos primogênitos para as cidades; instrução das mulheres e sua emigração para as cidades; queda da natalidade, etc. Assim o lugar do celibatário na família foi sendo construído como algo desejado e introjetado pelos candidatos à sucessão, constituindo sua hexis corporal (torpeza, timidez em relação às mulheres) e sua ética (apego aos valores tradicionais da sociedade campesina; pouca instrução; habilidades para se tornarem “os cabeças da casa”).

129 Tal como já exposto na introdução, trabalho nas análises dos dados de pesquisa com informações alusivas a

dois números: os referentes ao público total de egressos da CFR (70 jovens) que, por hora, são abordados neste trecho do capítulo, e com os 31 jovens, com os quais foram realizadas entrevistas aprofundadas.

residência no meio rural e trabalho na agricultura, bem como as interações com o campo (tendo em vista a finalidade da CFR e das famílias de manter os jovens no campo), é possível classificá-los a partir dos seguintes grupos ou tipos:

Tipo 1: Campo. Diz respeito aos 47 jovens que estão morando no meio rural

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