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CAPÍTULO III – Opções metodológicas para as três escalas de análise

PARTE 2 – Análise comparada da relação escola-família

4.2. Capital social: a definição e utilização no contexto educativo

O termo capital social foi introduzido na literatura científica por Glenn Loury (1977) como sugestão do autor para ajudar a explicar como a origem social de um indivíduo pode ter influência sobre o processo de aquisição de recursos obtidos através da escolarização. O termo foi depois utilizado por Pierre Bourdieu (1970), como sendo uma das componentes objetivas da “bagagem” que um indivíduo adquire ao ser criado numa família e comunidade específicas, e que determina o seu percurso escolar. O autor definiu capital económico como os bens e serviços, o capital cultural como o conjunto das informações sobre o mundo (das artes, do desporto, do domínio da língua, dos recursos disponíveis nos países e nas comunidades, do meio profissional, do meio escolar e outros) e o capital social como os recursos relacionados com a posição dos atores em grupos sociais específicos onde os indivíduos se relacionam e se reconhecem. Capitais aos quais cada indivíduo tem acesso de acordo com a posição social da sua família (Bourdieu, 1983).

O conceito adquiriu maior visibilidade, sobretudo na área da educação, através da investigação de James Coleman (1988) que definiu capital social como recurso disponível aos indivíduos e/ou grupos, que é construído nas interações e redes sociais nas quais participam, participação através da qual esperam obter ganhos pessoais, sociais ou económicos. Para ambos os autores, o capital social gera-se a partir da densidade das relações no interior do grupo, afirmando que será maior o capital social de um indivíduo que pertence a um grupo onde a densidade das relações é maior (Bourdieu, 1983, 1998; Coleman, 1990).

Em oposição à definição de capital social como um recurso que os atores podem mobilizar nas redes sociais a que pertencem, Robert Putnam (1995a; 1995b) fala em capital social como a “cola” que faz os membros de uma comunidade sentir-se parte da mesma, cumprir as regras e normas sociais, confiar nas ações dos outros para a prossecução de objetivos comuns e, consequentemente individuais, na expectativa de que alguém do grupo fará o mesmo por si quando necessário.

O mesmo autor considerava o associativismo uma montra da qualidade do capital social numa sociedade democrática. Um pensamento influenciado pela teoria de Tocqueville (2004 [1888]) para quem a liberdade nas sociedades democráticas está intimamente relacionada com o respeito pelas leis e normas e com a responsabilidade individual traduzida pelo exercício da cidadania (expresso através da pertença a associações formais e informais através das quais os atores assumem responsabilidade sobre os vários aspetos da sociedade). Desse modo, Putnam (2000) tentou perceber o porquê da diminuição da participação política, social e cívica da sociedade americana a partir da década de setenta do século passado, através da análise do número de associados nas estruturas associativas formalmente constituídas com o objetivo de explicar as razões da diminuição dos laços sociais que então se verificava naquele país. Como possíveis motivos para a diminuição do capital social apontou a disseminação da ideia de individualização, a crescente mobilidade social e as transformações demográficas, fenómenos que contribuíam para a menor participação em associações e para a diminuição do sentimento de confiança entre atores (Putnam, 2000). No entanto, na sua análise não teve em conta que podem existir formas de associação e de mobilização entre atores de carácter informal, as quais são mais difíceis de identificar e estudar, mas que também traduzem capital social (Wellman, 2001).

Tal como Putnam, outros autores afirmam que tanto as associações transversais entre cidadãos, como as associações entre cidadãos e as instituições públicas e privadas são importantes, transformando o Estado num elemento ativo na construção do capital social de um país ou região ao implicar os atores locais no futuro da sua comunidade (Harriss, 2001; Woolcock, 1998).

O conceito de capital social de Putnam assenta sobre “as redes e normas de cooperação social, em grande parte consubstanciadas nas associações” e na “confiança social que se geraria nesse contexto relacional” (Viegas, 2004: 33). Desta forma, o conceito incorpora duas componentes de igual importância. A participação dos indivíduos na sua comunidade, quer em associações voluntárias, quer nas instituições públicas e privadas (Harriss, 2001; Putnam, 2000; Woolcock, 1998), e a confiança, sem a qual não seria possível a existência de uma plataforma confiável e credível nas interações entre os atores sociais, a qual facilita as relações recíprocas (Carmo, 2008; Putnam, 2000).

A definição de capital social de Putnam surge como a ideal para o estudo das práticas de relação entre a escola, as famílias e as estruturas representativas das últimas. Essas práticas de relacionamento são facilitadas quando os níveis de confiança são elevados, traduzindo-se na abertura das escolas às famílias e num maior envolvimento e participação parental como parte constituinte do papel das famílias como cidadãos tal como parecem sugerir as palavras do autor:

“In that sense social capital is closely related to what some have called «civic virtue». The difference is that «social capital» calls attention to the fact that civic virtue is most powerful when embedded in a dense network of reciprocal social relations. A society of many virtuous but isolated individuals is not necessarily rich in social capital” (Putnam, 2000, p. 19).

Este conceito de capital social aproxima-se do novo paradigma de desenvolvimento e gestão local, que tem em conta os contextos e as necessidades de cada região, envolvendo os atores na definição de estratégias localizadas (Melo e Carmo, sd: 5), assim implementando uma micro-regulação (Barroso, 2005). Havendo alguma flexibilidade na aplicação de normas e regulações que têm origem no governo central (Melo e Carmo, sd: 5), não deixa de existir uma regulação nacional com a definição de estratégias e práticas de controlo de uma regulação de tipo burocrático e centralizado, aplicada em simultâneo com a promoção da descentralização e da autonomia institucional características dos novos modos de regulação partilhada (Barroso, 2005).

A expectativa é de que as famílias dos alunos aceitem participar, por mais difícil que seja a sua “entrada” na escola (Epstein, 2009; Shaeffer, 1994), assim como se espera que se responsabilizem pela qualidade da educação nacional, das escolas e dos seus educandos. Este poderá ser um objetivo difícil de atingir, tendo em conta os baixos níveis de confiança e de participação em Portugal assinalados em várias estudos internacionais, como os do European Social Survey, e baixos níveis de associativismo da população portuguesa (Delicado, 2002; Carmo, 2008; Viegas, Pinto e Faria, 2004). Renato Miguel do Carmo (2008) identificou que, em Portugal, se verifica um sentimento de desconfiança da população para com as associações que geralmente dá origem a uma não adesão às mesmas. Consequentemente, geram-se sentimentos de frustração por parte dos elementos das associações, que podem levar à desativação das estruturas associativas.

Don Davies et al (1996) identificou uma cultura de desconfiança similar entre escola e família, indicando como possível origem, o facto de os professores tradicionalmente apenas chamarem os pais à escola em caso de insucesso escolar ou de problemas comportamentais. Note-se, no entanto, que outros autores falam exatamente do oposto, ou seja, de uma confiança nos professores por parte das famílias, sobretudo de estatuto socioeconómico mais baixo e com menor escolarização (Ana Cristina Palos, 2002; Paixão,

2008), que leva a que estejam mais ausentes do espaço escolar, tornando-se “invisíveis” (Lahire, 2004) e, dessa forma, colocando em causa o seu envolvimento no espaço familiar e no escolar e a sua participação, quer de carácter informal quer formal.

Não podemos deixar de referir que a cultura para a aprendizagem da leitura e escrita começou por se desenvolver por iniciativa das religiões protestante e católica (esta tentando responder aos desafios da primeira), apenas como um processo de alfabetização de cariz fortemente doutrinal (Candeias, 2001). Muitas paróquias ou alguns indivíduos por elas autorizados tiveram a iniciativa de alfabetizar as populações, e eram as famílias ou os conselhos locais que pagavam ao mestre que, no início, se deslocava aos locais ou às casas, e que, mais tarde, recebiam os alunos em sua casa (Idem). Este processo de alfabetização informal e diferenciado (Candeias e Simões, 1999) esteve na origem de uma cultura escolar em que as famílias confiavam nos mestres de escola e em que estes faziam o seu trabalho numa atitude de distanciamento ao exterior, sobretudo no período da escola pré-moderna quando as aulas passaram a ter lugar no interior das casas dos mestres. Esse distanciamento manteve-se, ou fortificou-se, na passagem para uma educação estatal e obrigatória, igual para todas as crianças, num espaço específico criado para essa função, a escola.

A mudança do principal centro económico do espaço da família (na economia de subsistência) para o exterior, fábrica ou escritório, com o evento da Revolução Industrial e a consequente saída do homem em primeiro lugar, e depois da mulher do “espaço” da casa, retirou à família alargada várias funções que lhe pertenciam. As deslocações para o espaço exterior promoveram a erosão do capital social no seio familiar, ou seja, a “descapitalização” social dos menores (Coleman e Hoffer, 1987). Como causas apontam-se, em primeiro lugar, a deslocação para o exterior do seio familiar, da já referida função económica, seguida de perto da função de educação das crianças e jovens e, também, da função de serviço social, uma vez que homem e mulher deixaram de estar em casa para educar os seus filhos e cuidar dos seus outros dependentes – idosos e doentes.

A concentração da família na obtenção dos salários reforçou a ideia de que o investimento na educação pode ser um modo de melhorar de vida e até de posição social, visão que teve início com o surgimento da Burguesia (Candeias e Simões, 1999). O investimento na escolarização por parte de atores de todos os estratos sociais, e não apenas das classes mais favorecidas, associou-se ao fenómeno da massificação da educação pelo Estado, com o objetivo de formar cidadãos nacionais.

Dessa forma, o investimento na escolarização aumentou o capital humano dos adultos, ou seja aumentaram as competências e os conhecimentos que os tornaram capazes de agir de forma diferente (Coleman, 1990). No entanto, a ausência dos adultos do espaço familiar durante grande parte do dia, provocou uma diminuição do capital social

familiar e, consequentemente, do capital humano familiar, devido ao menor tempo dedicado à transmissão de saberes e de conhecimentos entre adultos e crianças. As alterações do mercado de trabalho também provocaram uma diminuição da participação dos adultos na sua comunidade, onde se incluem as associações, incluindo as associações de pais, assim como a diminuição das relações informais entre adultos e crianças, provocando uma ainda maior erosão dos capitais familiares, o humano e o social (Coleman e Hoffer, 1987). De acordo com Coleman (1990), o capital humano dos indivíduos só é capital familiar quando existem relações entre os indivíduos e os restantes membros da família, ou quando existe capital social no grupo familiar.

As maiores críticas à utilização deste conceito no campo das ciências sociais surgiram na área da economia, cujos autores se opunham à palavra “capital” que definiam como algo que se possui. A impossibilidade de possuir esse bem, o capital social, como um recurso privado, porque ele pertence a todos os indivíduos que fazem parte da estrutura social que o produz, e a consequente dificuldade em o transacionar (Coleman, 1990) era razão para a crítica de uns (Arrow, 1999). Outros propunham outros termos que substituíssem “capital”, por exemplo por “comunidade” termo que foca o que os grupos fazem em oposição ao que os indivíduos possuem (Bowles e Gintis, 2002).

A definição do conceito de capital social não é consensual e a sua utilização indiscriminada torna-o ambíguo (Adler e Kwon, 2002; Sabatini, 2005). Na literatura científica sobre o conceito é difícil encontrar denominadores comuns entre as várias definições construídas e uma medida universal deste tipo de capital (Sabatini, 2005). Outra dificuldade em trabalhar com este conceito tem a ver com a necessidade de trabalhar com indicadores indiretos de capital social através dos quais se torna complicada a tarefa de estudar ou medir o seu nível num sociedade ou num grupo (Idem). Optou-se por substituir o conceito de capital social pelos de confiança e de participação tal como descritos nesta exposição, pela facilidade na sua tradução em indicadores possíveis de ser medidos.