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2.2 Movimentos que marcaram a moda e a sociedade: a moda de cem anos

2.2.3 Capitalismo de consumo

Após a contextualização histórica a respeito da moda, suas transformações, sua evolução ao longo dos séculos até seu ápice e, principalmente, sua influência no desenvolvimento do comportamento das sociedades, é necessário fazer, agora, uma abordagem paralela, mesmo que em um contexto geral, com relação ao consumo capitalista gerado pelas significativas transformações socioculturais. Com isso, será possível compreender o desfecho das marcas de moda no contexto atual e seu posicionamento com relação a seus consumidores.

A respeito do capitalismo de consumo, Lipovetsky (2007) propõe uma abordagem fundamentada na distinção de três grandes momentos, para que se possa compreender o sentido das mudanças em curso, inscrevendo o presente na longa história da civilização de massa.

O primeiro ciclo da era do consumo, assim definido por Lipovetsky (2007), começa por volta dos anos de 1880 e termina com a Segunda Guerra Mundial. Essa fase cedeu o lugar dos pequenos mercados locais aos grandes mercados nacionais, o que foi possível devido às modernas infraestruturas de transporte e de comunicação, que incluíam as estradas de ferro, telégrafo, telefone. Essas vias aumentaram a regularidade, o volume e a velocidade dos transportes para as fábricas e para as cidades, particularmente as redes ferroviárias, porque possibilitaram o desenvolvimento do comércio em maior escala, o escoamento regular de quantidades maciças de produtos e a gestão de fluxos de produtos de um estágio de produção a outro. Para controlar os fluxos de produção e rentabilizar seus equipamentos, as novas indústrias acondicionavam elas mesmas os seus produtos, aproveitando e fazendo publicidade em escala nacional em torno de sua marca. Ou seja, segundo Kotler (2010), o marketing se resumia em vender os produtos da fábrica a quem quisesse comprar.

Esse primeiro ciclo da era do consumo abriu caminho para a chamada produção massificada, que ocorreu em decorrência da elaboração de máquinas de fabricação contínua, que, aumentando a velocidade e a quantidade dos fluxos, propiciaram o aumento da produtividade, tornando os custos de produção mais baixos. Essa técnica de fabricação permitiu produzir mercadorias padronizadas em enormes séries, que, embaladas em pequenas quantidades e com o nome da marca, puderam ser distribuídas nacionalmente a um preço unitário muito baixo. É importante salientar que, até os anos de 1880, os produtos eram considerados anônimos, pois quase não existiam marcas. Sob esses mesmos ares de crescimento, teve origem o marketing de massa e, consequentemente, o consumidor moderno (Lipovetsky, 2007).

O capitalismo de consumo é formado também pela construção cultural e social, que requereu a “educação” dos consumidores ao mesmo tempo em que exigiu o espírito visionário de empreendedores criativos. A nova filosofia comercial, que se estendeu até o final da segunda fase, era vender a maior quantidade de produtos com pouca margem

democratização do acesso aos bens mercantis. Porém, a predominância de consumo ainda era limitada aos burgueses, em virtude dos poucos recursos da população, ou seja, uma difusão limitada dos bens duráveis industriais, sob a supremacia do consumo de status (Lipovetsky, 2007).

O aparecimento das grandes marcas e dos produtos acondicionados resultou em modificações significativas na relação do consumidor com o varejista. A partir daí, não é mais o vendedor que fideliza o consumidor, mas a marca, sendo a garantia e a qualidade dos produtos transferidos para o fabricante, transformando o consumidor tradicional em consumidor moderno, ou seja, consumidor de marcas, educado e seduzido pela publicidade por trás delas (Lipovetsky, 2007).

A produção de massa foi acompanhada pelo surgimento de um comércio de massa, impulsionado pelos grandes magazines e pelo aumento considerável da variedade de seus produtos, colocando em marcha um processo de democratização de desejos por intermédio da publicidade e dos suntuosos pontos de venda, que tinham como objetivo estimular a necessidade de consumir, excitar a paixão pelas novidades e pela moda por meio de estratégias de marketing. Um novo modo de vida passou a se formar, centrado nos valores materialistas estimulados pelo prazer da compra (Lipovetsky, 2007).

Por volta de 1950, estabeleceu-se o novo ciclo histórico das economias de consumo, construído ao longo das três décadas do pós-guerra, denominado como a sociedade pós- industrial, que nasceu a partir do aumento da comunicação entre os povos, com a difusão de novas tecnologias e com a mudança da base econômica. Uma sociedade baseada não mais na produção agrícola, nem na indústria, mas na produção da informação, serviços, símbolos e estética. O nascimento da informação, não apenas como conceito, mas também como ideologia, está intrinsicamente ligado ao desenvolvimento do computador (Kumar, 2006).

Esse período foi definido por Lipovetsky (2007) como a segunda fase do capitalismo de consumo e por ele chamado de sociedade da abundância, pois foi marcado por um grande crescimento econômico, pela elevação do nível de produtividade no trabalho e pela extensão da regulação fordista (introdução das linhas de montagem) e da administração científica do trabalho (taylorismo).

Essa segunda fase pode ser definida também como a sociedade do consumo de massa, pois o consumidor obteve um poder maior de compra, melhores condições de vida e

consequentemente um maior acesso aos bens de consumo, como automóveis, televisão, aparelhos eletrodomésticos, que antes eram quase que exclusivos da burguesia e das elites sociais. As palavras pontuais nas organizações industriais passam a ser: especialização, padronização, repetitividade, elevação dos volumes de produção (Lipovetsky, 2007).

A lógica da quantidade é o que domina a segunda fase: sempre mais conforto, mais objetos, mais lazeres. A sociedade se mobiliza em torno do projeto de vida de ter um cotidiano confortável e fácil, o que, para eles, era sinônimo de felicidade. Esse ciclo pode ser interpretado como um ciclo intermediário e híbrido, pois combina a natureza essencialmente fordista e a lógica da moda, em que a ordem econômica se ordena parcialmente segundo os princípios da sedução, da efemeridade, da diferenciação dos mercados e da obsolescência dirigida (Lipovetsky, 2007).

Sob essas transformações socioeconômicas, nasce uma nova sociedade de consumo, na qual o crescimento, a melhoria das condições de vida e os objetos-guias do consumo se tornam os critérios do progresso por excelência. A natureza híbrida desse ciclo, que tem como determinação o prazer como bem supremo, envolve o estilo de consumo num halo de leveza e de ludismo, de juvenilidade e de erotismo, apresenta-se na escala histórica como uma formação de compromisso entre a mitologia da posição social e a do fun, ou seja, entre o consumo demonstrativo tradicional e o consumo hedonista individualista (Lipovetsky, 2007).

O marketing passou a ser direcionado ao consumidor e não mais ao objeto, pois o consumidor desse período tinha acesso a um maior número de mercadorias, de diferentes marcas, e tinha acesso à informação. Ou seja, era mais exigente e passava a definir o “valor” da mercadoria, exigindo das marcas que desenvolvessem um produto cada vez melhor e com mais qualidade (Kotler, 2010). Nesse período também, a função das marcas era nomear, identificar e diferenciar os produtos, além de mostrar como utilizá-los e garantir a própria qualidade, acompanhando a evolução das práticas de consumo, em que as marcas substituem os produtos (Semprini, 2010).

No final dos anos de 1970, esse ciclo chega ao fim, dando início ao terceiro ato das economias de consumo regidas pelo sistema das sociedades contemporâneas desenvolvidas, definidas por Morace (2018) como portadoras de nova energia, esperança e bem-estar material, identificando-se, no contexto social de seu cotidiano, com o

nível cultural suficientes para a busca contínua da excelência. Isso não significa dizer, segundo Lipovetsky (2003), que tenhamos rompido todos os elos com o passado; a sociedade frívola não sai do universo competitivo burocrático, porém ela entra em seu momento flexível e comunicacional, ela se recicla.

O alto luxo estabelecido nos anos de 1980 não significava apenas status, mas era também a expressão de um valor intrínseco, em que a qualidade de vida se sobrepõe à representação social. Os valores de excelência passaram do mundo materialista e de ostentação para o serviço do corpo, para o cuidado de si mesmo e para o espírito (Morace, 2018). Sucedeu-se o luxo livre, desinstitucionalizado (Lipovetsky, 2005). O tempo, a serenidade e a qualidade de vida constituem as grandes respostas a uma geração inquieta, que conheceu o bem-estar e que não aspira mais de modo tão direto ao clássico consumo de luxo (Morace, 2018). Como afirma Lipovetsky (2005, p. 47) “entramos em uma nova idade do luxo: ela constitui seu momento pós-moderno ou hipermoderno, globalizado, financeirizado”.

O momento dito pós-moderno é caracterizado pelo individualismo desregulado, opcional, ou seja, emerge de um consumo dispendioso, livre dos preceitos sociais, que representa a ascensão das aspirações e das motivações do indivíduo. Daqui em diante, a cultura neoindividualista é acompanhada pela independência dos indivíduos em relação às antigas imposições de dependência e pela correlativa degradação da autoridade das normas coletivas. Sob esse impulso, as formas de consumo dispendem para o regime das emoções e das sensações pessoais, pela busca da saúde e do experiencial, do sensitivo e do bem-estar emocional (Lipovetsky, 2005). No momento pós-moderno, a nova dinâmica que envolve os consumidores é voltada para as questões humanas (Kotler, 2010).

Com a difusão das novas tecnologias, as pessoas modificaram a maneira de pensar, de decidir, de avaliar. Comportamentos “mentais” foram alterados. A partir da metade dos anos 1990, ocorreu a manifestação de contra-tendências que redescobrem e revalorizam a memória, as origens, as raízes, o tempo denso e lento, o território, as narrativas, o étnico, além do compartilhamento e da experimentação expressiva (Morace, 2018). É sob esse manifesto que serão abordados o comportamento do consumidor e das marcas de moda no mundo pós-moderno, nos capítulos seguintes.