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CAPITALISMO E CRISES

No documento Século XXI: o mundo em convulsão (páginas 134-139)

Dois critérios devem ser postos quando se discorre acerca das crises do capitalismo: ingovernabilidade e incontrabilidade – e esses são derivados de sua orientação irreprimível destinada a uma permanente acumulação. Tal como força de lei ou componente intrínseco à sua natureza, a “eficiência econômica” torna-se a régua de tudo e também da própria humanidade. Na verdade, a eficiência econômica significa, em última instância, o cálculo que faz girar a roda da acumulação, e uma variável

1 SPUTNIK BRASIL. Armadilha dourada: como Rússia e China estão dispostas a pôr fim à hegemonia do dólar. Disponível em: https://dialogosdosul. operamundi.uol.com.br/economia/58394/armadilha-dourada-como-rus- sia-e-china-estao-dispostas-a-por-fim-a-hegemonia-do-dolar?fbclid=IwAR- 3FAStL8vw03-5AStdsv-Zg7t_ZpG4fXsjpCbE6OtRo7YSWZNljVCxQ6kY. Acesso em: 23 jun. 2019.

essencial para obtê-la concerne ao esforço para baixar os custos de produção, inclusive o valor pago ao bem mais precioso do capital – o trabalho. No cerne das crises capitalistas de produção, ou de superprodução, está, para cada unidade capitalista, produzir mais, melhor e em menos tempo, alargando, portanto, o seu mercado consumidor versus baixar os custos e vencer seus concorrentes. Evidentemente, esse quadro agrega uma enorme complexidade social para que, no final de cada ciclo de acumu- lação, surja outro ciclo renovado e assim ininterruptamente. Segundo Marx, esse procedimento econômico está contido na fórmula básica do capital: D-M-D (Dinheiro-Mercadoria- -Dinheiro). Isto é, o dinheiro ao ser investido na produção se transforma em capital ao produzir mercadoria (gerando valor) que, ao ser vendida, reconverte-se em mais dinheiro e novamente

capital quando produz mais mercadoria (gerando e expandindo

mais valor em relação ao valor primitivo, ou seja, sendo valor de troca). É, enfim, um movimento de circulação incessante em sua transformação de dinheiro em capital. Não esquecendo que a mais-valia, ou o sobrevalor, é o componente imprescindível para que o capital, com a apropriação do trabalho alheio, seja qual for a sua personificação histórica, possa acumular. As crises de superprodução capitalistas – excesso de oferta de mercadorias e reduzida demanda – estão no âmago do ciclo D-M-D, bem como as convulsões sociais daí decorrentes. Essas são resultado da degradação das condições de vida dos/as trabalhadores/as e, quando se tornam uma ameaça real, são reprimidas pelo capital por meio de governos de viés mais ou menos autori- tário. Há ainda a fórmula que traça a sucessão inversa desse circuito: M-D-M (Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria), contudo ela se expressa fundamentalmente como valor de uso por inter- médio da troca de mercadorias. O dito capitalismo comercial/

mercantilismo (vender para comprar) é o exemplo histórico mais conhecido de atividade econômica que reproduz a fórmula básica do capital, mas com sinais invertidos.

Em contrapartida, Atílio Boron (2003) demonstra que um dos motivos alegados quanto ao surgimento da crise ora vivenciada (trataremos mais adiante sobre o tema) – e exaustivamente divul- gado pelas vozes do liberalismo2 preponderante contra os Anos Dourados do capitalismo (em linhas gerais, do final da 2ª Guerra até a primeira metade da década de 1970) – não seria relativo ao déficit fiscal estatal decorrente do peso de tantos encargos sociais. No que se refere à racionalidade do capital, essa tese possui graus de coerência. Entretanto, Boron esclarece que na verdade a questão crucial é outra: o padrão keynesiano/welfarestate “excessivamente democratizou” o corpo societal, colocando em risco o nervo central do sistema, isto é, a rígida hierarquia a favor de sua dinâmica acumulativa. Essa, sim, peça intocável e incongruente com uma democracia substancial, haja vista que, no final dos anos de 1960, uma série de movimentos sociais pôs em xeque a divisão hierár- quica de submissão do trabalho ao capital.

2 Ao se pensar em liberalismo, é conveniente refletir sobre o tipo de capi- talismo em voga, que concomitantemente exige um corpo doutrinário que o coordene e justifique. Assim, o liberalismo é aqui compreendido como o estatuto teórico e estratégico que demarca e ajusta os caminhos a serem trilhados pelo capitalismo na sua busca permanente de renovação. Desde que estejam vigorando determinados padrões de liberdade individual, econô- mica, política, religiosa, associativa e intelectual calcados na propriedade privada dos meios de produção e que, fundamentalmente, não interfiram − ou melhor, sejam favoráveis à acumulação capitalista. Uma sociedade arbitrada sob os moldes fascistas preserva os dois itens grifados, todavia suprime ou inibe, em graus variados, os demais. É capitalista, portanto. Porém, não é liberal.

De fato, as classes dominantes contemplam com tristeza o modo como esse democratismo – que em um momento se limitou à “esfera pública” – se expande vigorosamente e penetra até o próprio santuário da burguesia: a fábrica. O irresistível avanço da democracia agora desborda os amplos limites do Estado para invadir as áreas “privadas”, outrora a salvo da irrupção do elemento democrático, e isso é o que galvaniza um forte bloco burguês que satanizou o Estado keynesiano como a causa da crise política e da “ingoverna- bilidade” das democracias (BORON, 2003, p. 79, grifo do autor).

A frase “A longo prazo, todos estaremos mortos”, dita ou, ao menos, atribuída a John Maynard Keynes, em linguagem econômica pode ser lida do seguinte modo: de acordo com o esquema acima, depreende-se que a lucratividade deve ser alcançada, em regra, em prazos não dilatados e os meios para obtê-la também devem oferecer presteza temporal. Se houver titubeio, atrasos ou incapacidade de qualquer ordem, na tenta- tiva de sobrepujar uma outra unidade capitalista, a concorrente mais forte e hábil conquistará o nicho de mercado em disputa. Essa dinâmica era conhecida por Keynes e guardava em si, segundo a visão clássica liberal de raiz smithiana, uma ideia de moralidade insuspeita e implícita.

Nesse sentido, o regime liberal de Adam Smith empu- nhava a bandeira da generosa empatia iluminista tão cara ao escocês, inclusive, colocada acima do lucro3 e do patrão4 – e muito acima das interpretações equivocadas e de má-fé “da mão invisível do mercado”. Porém, com o domínio do capitalismo

3 SMITH, 2003b, p. 1160-1161. 4 SMITH, 2003a, p. 183-184

em âmbito planetário sustentado por gigantescos oligopólios e cartéis, naturalmente esse regramento ético cai por terra. Aliás, é justamente pela não possibilidade de observância desse regramento ético que se levantaram as poucas e gigantescas organizações empresariais que hoje comandam e concentram a maioria absoluta do mercado mundial. E se tal configuração econômica – que se assenta nos parâmetros da lógica concor- rencial do capitalismo –, ainda era uma tendência no século 18, época de Smith, hoje está efetivamente comprovada, instalada e guiada para muito além dos rebates de consciência quanto à preservação do meio ambiente, por exemplo. Ou seja, ações individualistas pautadas em veleidades humanísticas não podem dar o tom – e de maneira alguma conseguiriam –, à necessidade de expansão do capital e são, portanto, descartadas por sua dinâmica autorreprodutiva.

Nesse processo, organizações privadas de caráter moralista, abarcando entidades religiosas, Organizações Não Governamentais, como Greenpeace, Lions Clubs, maçonaria, entre tantas outras, servem basicamente como propaganda pró-sistêmica no sentido de estabelecer, consolidar e espalhar uma dada doutrinação política ao mesmo tempo que esvaziam o olhar crítico a respeito do seu verdadeiro funcionamento. Em suma, existe uma estrutura de poder e de autorregulação inerente ao capital que não admite que se coloque em xeque o nexo de sua reprodução constante e irrefreável. O movimento em prol de acumulação do capital é, então, o campo sobre o qual atuam o jogo político-econômico e as contendas classistas em suas mais variadas formas.

As modificações, reformistas ou revolucionárias, no que tangem à operacionalidade sistêmica orientada pela acumu- lação, são sensíveis em dois quesitos e ocorrem principalmente

em contextos de surto econômico (de taxas de acumulação reduzidas) e social: primeiro, as pressões da sociedade civil organizada em luta contra o rebaixamento dos gastos de produção está numa relação direta com aumento dos níveis de exploração do trabalho (diminuição de salários e retirada de direitos); segundo, as intervenções estatais com a finalidade de regular os vínculos entre trabalho e capital, não permitindo ou desfazendo grandes conglomerados econômicos, taxando lucros, abrindo postos de trabalho, socorrendo empresas privadas etc., como aconteceu na crise de 1929 e em diversos outros instantes. É a partir da objetividade dessa conformação fundamental – por um lado, as ações estatais buscando recompor o capital em crise acumulativa e, por outro, as lutas trabalhistas – que surge a necessidade sistêmica de vencer uma dada crise conjuntural até o inevitável aparecimento da próxima. Item basilar: o imperativo de reprodução sempre ampliada do capital está inseparavelmente ligado ao Estado – a sua instituição maior – regulador e impulsionador dessa busca

O CAPITAL NOS

No documento Século XXI: o mundo em convulsão (páginas 134-139)