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O FATOR TRABALHO E A MUDANÇA DO MUNDO

No documento Século XXI: o mundo em convulsão (páginas 186-190)

O caráter profundamente desestruturante de normas e pactos sociais, o impulso para se considerar a desigualdade social como valor a ser conquistado – naturalizando a existência de ganhadores e perdedores – e a dinâmica concentradora de renda marcam esse neoliberalismo de segunda geração. Para que a dinâmica dos mercados – ou organização da dominação social – se imponha sobre a desorganização do mundo do trabalho, tornada necessária pela concorrência pela queda de seu preço, não valem mais políticas que buscavam conceder direitos sociais e restringir prerrogativas políticas, manejados com habilidade nos tempos do fordismo e dos 30 primeiros anos do pós II Guerra Mundial.

A institucionalização de sindicatos como forma de orga- nização e controle estatal perante a massa de trabalhadores é dinâmica superada. Isso era possível nos tempos em que a fábrica era, além de centro produtivo, local de convivência e sociabilização. A linha de montagem e o ramo de atividade tinham sua extensão lógica na organização social do sindicato. As disputas no âmbito das entidades não se davam apenas entre facções dos movimentos trabalhistas, mas eram fundamen- talmente enfrentamentos entre o patronato – via Estado – e trabalhadores. Limites e possibilidades da ação sindical, direito

de greve e luta pela venda da força de trabalho por preço mais caro eram ações coletivas e organizadas por uma massa que agia de forma solidária e coletiva. Suas bases estavam nos galpões de grandes plantas industriais, tanto nos países centrais quanto naqueles da periferia ou semiperiferia que se industrializavam no período compreendido entre a crise de 1929 e a crise da dívida exerna, nos anos 1980.

Com o advento da primeira onda neoliberal, esse mundo começa a se dissolver. A grande ofensiva antissindical desen- cadeada pelos governos Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e Margareth Tatcher, na Inglaterra, resultou em sérios reveses para os trabalhadores.

No primeiro caso, o presidente republicano decidiu enfrentar duramente a greve dos controladores de voo de todo o país, em agosto de 1981, poucos meses após assumir o poder. A demissão de mais de dez mil trabalhadores colocou o sindi- calismo na defensiva. A partir daí, houve um amplo processo de desregulamentação da atividade laboral.

Do outro lado do Atlântico, houve situação seme- lhante, em 1984, frente a uma maciça greve de trabalhadores mineiros ingleses, que se estendeu por meses a fio. A então primeira-ministra britânica bloqueou todos os canais de negociação. Sua intransigência envolveu pesada repressão policial, que derrotou o movimento por melhores salários e pela não privatização do setor. Tatcher literalmente quebrou a espinha dorsal do setor mais dinâmico do sindicalismo local, resultando em perdas de vários direitos.

A partir daí, aa implantação do neoliberalismo tornou-se quase sinônimo de derrotas do movimento sindical e perdas de direitos. A repressão política e policial, a fragilização da legislação laboral e a desorganização dos

trabalhadores passaram a ser utilizadas em escala ainda maior do que em décadas anteriores.

O rompimento da solidariedade classista, a divisão dos explorados entre si – por meio de mil e uma características identitárias que buscam se sobrepor à luta de classes –, o estímulo à meritocracia e ao individualismo, bem como vários outros artifícios vem a se somar à fragmentação do mundo do trabalho e ao avanço da automação industrial, enfraquecendo a capacidade de mobilização e luta dos de baixo em diversos países. Por toda a parte, o neoliberalismo passa a necessitar, para sua implantação, de regimes de governo mais autoritários e restritivos, diante do óbvio descontentamento social que ele acarreta. Como lembra Ellen Meiskins Wood: “Um modo de produção é não somente uma tecnologia, mas uma organização social da atividade produtiva; e um modo de exploração é uma relação de poder6”. Erroneamente chamados de “populistas”, candidatos de direita e de extrema direita avançam na esteira da insegurança social causada pelas próprias políticas neoliberais. Há um equívoco, disseminado entre a esquerda, de que crises capitalistas abririam automaticamente espaços para a contestação do sistema. Trata-se de vulgata histórica nunca comprovada.

A crise de 1929, que atingiu profundamente o coração do sistema, abriu na Europa uma inédita disputa de rumos, confron- tando vias opostas de superação do desastre econômico. A tal quadro se somava o desarranjo na economia alemã, imposto pelo tratado de Versalhes (1919) e o fantasma da Revolução Russa (1917), brandido pela direita como o inferno na Terra.

6 WOOD, Ellen Meiskins. Democracia contra capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2003. p. 33.

As duas experiências mais notáveis do avanço da esquerda europeia nos anos 1930 – os governos de frentes populares na França e Espanha, entre 1936-38 – terminaram com sabotagens, campanhas de calúnias e guerra civil, no caso espanhol. Por praticamente toda a Europa, o fascismo avançou na esteira da crise, prometendo segurança social e atacando setores vulnerá- veis das sociedades como responsáveis pelas turbulências.

Assim como ocorrido no século XX, a reação à crise de 2008 também tem propiciado o crescimento de setores de extre- ma-direita, quando não abertamente fascistas, na Europa e nas Américas. O êxito eleitoral de Donald Trump, Jair Bolsonaro, Maurício Macri, Ivan Duque, Matteo Salvini e da proposta do Brexit são pontos notáveis dessa tendência. Diante da crise, reafirma-se a agressividade imperial estadunidense, por meio da manutenção da centralidade do dólar na economia mundial, da expansão de seu aparato militar, de seu poderio econômico e de sua capacidade de influência cultural.

A segunda ofensiva neoliberal representa a derrota do desenvolvimento e da industrialização na periferia. A meta agora é buscar o investimento externo direto possível em países que desistiram de buscar projetos nacionais autônomos e soberanos. Sem centros produtivos de ponta, a periferia pode prescindir de pesquisas em ciência, tecnologia e inovação, comprando pacotes do exterior e pagando royalties pelo que utilizar. Essa é a dimensão do retrocesso global.

Em uma frase, trata-se de desarticular o Estado e destruir a ideia de Nação, além de erodir a possibilidade de recuperação econômica. Reduzem-se os mercados internos e transformam-se países que alcançaram razoável grau de desenvolvimento tecno- lógico em plataformas de exportação. Sobrevivem os grandes empreendimentos e quebram-se os mais frágeis.

QUE PRESENTE O FUTURO

No documento Século XXI: o mundo em convulsão (páginas 186-190)