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a A capoeira como luta nacional.

No documento Luiz Felipe de Oliveira Faustino (páginas 63-71)

MELLO MORAIS: A CAPOEIRA COMO LUTA NACIONAL, A PARTIR DE UM OLHAR CIENTÍFICO (1901-1909)

2. a A capoeira como luta nacional.

O autor começou sua análise comparando a capoeira a manifestações culturais, principalmente lutas praticadas em outros países. Assim, ele buscou através do estudo de nossa arte-luta comparar o Brasil do ponto de vista cultural às demais nações européias produtoras e exportadoras de cultura civilizada, tema que o próprio autor faz alusão já no início do texto sobre os capoeiras:

Na Inglaterra há famílias de remadores, e de jogadores de sôco (...) os portugueses tem o jogo de pau, os franceses a savate. (...) No Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro, há uma sub-classe que reclama distintíssimo lugar entre as suas congêneres e que tem todo o direito a uma nesga de tela no quadro da história dos nossos costumes – a dos

capoeiras.71

71MELLO MORAIS FILHO, Alexandre José de. Festas e tradições populares no Brasil. Rio de Janeiro: Ed.

Quando Melo Moraes comparou a capoeira ao boxe inglês, ao savate francês e o jogo de pau português, o que me pareceu claro foi sua intenção em elevar o Brasil frente estas nações. É importante lembrar que nesta época as elites dominantes do país eram extremamente dependentes, em termos de importação de moda e valores culturais, das “novidades” então em voga na Europa, principalmente França e Inglaterra. Pela análise do texto percebi que a intenção do autor para com a capoeira era utilizar-se dela para melhorar a imagem do país, garantindo nossa grandiosidade cultural a partir de manifestações importantes, entendendo a capoeira na perspectiva de uma luta nacional.

Porém, quando começou a discorrer sobre os sujeitos populares praticantes da capoeira e de suas façanhas, sua visão mostrou-se elitista como a de Abreu. Ele foi claro ao definir estes sujeitos capoeiras como sub-classe, assim implicitamente diferenciando hierarquicamente as classes sociais do país, caracterizando os afro- descendentes e populares como inferiores.

Em sua obra ele não deixa claro qual ponto de referência está tomando para inferiorizar os capoeiras, mas acredito que sua referência seja o grupo social dominante do qual fazia parte. Com outro trecho podemos ver como sua visão elitista abarca também a própria prática da capoeira:

Quando estudávamos no Colégio de Pedro II, foi nosso lente de francês o bacharel Gonçalves, bom professor e melhor capoeira. (...) O Dr. D.M., jurisconsulto eminente e deslumbrante glória da tribuna criminal, cultivou em sua mocidade essa luta nacional, entusiasticamente levada a excessos pelo povo baixo, que a afogou nas desordens, em correrias reprovadas, em homicídios horrorosos.72

72MELLO MORAIS FILHO, Alexandre José de. Festas e tradições populares no Brasil. Rio de Janeiro: Ed.

Vemos que Mello Morais “enobrece” a capoeira, atribuindo a ela a participação de ilustres personagens da alta sociedade. Mas ao mesmo tempo ele a diferencia e inferioriza quando praticada nas ruas, caracterizando por povo baixo os malandros que a praticavam, cuja prática decorria em desordens, correrias e homicídios. Assim vemos que ele aceitava a capoeira quando realizada civilizadamente, por pessoas de “boa referência”, mas tendia a seu controle, lembrando que a capoeira de sua época já havia sofrido proibição e perseguição policial, na fase anterior (1890-1900).

Mello Morais fala da capoeira através de um olhar esportivo, definindo-a como ginástica:

O capoeira não é nada mais nem nada menos do que o homem que entre dez e doze anos começou a educar-se nesse jogo (a capoeiragem), que põe em contribuição a força muscular, a flexibilidade das articulações e a rapidez dos movimetnos – uma ginástica degenerada em poderosos recursos de agressão e pasmosos auxílios de desafronta.73

Percebemos em sua fala que ele deu destaque aos elementos presentes na capoeira característicos de uma luta esportiva. Como caso representativo desta tendência de se aceitar a capoeira como luta nacional civilizada, temos um desafio ocorrido em abril de 1908, travado entre representantes do jiu jitsu japonês e da tradicional capoeiragem nacional, explorado por importantes revistas ilustradas da capital federal.

Destaco o papel destas revistas como novos meios de comunicação no espaço urbano em constituição, que eram exploradas pelas elites dominantes que disseminavam sua cultura como hegemônica, funcionando como instrumentos de

73MELLO MORAIS FILHO, Alexandre José de. Festas e tradições populares no Brasil. Rio de Janeiro: Ed.

valorização e disseminação de novos modos, costumes e valores na sociedade urbanizada, onde grupos emergiam, buscando novas identidades74.

Entre 1908 e 1910 a Marinha Brasileira realizou ampla campanha a favor do jiu- jitsu, a ser ensinado como ginástica nas forças armadas. Mas o projeto da Marinha e dos japoneses mudou de rumo quando estudantes da Faculdade de Medicina e jornalistas sugeriram um desafio, a ser realizado em praça pública, entre representantes das duas modalidades.

As Revistas Ilustradas O Malho, A Notícia e A Careta divulgaram o desafio como grande acontecimento da semana, dando indícios de que a capoeira como atração despertava interesses à imprensa, uma vez que novos grupos atraídos pela arte-luta tornavam-se público leitor, portanto consumidores75. Ocorrido em abril de 1908, figurado entre o japonês Sada Miako, divulgador do jiu-jitsu no Brasil e Ciríaco Francisco da Silva, lutador da capoeiragem nacional, este evento foi de grande importância por representar verdadeiro renascimento para a arte da malandragem, ocorrido após sua fase de ostracismo em meio à perseguição policial.

O desafio contra a capoeiragem ocorreu no Concerto Avenida-Teatro, localizado no centro do Rio de Janeiro. A luta foi acompanhada por grande platéia, o que sugere que as disputas esportivas em praça pública vinham se tornando alvo de apreciação popular.

A Revista O Malho deu cobertura posterior ao caso, publicando uma fotografia de Ciríaco em primeiro plano - vale destacar que a utilização da fotografia como recurso

74CRUZ, Heloísa F. São Paulo em papel e tinta – periodismo e vida urbana (1890-1915). São Paulo: Ed.

EDUC, 2000.

75MARTINS, Ana Luísa. Revistas em Revista-imprensa e práticas culturais em tempos de república

técnico novíssimo à época tinha como propósito dar maior destaque ao caso, bem como causar um relativo sensacionalismo no público leitor76 - todo trajado conforme a fina malandragem da época, em terno de linho branco, bengala a mão, chamada por ele Santo Antônio 16, além de seu chapéu de banda. Lemos no rodapé da fotografia a caracterização de Ciríaco, sendo agilíssimo e pacífico, justamente os valores pretendidos para os grupos marginalizados que faziam da capoeira manifestação hostil :

O creoulo Ciríaco, agilissimo, pacifico e celebre capoeira, conduzido pela Avenida Central em alegre troça de estudantes que o proclamam em altas vozes – o vencedor do jiu-jitsu e doutor de borla e capello, em capoeiragem...77

A Revista “A Notícia”, importante meio literário da cidade, com longa data de publicação e ampla aceitação dentre as camadas mais elitizadas da sociedade carioca, também deu conta de prestar crédito ao caso. Ela prestou homenagem através de reportagem realizada em 17 de maio de 1909, onde temos importante registro do próprio capoeira.

Na reportagem, a revista adotou os termos e colóquios de Ciríaco na íntegra, alegando estar trazendo ao seu público leitor a verdadeira narrativa dos acontecimentos e até para surpresa do próprio capoeira, que pedira que sua fisionomia e características particulares fossem respeitadas. Ele próprio depois comentou a destoante disposição da revista. Transcrevo também na íntegra sua entrevista:

Cheguei em frente cum ele, dei minhas cuntinença e fiz a primeira ginga, carculei a artura do negrinho, a meiada das perna, risquei com a mão pra espantá tico-tico, o camarada tremeu, eu disse: Antão? Como é? Ou tu leva o 41 dobrado ou tu está ruim comigo, pruque eu imbolá, não imbolo. O japonês tremeu, risquei ele por baixo, dei o passo da limpeza gerá, o negrinho aturduou, mexeu, mas não cahio.

Aí, Ciríaco! Entra com teu jogo inteiro! Eu me queimei e já sabe: tampei premeo, distroci a esquerda, virei a pantana, óia o home levando com o rabo-de-arraia pela chocolatera. Deu o ar comprimido e foi cume poeira. Ahi eu fiz o manejo da cumprimentação e convidei o home pro relógio de repetição, mas o gringo se acontentou com a chamada e se deu por satisfeito.78

Vemos assim o capoeira descrever a contenda com uma visão debochada e despretensiosa do fato, demonstrando os golpes e movimentos utilizados para vencer o adversário japonês. Pela sua fala, após atingir o estrangeiro com golpes precisos, o próprio reconheceu a superioridade do capoeira, assumindo a derrota antes que a

77Revista O Malho, 13 de agosto de 1910. 78Revista A Notícia, 19 de maio de 1909.

situação piorasse. Claro que existe aqui tom vantajoso do malandro, mas a luta de fato foi vencida por ele.

Na revista A Careta temos mais uma referência ao fato, divulgado em montagem fotográfica de página inteira, publicado em 29 de maio de 1909:

Vemos Ciríaco mais uma vez cercado pelos estudantes de medicina, realizando demonstração através de passos de agilidade, jogando a capoeira com outro integrante não identificado, exibindo sua categoria ao desfilar dentre eles muito bem trajado, característica valorizada pela cultura hegemônica.

Observamos que a revista também enalteceu os feitos da capoeira nacional, assumindo-a como nosso jogo contra a influência estrangeira, representada pelo jogo japonês, o que indica que ela também demonstrava a preocupação de retratar e elevar culturalmente nossas tradições nacionais, no momento em que outros países também se exibiam internacionalmente.

Após representar os movimentos da prática do jiu-jitsu, o leitor desfrutou dos passos e movimentos da capoeira demonstrados por Ciríaco em página cheia, apresentados de forma organizada e civilizada. As lutas vinham ganhando destaque como meio atrativo de novo público e a capoeira era digna representante nacional desta modalidade esportiva.

Pudemos observar assim que, através das páginas das revistas ilustradas, a capoeira era utilizada como forma de se criar uma identidade nacional, forjada entre o público leitor masculino e a capoeira como luta nacional, capaz que hostilizar qualquer luta estrangeira.

Acredito que este caso representou justamente o tipo de capoeira defendido por Mello Morais (para ele autêntica luta nacional) e que agradaria os grupos sociais que antes tinham medo e não aceitavam a antiga prática dos capangas eleitorais. Fica claro também que o desejo deste autor por uma capoeira civilizada era compartilhado pelas

revistas periódicas, importantes como meio de comunicação difundido dentre as elites consumidoras.

Percebi assim que a cultura letrada e elitizada estava assimilando a capoeira como prática, aceitando-a como esporte nacional, e que esse movimento foi se intensificando ao longo da década 1900-10, reerguendo a capoeira após a fase de perseguição de Sampaio Ferraz. Do estudo de Mello Morais ao desafio vencido por Ciríaco os meios da cultura letrada hegemônica foram gradativamente divulgando e retratando a capoeira, tornando-a uma atividade esportiva, abrindo as portas para se praticá-la nos meios sociais que nas décadas anteriores foram tão hostis.

No documento Luiz Felipe de Oliveira Faustino (páginas 63-71)

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