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b Maltas e partidos rivais.

No documento Luiz Felipe de Oliveira Faustino (páginas 40-49)

PLÁCIDO DE ABREU: O OLHAR CRIMINALIZADO DA CAPOEIRA (1885-1890)

2. b Maltas e partidos rivais.

Ao final do Império, a capoeira praticada ocorria através das disputas entre

maltas e partidos rivais. Esta capoeira das maltas foi tema amplamente descrito por

Abreu, sendo também retomado por diversos pesquisadores posteriormente. Os capoeiras envolvidos em conflitos nas ruas criaram verdadeira escola de capoeiragem, perdurando por tanto tempo que acabou por fixar-se na memória dos praticantes e na penumbra dos que a temiam como a prática de desordeiros, vadios e assassinos, durante as décadas seguintes.

Abreu não abordou a origem destes grupos, mas retratou suas disputas, atestando sua presença marcante no cotidiano da cidade:

Guaiamu é o capoeira que pertence aos seguintes partidos: São Francisco (grande centro do qual foi chefe Leandro Bonaparte), Santa Rita, Marinha, Ouro Preto, São Domingos de Gusmão, além de muitos outros pequenos agregados a este.

A denominação que têm esses grupos é a casa ou a província, e a cor por que são conhecidos é a vermelha.

Nagoa é o capoeira que pertence aos seguintes partidos: Santa Luzia (centro do qual foi chefe Manduca da Praia), São José, Lapa, Santana, Moura, Bolinha de Prata, além de muitos outros menores filiados àqueles.

A cor pelo que são conhecidos é a branca.44

Ele indicou ser a disputa por espaços na cidade responsável pela arregimentação dos praticantes, e testemunhou ser ela fator de aglutinação dos grupos. As famosas maltas dos Guayamús e Nagôas, grupos tradicionais que eram rivais e disputavam palmo a palmo as principais freguesias do Rio de Janeiro, encenam como os principais atores neste espetáculo sócio-urbano que era a sede da Corte Imperial.

Observamos que Abreu se referiu aos capoeiras exclusivamente pela sua localização geográfica nos bairros da cidade. Ele não abordou a fundamentação política destes grupos, fato que tem sido abrangido somente por recente historiografia da capoeira e que discutimos no primeiro capítulo. Através desta historiografia também temos indícios de ser o primeiro grupo favorável à causa monarquista e o segundo, à causa republicana45. Assim, acredito ser necessário outro questionamento: o autor via a possibilidade de conscientização política destes sujeitos lutadores de capoeira? Lembrando que o autor fora escritor e tipógrafo, estaria ele inferiorizando os capoeiras por suas condições carentes de educação formal?

Estas são questões levantadas que não podemos determinar uma resposta, mas que nos permitem problematizar os sujeitos em sua posição na sociedade hierarquizada. Acredito que Abreu devia estar se referindo aos capoeiras com uma tendência elitista, em função das condições marginalizadas destes afro-descendentes e em função de sua própria trajetória imigrante, levando-se em consideração as disputas já apontadas que havia entre brasileiros negros e portugueses brancos.

Com sua descrição, Abreu nos mostrou uma cidade recortada entre grupos de capoeiras, e que principalmente o Centro da Cidade seria o local de atuação destes

45SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada Instituição – os capoeiras na corte imperial (1850-

grupos. Assim, o Centro passaria gradualmente a ser mal visto pela sociedade elitista e mal caracterizado pela imprensa dominante, consagrando-se o palco das contendas entre capoeiras. Creio ser esta informação determinante para a grande cirurgia que sofreia esta região da cidade durante a fase de modernização e civilização, desde os primeiros abaixo os cortiços de Barata Ribeiro já em 1895, à fase crítica e explosiva de Pereira Passos e Oswaldo Cruz, em 190446. Vale destacar que havendo diversos colégios eleitorais espalhados por esta região, e sendo a presença dos capoeiras nestas freguesias incontestável, sua importância para a prática da arte-luta será fundamental para constituição de sua memória social.

Na descrição dos termos e gírias ao final da Introdução, Abreu revelou os segredos destas maltas e de suas regras de conduta:

Cambar: passar de um partido para outro Tapear: enganar o adversário

Pegada: encontro de dois partidos inimigos

Bramar: gritar o nome da província ou casa a que pertence o capoeira Leva: grito de vitória, perseguição ao inimigo

Rujão: batalhão ou sociedade Desgalhar: fugir da polícia Jangada: xadrez de polícia Palácio de cristal: detenção Chácara: Casa de Correção

Quero estia, quero tasca, senão bramo: quero parte disto ou daquilo, roubado, senão denuncio.47

Abreu fala de lados diferentes, grupos que eram rivais, mas que estavam abertos a trocas de posição, mantendo os mesmos papéis. Apesar da aproximação dos Guayamus à causa monárquica, envolvidos pela figura popularizada da Princesa Isabel, e dos Nagôas ao patrocínio republicano, percebemos aqui que havia a possibilidade de

46CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a república que não foi. 3ª edição.

São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.18.

troca de partido. Os partidos políticos nesta época organizavam suas plataformas mais pelas políticas de alianças oligárquicas que pela ideologia, como também já apontou Carvalho48, dando margem à necessidade de manutenção da situação que lhes convinha; também as maltas de capoeiras posicionavam-se da mesma forma, demonstrando estarem envolvidas nas disputas políticas e saberem jogar conforme as regras. Ironicamente, Abreu nos descreve uma situação que demonstra esta questão de adaptação à situação conforme o inimigo a se deparar:

Em outro tempo, quando dois bandos de capoeiras brigavam e aparecia a polícia, uniam- se as duas forças inimigas para baterem a força pública.49

Assim, vemos que os capoeiras tinham sua orientação política, mas preferiam agir como verdadeiros profissionais, mudando de lado conforme o pagamento, o contratante ou o inimigo em comum. Desta forma sagrou-se o tipo capoeira capanga/eleitoral, que prestava serviços nas épocas eleitorais, utilizando a capoeira como arma de intimidação e hostitlidade.

Esses capoeiras capangas sempre estavam a disposição de políticos, que os utilizavam para hostilizar os adversários em tempos de eleições. Muitos desses adversários eram as próprias Gazetas e Jornais Diários, uma vez que ao longo das décadas 1870-80 constituíram-se como importantes meios na divulgação das questões políticas e partidárias na Corte50, bem como na formação da opinião pública na cidade, divulgando biografias, notas, oratórias, etc. Na imprensa diária do período, há casos de periódicos eminentemente liberais favoráveis à causa republicana, que foram alvo de

48CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a república que não foi. 3ª edição.

São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

49ABREU, Plácido de. Os Capoeiras. Rio de Janeiro: Tipografia Part, 1886, p.05. 50BARBOSA, Marinalva. Os donos do Rio. Rio de Janeiro: Ed. Vício de Leitura, 2000.

ataque de maltas organizadas de capoeiras, claramente tendenciosos à manutenção monárquica.

Na historiografia discutiu-se de forma mais abrangente este tema51, mas na pesquisa selecionei os casos mais elucidativos, para não me distanciar muito da análise dos intelectuais e dos capoeiras. Acredito ser importante trabalhar alguns exemplos para comparar aos capoeiras descritos por Plácido de Abreu. Lendo alguns dos jornais diários, como a Gazeta de Notícias e o Jornal do Comércio, observamos casos constantes de agressões de grupos de capoeiras a plena luz do dia, durante as décadas de 1870-80. Motivados por questões de organização partidária, os capoeiras agiam sem qualquer medo de represálias ou da ação da força pública, como este caso ocorrido no dia 05 de janeiro de 1885:

Ontem, pelas três horas da tarde, foi a casa da Gazeta da Tarde invadida por um grupo de capoeiras que vinha em perseguição de vários vendedores desse jornal, que uns com os outros repetiam ainda uma vez aquelas lutas pela preponderância, aos gritos de “Entra Santa’ Ana!” e “Encosta Santa Rita!”. Ao chegarem à Gazeta os pequenos refugiaram-se ali, e os outros precipitaram-se atrás deles, agredindo o jornal da casa, que quis-se opor àquela agressão.52

Este caso é um exemplo claro da atuação dos capoeiras-capangas na capital. O periódico Gazeta da Tarde era um diário vespertino, de média tiragem e não fazia muita frente aos grandes diários da cidade, mas caracterizava-se por ser publicamente liberal53. Produzia em suas colunas reportagens de cunho republicano, aproveitando o momento para publicar diversas críticas às políticas do Imperador. O Folhetim que relatou o caso era da mesma tipografia, e publicou-o como nota de ressalva, aludindo para que o ocorrido não se repetisse com as demais gazetas de menor porte.

51Vide Referência Bibliográfica.

52Folhetim Folha Nova, 05 de janeiro de 1885.

Neste dia, a malta de capoeiras monarquistas parece ter resolvido acabar com a venda do diário oposicionista em suas freguesias. Sua afronta á luz do dia dá indícios de que a polícia não era ameaça para suas ações e que as maltas gozavam de relativa liberdade para sua atuação, o que podemos associar ao fato dos capoeiras serem definitivamente contratados por senhores de forte influência política.

Soares explorou exaustivamente estas maltas organizadas, falando de suas formas de atuação e da impossibilidade da força pública contê-las, uma vez que políticos de carreira sempre estavam por trás de suas ações e condutas. Ele analisou um caso típico54, ocorrido em 1873 – na década anterior – quando o jovem conservador Duque-Estrada Teixeira venceu as eleições para a Câmara dos Deputados pelo Partido Conservador, utilizando-se de capoeiras para afugentar seus opositores liberais no dia da eleição.

A imprensa ilustrada da época - com poucos recursos técnicos disponíveis para a utilização da imagem em suas páginas em função dos primeiros passos que ainda dava na principal cidade do Império55 - rechaçou o caso, utilizando-se como motivo para uma série de ataques às práticas monarquistas anti-democráticas e anti-liberais, uma vez ser o deputado monarquista e anti-republicano ferrenho. Na revista ilustrada Vida Fluminense, utilizando a ilustração ainda “jovem” na crítica política ao regime de Angelo Agostini, importante caricaturista do fim do Império, considerado pioneiro nesta área dentro da imprensa periódica56, caricaturou o caso na edição de 22/02/1873:

54SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada Instituição – os capoeiras na corte imperial (1850-

1890). Rio de Janeiro: Ed. Acess, 1999, p.87.

55BARBOSA, Marinalva. Os donos do Rio. Rio de Janeiro: Ed. Vício de Leitura, 2000.

57

Temos nesta caricatura uma representação carnavalesca da prática política, com o político ovacionado e carregado, aclamado pela classe popular; mas observamos também que os que o carregam não são apenas eleitores, mas sim capangas, armados e hostis. Assim a revista estava além de caricaturando o caso, cumprindo seu papel de imprensa de oposição, denunciando a prática anti-democrática dos conservadores, que na época não passava de influência pessoal, realizada através da força e coação58.

57Revista Vida Fluminense, 22/02/1873.

58CARVALHO, , José Murilo de. Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a república que não foi. 3ª edição.

Mas, na década de 1880-90 onde temos a obra de Abreu, o crescimento do movimento republicano e a intensa agitação social vivida na Corte fizeram com que a ação das maltas capoeiras atingisse níveis alarmantes. Outro caso que pretendi dar destaque foi um violento conflito causado durante manifestação cívica, a Conferência Republicana/1888, realizada na Sede da Sociedade Ginástica Francesa, onde participavam importantes líderes deste movimento, como Silva Jardim. Acredito ter sido este caso o de maior demonstração de audácia e afronta às instituições civis causada por capoeiras, uma vez que o grupo de Silva Jardim era um Partido Republicano oficializado e seu principal dirigente era figura de destaque na cena política nacional.

Através da leitura dos jornais diários da cidade, o que deu maior destaque ao caso foi o digno representante dos grupos dominantes e da política hegemônica59, o Jornal do Comércio. O diário assim expôs o caso em sua coluna noticiário policial, em primeira página:

Em frente do edifício da Sociedade Francesa de Ginástica, onde o Dr. Silva Jardim fazia uma conferência, foi travada a 1 e ½ hora da tarde renhida luta entre pessoas que assistiam a Conferência e numeroso grupo de indivíduos, que estavam na rua. Pedras, garrafas, telhas, paralelepípedos, cadeiras, tudo serviu de projéctil de parte a parte e numerosos foram os estampidos de tiros de revólver, que se ouviram durante o conflito.60

Observamos tratar-se de um conflito ocorrido entre grupos diferentes, e que a causa política parecia ser a geradora de toda a situação. Este caso revela a forma como a capoeira-partidária representava um verdadeiro meio de participação política, dos quais os malandros e capangas faziam parte. Revela também que esta participação fazia-se pelo uso da força, da agressão e da violência, porém conferindo a estes grupos

59BARBOSA, Marinalva. Os donos do Rio. Rio de Janeiro: Ed. Vício de Leitura, 2000. 60Jornal do Comércio, 31 de dezembro de 1888.

maior poder e vantagens na medida em que os pagamentos se faziam por poderosos, sendo possivelmente “gordos”.

Nos dias seguintes, conferi que houve ampla cobertura do diário à apuração dos fatos, uma vez que inúmeros senhores de bem presentes no conflito foram alvejados e ameaçados pelos capoeiras, o que revela a tendência do jornal em manter-se fiel ao público leitor elitizado. Sabendo que os mesmos eram pessoas de influência na cena política, acredito que o diário apresentava clara tendência a cobrar das forças públicas ação, já apontando a criminalização dos praticantes da capoeira. Temos a descrição dos acontecimentos por parte de vários integrantes e participantes da conferência, descrevendo o conflito do ponto de vista dos republicanos que sofreram o ataque, atribuindo aos contrários as caracterizações populacho, turba, massa, porém não revelando sua condição de capoeiras. Num destes relatos, temos:

O mesmo Sr. Caseaux informou-me que as pessoas do auditório que davam Vivas a República, correspondera ao povo da rua com Viva a Monarquia, ao Imperador e a Princesa.61

Observamos no relato que se tratou de um grupo vindo de fora que não se conteve ao ouvir os brados de Viva a República, advindos da conferência, e respondeu com Vivas a Monarquia, ao Imperador e a Princesa. A partir daí começaram as provocações com a conseqüência do conflito; nos relatos das praças e dos soldados envolvidos na contenção do caso, temos a descrição de xingamentos, seguidos de pedradas e garrafadas dos de fora, seguidos dos primeiros tiros dos de dentro.

Posteriormente, temos uma verdadeira guerra civil, com um lado trancado dentro da Sede da Sociedade Francesa disparando contra os de fora, que jogavam tudo para cima dos encurralados, tentando arrombar-lhes a porta. Nos relatos das prisões e das entradas na Casa de Correção, há uma série de indivíduos presos portando navalhas, arma clássica dos capoeiras da época. Também na relação de homens hospitalizados, levados pela polícia, havia vários relacionados dentre eles feridos pelas mesmas navalhas.

Assim, podemos ver que os capangas assumiam a dianteira nas disputas políticas e que sua atuação determinou uma prática da capoeira expressa de forma violenta e agressiva, utilizando de armas e meios diversos para sua ação. Esse potencial da capoeira foi fundamental, pois dele partiu uma série de ataques contra sua prática, resultando na lei de criminalização, em 1890.

Também a atuação da imprensa, no sentido de se indicar a necessidade de se controlar a prática da capoeira, aliada ao discurso dominante apresentado por Abreu de se olhar os capoeiras como criminosos, portanto criminalizando-a, foi fundamental na determinação de uma visão hegemônica que culminou com a perseguição implacável, durante a década de 1890-1900, através da atuação de Sampaio Ferraz.

No documento Luiz Felipe de Oliveira Faustino (páginas 40-49)

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