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Lima Campos: a capoeira esportiva na Revista Kosmos.

No documento Luiz Felipe de Oliveira Faustino (páginas 81-90)

MELLO MORAIS: A CAPOEIRA COMO LUTA NACIONAL, A PARTIR DE UM OLHAR CIENTÍFICO (1901-1909)

3. Lima Campos: a capoeira esportiva na Revista Kosmos.

Na Revista Artística, Scientífica e Literária Kosmos trabalhei com Lima Campos. Este escritor é citado em livros e teses dos diversos pesquisadores da capoeira, e observei que sua obra esteve baseada no próprio ensaio de Mello Morais, publicado cinco anos antes. Neste sentido, acredito que Campos apontava na mesma direção, dando indícios que fundamentava teoricamente seu discurso no mesmo ideário

científico, dando exemplo prático de como se disseminava a opinião dos cientistas e intelectuais sobre a prática da capoeira.

A Revista Kosmos estava na mesma linha das analisadas anteriormente, com destaque principal aos aspectos sociais da alta elite carioca, com tendência à modernidade e aos avanços que a vida urbana observava através de novos produtos e novos modos de consumo, possuindo como público muitos homens e jovens mulheres95.

O escritor Lima Campos (César Câmara de Lima Campos, 1872-1929, poeta brasileiro da segunda geração simbolista, um dos fundadores da Revista Fon-Fon, colaborador em diversas revistas na imprensa periódica do Rio de Janeiro). Caracterizava-se por produzir contos utilizando linguagem rebuscada, usando diversas figuras de linguagem nas narrativas e destacando situações vividas por personagens de origem aristocrática e garbosos de modos e meios, como hotéis de luxo no Rio de Janeiro, festas requintadas, cabarés, o que nos indica que seu público leitor era geralmente masculino e elitizado.

Lima Campos responsabilizou-se por ter escrito uma das grandes referências para o estudo da capoeira perseguida de 1890-1910: na edição de março de 1906, publicou em sua coluna o artigo Nosso Jogo: a Capoeira, contendo um grande texto, contendo histórico da arte-luta, descrição dos movimentos e das maltas, e ainda ilustrações de Kalixto Cordeiro96, importante caricaturista político da época, que além de ilustrar fielmente os principais passos e golpes da capoeiragem carioca, transcreveu as

95MARTINS, Ana Luísa. Revistas em Revista-imprensa e práticas culturais em tempos de república

(1890-1922), São Paulo: Ed. EDUSP, 2001.

96Para referências deste caricaturista, ver SILVA, Marcos A. Caricata República – Zé Povo e o Brasil. São

falas e gírias populares dos próprios capoeiras (incluí em capítulo extra de Anexos, ao final da pesquisa) pelo fato de ter acompanhado a edição da reportagem Nosso Jogo e por somar às próprias indicações já trabalhadas com Abreu.

Na análise da reportagem, dei destaque a algumas passagens, analisando a constituição de seu discurso, conforme trabalhado com os outros autores. Dividi este texto em temas, seguindo a mesma linha: origem da capoeira, desenvolvimento histórico através do séc. XIX, culminando com o que ele chamou de atualidade, as gírias e movimentos componentes da luta. Investiguei vários números seguintes a esta edição buscando uma reposta ou comentários por carta do público leitor, esperando ansioso por uma repercussão do fato, mas sem sucesso. A revista não mais divulgou nenhuma reportagem sobre capoeiras ou capoeiristas, tendo Lima Campos voltado a suas colunas mensais.

Inicialmente, Lima Campos seguiu a mesma tendência exposta de Abreu e Mello Morais, demonstrando ser sua preocupação primordial comparar a capoeira às lutas praticadas em outros países, definindo ser a capoeira nossa representante:

Das cinco grandes lutas populares: a savata francesa, o jiu-jitsu japonês, o Box inglês, o pau português, é a nossa capoeira (...) a melhor e mais terrível como recurso individual de defesa certa ou de ataque impune.97

Ele apresentou a grande preocupação dos intelectuais investigados, identificar os caracteres e tradições culturais que nos pusessem em pé de igualdade com as nações européias, principalmente. Ele parecia vasculhar as festas, os folguedos e os rituais da cultura popular com a intenção de nacionalizá-las, e em alguns casos até mesmo

destituí-las de seus sujeitos produtores – os marginalizados, como no caso dos capoeiras – impondo novos modos e meios, mais civilizados.

Lima Campos, ainda buscando a comparação e almejada superioridade da nossa cultura nacional frente às nações estrangeiras, indicou de forma rápida e despercebida ser a capoeira produção cultural das classes populares:

Das cinco grandes lutas populares ... a nossa capoeira... a melhor e mais terrível. (...) o que bem indica o grande valor defensivo que possue essa estratégia popular e que a coloca acima de todas as congêneres de qualquer outra nacionalidade.98

Assim, de forma diminuída no texto da reportagem, Campos atestou a caracterização popular para a capoeira, referendando-a como prática vinda das classes marginalizadas, mas o destaque em seu discurso sempre tendia a elevá-la como luta a ser praticada de forma regrada e disciplinada.

Posteriormente, Lima Campos buscou apresentar o que seria um histórico da capoeira, desde sua origem à sua trajetória nos tempos do Império. Nesta passagem, demonstrou conhecer apenas pela memória literária e popular as fases de uma já conhecida história, como pudemos explorar profundamente em Mello Morais.

Campos tinha pouco espaço na Revista, portanto seu histórico foi diminuído, mas rico em indicações e referências da época:

Por que, quando, onde e como nasceu a capoeira?Na transição, provavelmente, do reinado português para o império livre, pela necessidade do independente, fisicamente fraco, de se defender ou agredir o ex-possessor robusto, nos distúrbios, então freqüentes em tavernas e matulas, por atritos constantes de nacionalidade.99

98Revista Kosmos, março de 1906. 99Revista Kosmos, março de 1906.

Conforme esta apresentação da capoeira, o autor a desliga completamente de qualquer relação com a cultura africana. Para ele, ela representou sim a luta do mais fraco contra o mais forte, mas em sua visão o mais fraco era o mestiço brasileiro, inferior ao estrangeiro que, no caso do Brasil à época, tratava-se evidentemente do colonizador português. Assim, Campos desviava a origem da capoeira das tradições africanas para dar a ela o status de cultura nacional, portanto branca mesmo que ainda mestiça. Aliado aos conceitos melhoradores da raça brasileira, o mestiço era sim inferior e fraco, frente às tradições européias, como ingleses, franceses ou alemães, portanto a capoeira seria uma autêntica invenção cultural nacional para superar sujeitos de outras nacionalidades. O autor reforça esta idéia de inferioridade da raça:

Creou-a o espírito inventivo do mestiço, por que a capoeira não é portugueza nem é negra, é mulata, é cafusa e é mameluca, isto é – é cruzada, é mestiça, tendo-lhe o mestiço anexado, por princípios atávicos e com adaptação inteligente, a navalha dos fadistas da mouraria lisboêta, alguns movimentos sambados e simiescos do africano e, sobretudo, a agilidade, a levipedez felina e pasmosa do índio nos saltos rápidos leves e imprevistos para um lado e outro, para vante e, surprehendentemente, como um tigrino real, para traz, dando sempre a frente ao inimigo.100

Segundo as palavras de Campos, a capoeira era um fenômeno cultural basicamente nacional, protagonizado pelo mestiço. Conforme discutido anteriormente, a questão de associar a cultura popular a uma idéia generalizadora de mestiço, fez com que se perdesse a identidade com as manifestações africanas na imagem totalizadora do tipo nacional. O autor negou visivelmente não ser a capoeira africana, dando aos africanos a contribuição de apenas alguns movimentos sambados e simiescos. Referente às características simiescas revela o autor possuir uma visão elitista sobre a imensa tradição cultural africana, uma vez que esta associação intensificou-se

principalmente a partir de teses defendidas pela ideologia do branqueamento já discutidas.

Mestiço era o brasileiro, o personagem nacional que estava em fase de construção e consolidação desde o movimento romântico do início do séc. XIX. Ser cultura nacional, dissociando-a das tradições culturais africanas foi uma primeira característica que deu condições à capoeira passar a ser aceita socialmente, mesmo que ainda de forma muito gradual. Podemos observar que ele valorizou por demais as características herdadas dos ameríndios, bem como dos portugueses, relegando as já citadas características africanas ao acaso dos movimentos corporais.

Quanto à origem da capoeira ele discutiu a questão da capoeiragem carioca, grande centro até mesmo exportador de capoeiras e malandragem.

Tendo a sua gênese em dois pontos diversos: ao norte em Pernambuco, nos primeiros faquistas contra o marinheiro, como, em represália a autonomasia de cabritos, apelidavam os cafagestes o ex-possessor, apelido aliás honroso, e, ao sul, aqui no Rio, nos primeiros capoeiras propriamente ditos (porque a capoeira legítima é por excelência carioca).101

Assim Campos entrou no âmbito das origens da capoeira atribuindo a ela ser brasileira, bem como carioca, superando a muito perseguida capoeiragem recifense. Ele não fez nenhuma menção a capoeiragem de São Salvador da Bahia ou ao grande celeiro de capoeiras que fora o recôncavo baiano. Como sabemos de larga data ter sido a capoeira famosa também na capital soteropolitana102, o autor demonstrou aqui ter conhecimentos superficiais, atados à capital fluminense, o que exige cautela ao analisarmos sua fala e a fundamentação de seu discurso para a prática da capoeira.

101Revista Kosmos, março de 1906.

Posteriormente ele analisou os meados do séc. XIX, referindo-se às décadas de 1870 e 80 como o período áureo da capoeira, atribuindo a este uma fase de instituição e profissionalização da prática da arte-luta. Tocando no assunto das maltas partidárias, não pode deixar Campos de referir-se aos Guayamus e Nagoas, protagonistas da fase clássica dos distúrbios causados em épocas de eleições. O autor fez referência a Sampaio Ferraz, Chefe de Polícia já citado. No entanto, em momento algum o autor fez crítica a esta perseguição, ou a posição da polícia quanto à capoeira:

Quando chefe de polícia do governo provisório, em 1890, Sampaio Ferraz, deu caça tenaz e de morte às maltas, conseguindo destroça-las, pela elimininação dos chefes e dos imediatos de mais ascendência.103

Assim, ele apenas caracterizou a perseguição dada à capoeira, praticamente atestando a necessidade de se controlá-la, uma vez que citou Sampaio Ferraz e sua tenacidade ao realizar seu trabalho de destroça-las. Como ele escreveu este artigo numa fase em que mudanças indicavam novo rumo à própria prática da capoeira, acredito que o autor assim difundia a capoeira, como se cada abuso cometido por seus praticantes sempre estivesse na atenção da polícia e das forças públicas, direcionando- a civilizadamente.

Ao tratar de sua atualidade, o escritor fez críticas aos capoeiras de sua geração:

Hoje a capoeira é usada com caráter menos profissional e sem arregimentação séria e disciplinada como outrora, quando a organização e a manutenção das maltas obedeciam às disciplinas de uma regulamentação perfeita e um verdadeiro quadro de classe, dsede as chefias e as sub-chefias até os carrapetas..os capoeiras modernos não levam já a esses extremos o amor a arte; são mais, a bem dizer mashorqueiros navalhistas, faquistas enfim, estrilhadeiros avulsos, que própria, exclusiva, profissional e arregimentamente capoeiras.104

103Revista Kosmos, março de 1906. 104Revista Kosmos, março de 1906.

Concluiu o escritor ser a capoeira de sua época prática dada aos ladrões, golpistas, desordeiros e vadios. Percebemos que ele acabou também idealizando o passado da capoeira, pois ele enfatizou a disciplina de outrora em virtude de uma hierarquia, com chefes e sub-chefes, inferiorizando os capoeiras de sua geração, acreditando que a arte precisava assim ser resgatada e que reerguida.

Explorando também o autor Lima Campos (na obra a autora ainda não havia tomado ciência do nome deste autor, uma vez que sua publicação fazia-se apenas com as iniciais L. C.), ela indicou que ele tirou da capoeira sua essência africana105, atribuindo aos índios da terra a levipedez felina e pasmosa nos saltos rápidos, leves e imprevistos para um lado e outro, para vante e, surprehendentemente, como um tigrino real, para traz, dando sempre frente ao inimigo. Ao negro criador da luta, restou ter oferecido à capoeira alguns movimentos sambados e simiescos dos africanos.

Somando estas investigações sobre o texto de Lima Campos, cabem alguns questionamentos: baseado em qual capoeira o autor argumentou tais características fundamentando assim um discurso sobre sua trajetória e prática? Segundo sua visão, qual o sentido de se praticar a capoeira? Para quais sujeitos e grupos ele estava dirigindo sua prática?

Acredito que a resposta a estes questionamentos esteja na própria condição social do autor, representante da mais concreta visão hegemônica que me deparei através da pesquisa. Lima Campos não escondeu sua visão cultural branqueadora, onde buscou dissociar da cultura nacional por ele imaginada as tradições sócio- culturais africanas; para ele, a capoeira aparecia como produto da mestiçagem cultural

nacional, sintonizando-se mais uma vez com o discurso de Mello Morais de se aceitar uma capoeira disciplinada e vigiada pelos grupos dominantes, contribuindo para a disseminação da capoeira esportiva, valorizada como luta nacional.

No documento Luiz Felipe de Oliveira Faustino (páginas 81-90)

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