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d Rituais de conflito.

No documento Luiz Felipe de Oliveira Faustino (páginas 52-59)

PLÁCIDO DE ABREU: O OLHAR CRIMINALIZADO DA CAPOEIRA (1885-1890)

2. d Rituais de conflito.

Ao longo da Introdução, Abreu descreveu os grupos organizados e sua forma de atuação nas ruas. Nesta descrição temos a caracterização de uma série de rituais que possibilitavam aos praticantes da luta uma questão fundamental para sua constituição como grupo social: sua identidade.

Nesse sentido, Abreu fez uma relação dos termos e gírias característicos das falas dos capoeiras e que expressavam sua natureza social popular e rebelde perante a ordem social imposta pelos grupos dominantes. Mas do texto também extraí casos em que as formas de se marcar e realizar um conflito na rua obedecia a uma série de atitudes consentidas por ambos os lados e que culminava com a luta.

Então, sua tarefa de traduzir as gírias dos capoeiras fez mais do que simplesmente descrever os tipos sociais da malandragem, ele nos abriu as portas do mundo clandestino das culturas marginalizadas deste período. Assim podemos pensar o universo dos capoeiras não somente através da visão das elites, mas também a partir de sua realidade social e dos próprios meios que utilizavam para sobreviver.

Nesta parte, Abreu nos revelou segredos da capoeira a partir da linguagem própria dos praticantes, das relações entre os grupos e maltas rivais, seus modos de atuação, etc. O autor demonstrou conhecer estes aspectos, resultando daí sua fala parecer muito “de dentro” da capoeira, ou seja, ele teria praticado os movimentos para descrevê-los tão fielmente na forma poético-literária. Preferi expor todo o texto para depois analisá-los separadamente:

Branquinha: aguardente Porre: pifão, bebedeira

Cambar: passar de um partido para outro Tapear: enganar o adversário

Marcha: procura do Adversário

Leva: grito de vitória, perseguição ao inimigo Pegada: encontro de dois partidos inimigos

Bramar: gritar o nome da província ou casa a que pertence o capoeira Senhora da Cadeira: Santana

Velho carpinteiro: São José Velho cansado: São Francisco Senhora da Palma: Santa Rita Espada: Senhora da Lapa

Carrapeta: pequeno esperto e audacioso que brama desafiando o inimigo Sarandage: pequeno capoeira, miuçalha

Vou ver-te cabra: ameaça para brigar

Alfinete, biriba, biscate ou furão: estoque ou faca Sardinha: navalha

Endireitar: enfrentar com o inimigo Bracear: dar pancada com os braços Lamparina: bofetada

Trastejar: dar um golpe falso Chifrada: cabeçada

Caveira no espelho: cabeçada na cara Alto da sinagoga: rosto

Pantana: volta sobre o corpo, aplicando os pés contra o peito do adversário

Rabo de arraia: volta sobre o corpo, rodando uma das pernas de encontro ao inimigo Passo de siricopé: pulo que dá o capoeira depois que faz negaça, para ferir

Caçador: tombo que o capoeira dá, arrastando-se no chão sobre as mãos e o pé esquerdo e estendendo a perna direita aos pés do adversário.

É direito: é destemido Firma: não foge

Grampear: pegar à unha o adversário Foi baleado: está ferido

Melado: sangue Mole: covarde Piaba: sem valor

Dar sorte: cair em ridículo ou cousa bem desempenhada

Passo de constrangimento: vacilação do inimigo quando leva um tombo ou é vencido; ato de retirar-se cabisbaixo

Rujão: batalhão ou sociedade

Distorcer: disfarçar ou retirar por qualquer motivo Desgalhar: fugir da polícia

Jangada: xadrez de polícia Palácio de cristal: detenção Chácara: Casa de Correção

Quero estia, quero tasca, senão bramo: quero parte disto ou daquilo, roubado, senão denuncio

Arriar: deixar de jogar capoeiragem.66

O autor nos demonstrou que os conflitos entre maltas eram travados por intermédio de rituais consagrados, geralmente iniciando-se com a provocação de um dos partidos ou grupos rivais, bramando o nome da freguesia correspondente e intimidando o adversário através da apresentação das armas, alfinete e sardinha, e a contenda propriamente dita, ou seja, a luta de capoeira. Observamos através destes indícios que a capoeira não possuía neste caso roda, uma vez que as lutas eram travadas através de conflitos no meio da rua, chamados pela polícia de correrias, item que integra o texto de criminalização da capoeira em 1890. Também observamos que não faziam parte desta capoeira os instrumentos e ritmos musicais que a caracterizam atualmente.

Nestes conflitos eram testados os golpes da capoeiragem, aplicados com os pés e cabeças e também a habilidade no uso de armas brancas ou cortantes, o que atesta as argumentações anteriores quando das agressões efetuadas pelos capoeiras. Observamos que os duelos entre capoeiras eram importantes na medida em que direcionavam mais ou menos treinamento, quando de uma surra levada por um dos lados. Vimos que os feridos, além de humilhados perante os capoeiras vencedores, tinham também sua fama questionada e acabavam presos pela polícia.

Outra conseqüência eram os mortos. A quantidade de agressões dolosas descritas por Abreu foi utilizada pela imprensa e pelos grupos dominantes para dar noção ameaçadora à capoeira, fazendo dela um “mal social”, tornando-a verdadeiro crime.

A presença da polícia não representava aos capoeiras problema, uma vez que na última passagem o capoeira ainda reclamava privilégios em seu processo, querendo tasca e estia, provavelmente diminuição ou até mesmo absolvição da pena, o que indica saber de informações que não podiam ser denunciadas.

Analisando a narrativa dos capoeiras de Abreu, observamos que o aspecto ritual mais importante na prática dos capoeiras era a identidade. Como eram os bairros (ou freguesias) os motivos das disputas, identificar-se com uma freguesia era fundamental no ingresso do sujeito para o universo da capoeira. Já vimos também que a cor foi outra forma ritualizada encontrada por Abreu para esta identificação. Os guayamus eram identificados pela cor vermelha, e os nagôas pela cor branca. A questão das cores destes grupos é importante na medida em que representa certo reconhecimento da capoeira como instituição social. Na narrativa o autor assim expôs como a questão da cor causava verdadeiros conflitos em plena cidade pulsante:

Assim quando em uma fortaleza (taverna) encontram-se capoeiras adversários, o guayamu pede vinho e aguardente, derrama esta no chão e saracotea em cima, lançando por fim o vinho sobre a aguardente. (...) é bastante isso para começar a luta, porque o capoeira não consente que a sua cor seja pisada e muito menos que se coloque sobre ela a cor dos adversários.67

Podemos observar mais uma vez os capoeiras sem a menor preocupação com represálias policiais, pois entravam em estabelecimentos comerciais e causavam conflitos pelo simples fato de encontrarem adversários, sem ter havido motivação prévia para tal. Destaco que o ritual de provocação de um conflito iniciava-se com a utilização de elementos constitutivos de seu próprio dia-a-dia, como botequins, bebidas alcoólicas, etc., justamente características que levaram as autoridades policiais e os intelectuais posteriormente a associarem estas práticas à própria prática dos capoeiras, culminando assim com sua proibição. Pelo fato do capoeira entrar em um recinto comercial causando uma briga, vemos que a identidade não passava apenas pela forma de se vestir, mas também de se portar, bebendo e até mesmo brigando na taverna, querendo assim através da provocação dominar o lugar, garantindo influência e situação privilegiada.

Abreu nos descreve mais um característico caso ocorrido após a saída de um préstito partidário, em que os capoeiras encenam tanto como seguranças como milicianos organizados:

Quando, por exemplo, a banda de música sahe do centro da cidade, isto é da terra dos Guayamús, e dirigi-se para os lados da Lapa ou Cidade Nova, os capoeiras que pertencem aqueles partidos acompanham o Batalhão, prevenidos para o encontro com os Nagôas, visto irem à “terra alheia”.

Estes já os esperam e, chegada a música ao local onde se acham, sahe o carrapeta (pequeno esperto e atrevido) de entre os companheiros com direção aos Guayamús e brada:

_É a Lapa! ... é a Espada. Quando é daquela província. _ É a Senhora da Cadeira! Quando é de Santana. _ É o Velho Carpinteiro! Quando é de São José. E assim por diante. Então trava-se a luta.68

Assim observamos que o fato dos capoeiras irem acompanhando os desfiles e marchas públicas já podia ser motivo para atenção das autoridades policiais, mas não, quem os acompanhava eram justamente os capoeiras que intencionavam encontrar-se com os rivais para suas contendas. Vemos também os carrapetas demonstrando audácia e valentia, indo à frente dos préstitos gritando o nome dos inimigos a sua primeira vista.

Acredito que estes rituais tinham por papel dar identidade aos grupos sociais marginalizados, do qual os capoeiras tinham como alternativa ingressarem nas maltas e desafiarem a ordem pública, que era na realidade sua própria algoz, atenta controladora.

Pareceu-me ter sido uma forte motivação para ingressar no universo da capoeiragem, pertencer o sujeito a uma freguesia (ou bairro), ser conhecido nas ruas por valente, adquirir “status” numa sociedade elitizada, na qual os negros não tinham praticamente nenhuma chance de ascensão.

Observamos assim que Abreu não aceitava a condição social dos que a praticavam, mas ele também não deu nenhum indício de que desejava sua melhoria nem apontava alternativa política para tal. Assim em sua obra temos uma tendência a se aceitar o controle da capoeira e sua prática neste momento, e que principalmente esta opinião surgia em função da situação de marginalização social dos que praticavam a arte-luta, os malandros e capangas. Veremos com o próximo autor pesquisado, Mello

Morais, que este tinha objetibvos mais claros e definidos para uma nova prática da capoeira, baseado em outras influências que pretendi aprofundar e investigar.

CAPÍTULO 3

MELLO MORAIS: A CAPOEIRA COMO LUTA NACIONAL, A PARTIR DE UM OLHAR

No documento Luiz Felipe de Oliveira Faustino (páginas 52-59)

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