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O CARÁTER POLISSENSÍVEL DO SOM

No documento Camila Portella Neves.pdf (páginas 73-81)

Como se observou nos capítulos anteriores, a capacidade de compreensão do deficiente visual, seja no que tange ao que este apreende quando assiste televisão ou de suas atividades rotineiras, advém da capacidade desses sujeitos elaborarem imagens, ou mapas mentais e que isso não seria possível sem a percepção. Em outras palavras, o conjunto desses mapas mentais possibilita que o deficiente elabore uma série de proposições capazes de o encaminharem à simulação do mundo ao seu redor.

É certo que tal conhecimento é adquirido ao longo dos anos, com o desenvolvimento das operações cognitivas do homem. Neste sentido, a pessoa não pode apenas identificar sinais brutos, mas precisa exercer uma atividade de discriminação, reconhecimento, identificação dos sinais que o ambiente infere para que a partir deles possam elaborar mapas mentais. É um processo de registro temporário ou mesmo permanente das informações que vem à mente para compreensão do significado que é seguida por um ajuste às estruturas cognitivas existentes.

Reforçando este pensamento, em pesquisa anteriormente descrita, 100% dos DVs entrevistados acredita que, ao assistir TV, conseguem imaginar o que está sendo repassado. E mais, 97% acredita que tal imaginação é a responsável pela compreensão do que é transmitido.

A atividade dos deficientes visuais de assistir televisão desencadeia operações perceptivas sinestésicas, advindas da capacidade desses sujeitos elaborarem uma discriminação polissensível.

A palavra “Poli” indica muitos, vários. Já sensível diz respeito à ação dos sentidos, isto é, aquilo que pode ser percebido pelos sentidos, o mundo sensível.

Assim, o DV, sem contar com o acesso à imagem, consegue apreender o que é repassado pela televisão através da discriminação sonora a qual é capaz de provocar diversas associações através do modo polissensível como é capaz de experimentar as sensações.

Portanto o som, em seu caráter comunicativo, ultrapassa as questões da audição, assumindo um perfil polissensível, pois admite a operação de todos os demais sentidos os quais, em simultaneidade, funcionam de modo a levar à compreensão e interpretação do que está sendo repassado pela televisão.

Em verdade, não é o som o grande responsável pela formação de imagens mentais as quais geram a compreensão e elaboração do que o DV assiste na TV, mas sim a série se sensações causadas pela discriminação sonora, que é decorrente de uma discriminação polissensível. Sendo assim, o som é aqui entendido como resultado de operações cognitivas que registram uma maneira peculiar de perceber o mundo.

A exemplo tem-se os cegos de nascença. Muitos frisaram que, pelo fato de nunca terem acesso à visão, não possuem memória visual de objeto ou de coisa alguma. Assim, para estas pessoas, quando ouvem a palavra “caneta”, por exemplo, a imagem mental que elaboram é aquela que anteriormente adquiriram através do tato. Isto é, precisaram previamente ter acesso a uma caneta, apalpá-la, para que assim guardassem a imagem daquele objeto em suas mentes. Todas as vezes que alguém se refere oralmente a uma caneta, recordam dessa imagem tátil anteriormente expecienciada.

O som, por ele mesmo, não proporciona simplesmente elaboração de imagens mentais. Mais do que isso, o que acontece é uma expansão das operações cognitivas do deficiente visual, no sentido que esse som traga a possibilidade de compor imagens polissensíveis.

Mas há, ainda, a possibilidade de que, dentro desta discriminação polissensível, alguns sentidos se sobressaiam sobre outros. Esta hierarquização faz sentido quando pensamos no grupo aqui estudado, os deficientes visuais, que desprezam o sentido da visão, mas dão maior relevância à audição e ao tato.

Conforme observado em anterior análise dos dados levantados nesta pesquisa, a maioria (57%) dos DVs entrevistados alega não sentir dificuldade para entender o que é repassado pela televisão, ainda que não possam contar com o recurso imagético. Através destes dados, percebe-se a questão da predominância de um sentido sobre o outro. O código sonoro servirá de base para expansão das operações cognitivas que levem à compreensão do que é repassado.

A força do código sonoro para a compreensão do DV é tamanha que a pesquisa também relatou que 93% dos entrevistados acredita que a TV ainda precisa aprimorar seus recursos auditivos. Além do mais, 96% dos DVs acredita que suas capacidades auditivas aprimoradas em decorrência da perda da visão são o melhor recurso para a compreensão do que assistem na TV.

Portanto, a visualidade se expande para além dos exclusivos estímulos visuais feitos de cor e luz, mas incorpora o som, na sua presença ou ausência, além do movimento e a textura: a espacialidade se constrói através de um complexo domínio poli-sensível de múltiplas características perceptivas. (FERRARA, p. 18-19).

Mesmo sem a capacidade visual há, portanto, uma série de elementos táteis, sonoros, olfativos, paladares, que podem concorrer para a compreensão da imagem pelo DV. Não está vendo, mas o tato e o som, por exemplo, podem funcionar não como elementos compensatórios da perda de visão, mas como expansões das operações cognitivas dos deficientes. Isto significa que o DV pode não ter acesso à imagem, mas possui acesso à visualidade por conta dessa expansão cognitiva.

(...) a visualidade vai muito além da imagem e, como consequência, não é apenas visual, mas polissensível e híbrida, pois convoca a energia de todos os sentidos que, em diálogo, orientam-se para a mediação, para a troca que não é linear porque, não planejada, pode encontrar paradoxos que assinalam incomunicação ou sua estéril realidade (FERRARA, 2009, p. 11)

A percepção polissensível permite, portanto, uma maior sensibilidade ao que se transmite na televisão.

Sendo o DV submetido a um estímulo sonoro, podemos dizer que ele conseguiu imaginar algo, ou seja, criar uma imagem mental a partir da experiência multissensorial trazida pelo som.

Em todo pensamento decorrente de uma percepção, há uma espécie de codificação entre a coisa percebida e o resultado desta percepção. “(...) Nossos cérebros fabricam imagens que pensamos “perceber”. É significativo que o fato de que toda percepção – toda percepção consciente – tem imagens características”. (Baterson, 1986, p. 37).

Como já discutido, é certo que alguma coisa dentro da cabeça do DV reagiu de maneira eficiente para que ele compreendesse o significado do som e que tal compreensão se deu pela geração de imagens mentais, mapas, decorrentes da percepção.

Contudo, não se pode dizer exatamente como são tais imagens mentais, ou mesmo como são geradas. Podemos apenas afirmar que o deficiente faz uma analogia, através de uma memoria, talvez borrada, ou talvez bastante nítida, do que ele pode se lembrar de experiências anteriores – sejam tais experiências visuais (para aqueles que já enxergaram), táteis, auditivas, etc.

Sobre esta questão, discorre Baterson (1986, p. 43) que “(...) O mecanismo da formação de imagens permanece quase totalmente misterioso. Como e feito, não sabemos - nem mesmo com que finalidade”.

A exemplo disto, no segundo capítulo foi descrito o depoimento de um entrevistado de 60 anos, ANBB, o qual argumenta que quando ouve a voz de um ator que costumava ver na televisão na época em que enxergava, hoje não consegue imaginá-lo diferente. A imagem que forma desse ator é a de um jovem, mesmo que hoje tenha envelhecido e faça papéis de um senhor. Neste sentido, cada um elabora as imagens de maneira peculiar, diferente.

Um conhecimento produzido em uma umwelt particular, neste caso dos deficientes visuais, possui um caráter tácito, no sentido de não ser comunicável de maneira plena.

O homem utiliza-se de uma série de formas de conhecimento no intuito de permanecer no tempo, dentre eles, o conhecimento tácito.

Conhecimento tácito é aquele que a pessoa detém, contudo não consegue comunicar por meio discursivo. Em outras palavras, o discurso é entendido por uma sucessão de signos que se efetuam ao longo do tempo. A principal característica do discurso é a temporalidade. Mas existe um outro tipo de conhecimento que parece escapar disto. Ele não pode ser reduzido, pelo menos não integralmente ao discurso. É o chamado conhecimento tácito.

O termo “conhecimento tácito” tem origem latina, e significa silencioso. Como grande idealizador desta teoria, argumenta Polanyi (1966, p. 4):

I shall reconsider human knowledge by starting from the fact that we can know more than we can tell. This fact seems obvious enough; but it is not easy to say exactly what it means.

Take an example. We know a person’s face, and can recognize it among a thousand, indeed among a million. Yet we usually cannot tell how we recognize a face we know. So most of this knowledge cannot be put into words.

Neste sentido, pode-se dizer que o conhecimento tácito é aquilo que se sabe, mas que não se consegue explicar. Em outras palavras, este conhecimento é um saber que se detém, mesmo na ausência da capacidade de se verbalizar.

Apenas é possível adquirir um conhecimento quando a pessoa mantém contato direto com situações que propiciam novas experiências, as quais são sempre assimiladas a partir dos conceitos de que o indivíduo já dispõe – conhecimento tácito. Daí Polanyi sustentar o caráter social do conhecimento, tendo em vista de que este se baseia na experiência pessoal da realidade. Assim, a experiência individual possibilita a adaptação desses conceitos e reinterpretação da linguagem utilizada.

Como se observa, o conhecimento tácito é complexo, sendo impossível reproduzi-lo num documento ou numa base de dados. Em outras palavras, seria impossível imprimir numa pesquisa realizada com os deficientes visuais todo o funcionamento de suas mentes.

É este tipo de conhecimento que rodeia o dia-a-dia das pessoas, contendo uma aprendizagem tão pessoal a ponto de que suas regras podem ser dificilmente separáveis da forma como cada indivíduo age.

Em decorrência disto, sendo experiencial, pessoal, específico e ligado a um dado contexto, o conhecimento tácito se constitui bem mais difícil de formalizar, comunicar e partilhar.

Ou seja, o individuo detém esse conhecimento, mas não consegue dizer, expressar, o que acaba dificultando a pesquisa empírica.

Isto significa que por mais criteriosa que seja a pesquisa realizada com o grupo aqui estudado, há algo sempre impossível de ser repassado. A exemplo disto, o que um cego de nascença entende por imagem?

Em casos como estes, durante a realização da pesquisa, é necessário baixar o nível da hipótese para conseguir testá-la. Para entender a questão da formação de imagens mentais pelos deficientes visuais, a pesquisadora precisou dispor de uma experiência empírica, anteriormente delineada no

segundo capítulo preferindo perguntar ao grupo pesquisado se eles conseguiriam “imaginar o que estava sendo repassado”, ao se questionar se os mesmos conseguiriam formar imagens mentais.

De certo, a utilização de termos como “imagens mentais” não seria totalmente compreendida pela maioria dos entrevistados tendo em vista o grau de escolaridade dos mesmos. O questionário enfrentado pelos deficientes, portanto, abordou indiretamente a questão da imagem como forma de testar as hipóteses e construir consequências testáveis.

Assim, conforme argumentado no início deste capítulo, a pesquisa mostra resultados de maneira indireta quanto à polissensibilidade, baseado na afirmativa do DV de que consegue imaginar o que está sendo repassado através do som.

Ocorre que não se pode saber o que estes deficientes querem dizer com “imaginar coisas” porque nesta questão há muito de conhecimento tácito, ou seja, não comunicável.

O que acontece na cabeça do DV, ou seja, como ele arruma essa informação, como o cérebro dele vê, visualiza, uma possível imagem sonora? No caso dos DVs, a resposta destas perguntas exigia experimentos mais sofisticados, com a utilização de um laboratório específico, que é tarefa dos estudiosos de ciências cognitivas.

O questionário aplicado ao grupo aqui estudado levanta essas possibilidades, mas não é conclusivo no sentido de exigir testes mais finos para as consequências observadas.

CONCLUSÃO

A importância da TV no Brasil é tamanha que ela se torna o principal meio selecionado não apenas pelos videntes, mas também pelos deficientes visuais, mesmo que estes não tenham acesso às imagens.

As imagens possuem o poder de garantir a sobrevivência do homem no sentido de que o mesmo está programado biologicamente para reconhecer as coisas que o cercam e a partir disto saber distinguir o que lhe é benéfico para garantir a sua permanência. Elas são instrumento primordial na TV, visto que esta tem o importante papel de passar as informações adicionais ao som.

Mas as imagens não podem ser pensadas como alternativas ou complementares ao som. Apesar da enorme valorização da imagem pela televisão, esta ainda não vem trabalhando em melhorias para que aqueles que não detém o recursos visual possam ter acesso a toda, ou ao menos a grande parte da informação transmitida.

Tal importância conferida ao som se dá porque no caso do DV, mesmo sem o recurso da imagem, ao assistir à televisão, esses sujeitos acabam por captar as informações apenas pelo que ouvem. Neste tocante, o som fomenta a imaginação, proporcionando a estes deficientes a formação de mapas mentais.

Em outras palavras, a mente do deficiente visual reage de maneira eficiente para que ele compreenda o significado do som ao assistir televisão e tal compreensão se dá pela geração de mapas mentais decorrentes da percepção.

Como receptores, os DVs integram as mensagens transmitidas pela televisão em suas vidas, construindo suas realidades ao analisar o que é transmitido.

A discriminação sonora realizada pelo deficiente ao assistir televisão provoca, portanto, uma série de associações através da maneira polissensível que essas pessoas vivenciam ao assistir televisão.

Em verdade, o som captado pelo DV desenvolve um perfil polissensível, acionando a operação dos demais sentidos que funcionarão coordenados à compreensão do que está sendo transmitido pela TV. É a série de sensações causadas pela discriminação sonora, e não o som propriamente dito, a

responsável pela formação dos já discutidos mapas mentais. Este caráter traz ao som o papel de expansor das operações cognitivas do deficiente visual.

Ocorre que é muito difícil dizer exatamente como esses mapas mentais se formam na mente do deficiente visual. Não se sabe que tipo de imagens mentais se formam para a compreensão do que é repassado. Esta questão perpassa sobre discussões de conhecimento tácito, conforme exposto no último capítulo.

Em outras palavras, do conjunto de hipóteses, algumas são de alto nível e a metodologia utilizada – questionário – procurou baixar o nível para consequências testáveis e observáveis, mas dada a questão do conhecimento tácito, algumas hipóteses não puderam ser plenamente satisfeitas durante esta pesquisa, pois merecem desenvolvimento mais aprofundado, talvez por profissionais que trabalhem diretamente com a questão do funcionamento cerebral.

No documento Camila Portella Neves.pdf (páginas 73-81)