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CAPÍTULO 1 PARA UMA COMPREENSÃO DA COOPERAÇÃO JURISDICIONAL

1.3. Erik Jayme: características do Direito Internacional Privado Pós moderno

1.3.2. Características do Direito Internacional Privado Pós-Moderno

Vivemos em um tempo pós-industrial, uma era de desregulamentação, de privatizações, de forte exclusão social, de euforia do mercado e do individualismo, de globalização incontrolável, enfim, em uma época de crise pós-moderna. Uma crise de mudança.

109 “A partir dos direitos do homem, fica possível imaginar um ‗direito dos direitos‘ que permitiria

aproximar, e não unificar, os diferentes sistemas. Aproximá-los numa harmonia feita tanto da subordinação deles a uma ordem supranacional como da coordenação deles segundo princípios comuns. Como nuvens que, levadas por um mesmo sopro, se ordenassem aos poucos guardando seu ritmo próprio, suas formas próprias”. DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 306.

110 DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2004, p. 33. 111 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um direito Mundial. Rio de Janeiro: Editora Lúmen

Com a expressão pós-moderno, Erik Jayme demonstra o caráter dessa mudança, de crise de modelos, de variabilidade do nosso tempo e do direito112. Essas mudanças não se referem somente a conceituação e finalidade do DIPr, para além do formalismo metodológico, mas abarca o engajamento da disciplina com a concretização da dignidade humana.

Antes de mostrar a concepção pós-moderna do DIPr, é importante conhecer o diagnóstico feito pelo próprio Jayme do que seja o DIPr na concepção clássica113:

O DIPr clássico tem como finalidade principal a garantia da harmonia na comunidade jurídica internacional e na execução das decisões estrangeiras. É um ideal formal e objetivo, devido a autoridade de grandes autores do século XIX como, por exemplo, Savigny. A justiça conflitual baseia-se na ideias de conexão, no caso concreto, com um país, que justifique a aplicação do direito desse país, qualquer que seja o resultado concreto da aplicação dessa norma.

Segundo Jayme, a crítica à concepção clássica de DIPr desenvolveu-se ainda na doutrina moderna, sobretudo com os autores americanos, que favoreceram uma certa materialização do DIPr, no sentido de que a melhor lei – a lei mais favorável ao sujeito mais vulnerável – deve ser aplicada114. Aqui, a finalidade material da norma tem precedência, e leva a flexibilização dos métodos do DIPr – amplamente defendida por Jayme115. Por isso, em vez de considerá-lo um mero direito de remissão, Erik Jayme encara o DIPr como um verdadeiro direito de decisão, cujo maior objetivo é promover a regulamentação adequada e materialmente mais justa da questão plurilocalizada.

Segundo Jayme, “de certa maneira, o direito internacional privado aparece como um sistema que preserva a sua estrutura tradicional e que é, ao mesmo tempo, aberto a realização de valores novos”116 de uma sociedade pós-moderna, quais sejam, o pluralismo, a comunicação, a narração e o retorno aos sentimentos.

Todo o conjunto de ideias de Erik Jayme gira em torno de dois eixos de pensamento. Primeiramente, objetiva-se alcançar a igualdade entre os Estados, em uma

112 JAYME, Erik. Identité culturelle et integration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de La Haye, tome 251, 1995, p. 36.

113 JAYME, Erik. Direito Internacional Privado e cultura pós-moderna. In: Cadernos do Programa de

Pós-Graduação em Direito – PPGDir. / UFRGS. Vol. I, n. 1, 2 ed. – Porto Alegre: PPGDir./UFRGS, 2004, p. 105.

114 JAYME, Erik. Identité culturelle et integration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de La Haye, tome 251, 1995, p. 44-45.

115 JAYME, Erik. Direito Internacional Privado e cultura pós-moderna. In: Cadernos do Programa de

Pós-Graduação em Direito – PPGDir. / UFRGS. Vol. I, n. 1, 2 ed. – Porto Alegre: PPGDir./UFRGS, 2004, p. 107.

116 JAYME, Erik. Identité culturelle et integration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de La Haye, tome 251, 1995, p. 246.

sociedade globalizada. Para isso, é preciso criar e manter bases do tratamento isonômico entre ordenamentos jurídicos de todos os Estados, independente de se tratar de leis de países africanos, muçulmanos, europeus, americanos. Esse tratamento isonômico, sem discriminações, lançando as bases para a paz, acabaria por harmonizar, primeiramente, as decisões judiciais, e também, como se quer nesse trabalho dissertativo, a prestação jurisdicional. Essa igualdade de tratamento carrega o respeito pela sentença estrangeira e um verdadeiro acesso à justiça para os casos privados como conexão internacional.

Segundo Jayme, “a harmonia das decisões constitui o objetivo central do DIPr, pela busca da garantia de que uma situação de direito privado será julgado do mesmo modo qualquer que seja o lugar ou a sede da jurisdição convencionada”117.

O segundo eixo de pensamento de Erik Jayme é a igualdade material e formal entre todos os indivíduos dos mais diversos Estados. Entretanto, essa comunhão jurídica universal não é indiscriminada, passando por cima da multiculturalidade, mas segue os pressupostos de Mancini quanto ao respeito do direito alheio, fruto das características intrínsecas de uma sociedade. Jayme vê todo o direito internacional como um instrumento de respeito à identidade cultural da pessoa humana – o que é o cerne de toda a sua preocupação.

Assim como Mancini, a hipótese de trabalho de Jayme é a de que o direito é expressão cultural de um povo118 – o clima, a geografia, a história, a raça, a língua, a religião, as tradições de um país e os costumes de um povo -, e sofre reflexos das mudanças dos valores de um povo, assim como das mudanças nas conjunturas econômica, histórica, ética e religiosa de seu tempo. Jayme ressalta a importância da dimensão cultural do direito no âmbito do DIPr, defendendo sempre a preservação das essencialidades culturais de um indivíduo ou de um povo, quando forem emanadas decisões de DIPr.

Segundo o professor de Heidelberg, o ponto de encontro entre a cultura pós- moderna e o direito são os valores que tem em comum. E esses valores Erik Jayme apresentou em suas aulas na Conferência de Haia de DIPr, em 1995, quando delineou uma lógica inovadora para o DIPr que tenta dar soluções para as incertezas criadas pela globalização econômica. Jayme propôs a teoria do DIPr pós-moderno. Como já

117 JAYME, Erik. Identité culturelle et integration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de La Haye, tome 251, 1995, p. 89.

118 JAYME, Erik. Identité culturelle et integration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de La Haye, tome 251, 1995, p. 56.

mencionado, a sua teoria está baseada em quatro elementos chave: o pluralismo, a comunicação, a narrativa e o retorno aos sentimentos119.

A primeira característica do DIPr pós-moderno é o pluralismo. Esta característica trata do pluralismo de modelos a seguir, de formas de organização social, de estilos de vida etc. O mundo pós-moderno é caracterizado por um direito à diferença. O pluralismo reforça a ideia de pluralidade e autonomia da vontade das partes120, o que é essencial e amplamente assegurado no DIPr. Da mesma forma, o pluralismo protege a identidade cultural da pessoa121.

Jayme refere o pluralismo de fontes legislativas a regular um determinado fato. Este pluralismo é hoje total, havendo profícuo diálogo entre as fontes nacionais, regionais, multilaterais e internacionais - este pluralismo de ordens jurídicas normativas não é mais que um excesso de norma, que não é traduzida em efetividade na mesma proporção. Também existe o pluralismo de sujeitos a proteger, e também contra quem proteger - sujeitos muitas vezes difusos, como o grupo de consumidores, ou os que se beneficiam da proteção do meio ambiente. Sujeitos nacionais e estrangeiros, às vezes ao mesmo tempo.

Jayme defende um sistema plural de DIPr, no qual não há espaço para um poder jurídico hegemônico. Ao invés disso, propõe um sistema jurídico tão plural quanto as línguas que são faladas, tão diversificado quanto as cores dos povos do mundo e tão numeroso quanto as crenças religiosas existentes. A pedra angular de tal mundo tão diversificado é o respeito pela diferença. Um DIPr verdadeiramente pós-moderno não coloca uma única solução correta. Ao invés disso, aceita diferentes métodos de solução de conflitos que respeitam o patrimônio cultural da autoridade guiando a solução.

A segunda característica do DIPr pós-moderno é a comunicação. “Não são apenas os meios tecnológicos que permitem a troca rápida de informação e imagens, mas também a vontade de se comunicar”122. Esse desejo emerge como um valor comum. A comunicação, segundo os valores do pós-modernismo, conduz a ideia de

119 JAYME, Erik. Identité culturelle et integration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de La Haye, tome 251, 1995, p. 251.

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“O pluralismo de valores se exprime igualmente na irresistível extensão da autonomia da vontade das partes”. JAYME, Erik. Identité culturelle et integration: le droit international privé postmoderne. Recueil

des Cours de l’Académie de Droit International de La Haye, tome 251, 1995, p. 256.

121 JAYME, Erik. Direito Internacional Privado e cultura pós-moderna. In: Cadernos do Programa de

Pós-Graduação em Direito – PPGDir. / UFRGS. Vol. I, n. 1, 2 ed. – Porto Alegre: PPGDir./UFRGS, 2004, p. 106.

122 JAYME, Erik. Identité culturelle et integration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de La Haye, tome 251, 1995, p. 257.

integração, como o desejo de atingir soluções jurídicas uniformes no âmbito da União Europeia123.

A comunicação é tão intensa na pós-modernidade que esfacela qualquer arremedo de fronteira. A comunicação também ganha forma como técnica do diálogo entre as diversas fontes de direito – nacionais, regionais, multilaterais e internacionais. Segundo ele, “o sistema jurídico pressupõe uma certa coerência – o direito deve evitar contradições. O juiz, na presença de duas fontes com valores contrastantes, deve buscar coordenar as fontes, num diálogo de fontes”124.

Segundo Erik Jayme, a comunicação é um valor máximo da pós-modernidade, associada a valorização extrema do tempo, que agrega valor nas relações sociais através da dinamização das relações jurídicas ao redor do planeta. O direito também é visto como instrumento de comunicação, capaz de congelar momentos e ações para garantir a proteção dos mais fracos. A comunicação, assim, é vista como método de assegurar garantias. O diálogo das fontes também é condição indispensável para bem resolver conflitos:

Quando se invoca a comunicação em direito internacional privado, o fenômeno mais importante é o fato de que a solução dos conflitos de leis emerge como resultado de um diálogo entre as fontes mais heterogêneas. Os direitos humanos, as constituições, as convenções internacionais, os sistemas nacionais: todas estas fontes não se excluem mutuamente; elas conversam umas com as outras. Os juízes devem coordenar estas fontes, e escutar o que elas dizem125.

No quadro da comunicação, é necessário mencionar o direito a informação. E antes do que isso, a rapidez da comunicação. Nunca antes a história da humanidade conheceu a instantaneidade da mundialização da informação. Nunca antes o homem se comunicou tanto com tantos lugares ao redor da terra. A comunicação é, assim, sentida na internacionalização dos fatos sociais e das relações jurídicas, e na revalorização do

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JAYME, Erik. Direito Internacional Privado e cultura pós-moderna. In: Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir. / UFRGS. Vol. I, n. 1, 2 ed. – Porto Alegre: PPGDir./UFRGS, 2004, p. 106.

124 JAYME, Erik. Direito Internacional Privado e cultura pós-moderna. In: Cadernos do Programa de

Pós-Graduação em Direito – PPGDir. / UFRGS. Vol. I, n. 1, 2 ed. – Porto Alegre: PPGDir./UFRGS, 2004, p. 109.

125 “Dès lors que l`on évoque la communicacion en droit international privé, le phénomène le plus important est le fait que la solution des conflits de lois émerge comme résultat d`un dialogue entre les sources les plus hétérogènes. Les doits de l`homme, les constitutions, les conventions internationales, les systèmes nationaux: toutes ces sources ne s`excluent pas mutuellement; elles parlent l`une à l`autre. Les juges sont tenus de coordonner ces sources en écoutant ce qu`elles disent”. JAYME, Erik. Identité culturelle et integration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de

DIPr e das técnicas de harmonização e unificação de leis. A interlocução entre os juristas, entre os legisladores e pensadores dos diversos países, para formularem políticas comuns de cooperação jurisdicional e se dedicarem conjuntamente ao enfrentamento dos problemas comuns da humanidade126.

A terceira característica do DIPr pós-moderno é a narração, que está conectada com a comunicação. Comunicar é também descrever, contar, narrar. A narração é a conseqüência do impulso de comunicação, de informação.

Normas narrativas são aquelas que informam o conjunto do ordenamento jurídico. Conforme o próprio Jayme, “essas normas não obrigam, elas descrevem os valores”127. Trata-se de um novo método de elaborar normas legais, não normas para regular condutas, mas normas que narram os seus objetivos e suas finalidades, instituindo valores através da positivação dos objetivos do legislador, auxiliando na interpretação teleológica e no efeito útil das normas.

Para que a pluralidade de fontes jurídicas normativas evite o verdadeiro caos legislativo, Jayme propõe a confiança nas normas narrativas de DIPr. Em vez da letra pura da lei, os países deveriam buscar um DIPr que confie fortemente em seu caráter não-normativo, em um nível que induz cumprimento ao mesmo tempo em que respeita diferenças culturais. Essa é essencialmente a abordagem que os Estados-Membros adotam com relação a diretivas da União Europeia128.

Por fim, a quarta característica do DIPr pós-moderno é o que Erik Jayme chama de retorno aos sentimentos. Não se trata da emergência de uma nova cultura jurídica que prescinda da razão, mas deve-se constatá-lo em relação à identidade cultural, que pode conduzir a conflitos culturais, baseados em um sentimento forte de defesa de sua própria identidade cultural, de sua religião, e de todas as outras expressões do individualismo.

126 A comunicação também assume um papel na solução de conflitos. Porque mais de uma resposta para

um conflito é aceitável, legisladores, os juízes e as partes precisam estar cientes de cada solução possível para determinado conflito. Os juízes são convocados a desempenhar um papel fundamental, a chamada negociação judicial. Assim, através da comunicação eles observam negociações judiciais antes que um conflito seja resolvido.

127 JAYME, Erik. Identité culturelle et integration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de La Haye, tome 251, 1995, p. 259.

128 O direito derivado se expressa pelas seguintes formas: regulamentos, diretivas, decisões,

recomendações e pareceres. As diretivas vinculam os Estados destinatários quanto ao resultado a alcançar, deixando-os livres quanto à forma ou ao meio. Sobre as diretivas na União Europeia, ver: RIDEAU, Joel. Droit institutionnel de l’union et des communautés européennes. 2 édition. Paris: LGDJ, 1996, p. 113.

Igualmente, o retorno aos sentimentos refere-se a volta de uma certa emocionalidade no discurso jurídico. Também trata-se da procura de novos elementos sociais, ideológicos, que passam a incluir a argumentação e as decisões jurídicas, criando forte insegurança e imprevisibilidade quanto a solução a ser efetivamente encontrada. Jayme defende que o DIPr pós-moderno depende de decisões judiciais que incluem novos elementos no raciocínio jurídico. De acordo com essa visão, o raciocínio jurídico puro já não é suficiente para dar respostas aceitáveis. A causa recorrente por trás de toda a teoria de Jayme é o respeito último à dignidade humana. Os direitos humanos, na teoria do DIPr pós-moderno são o princípio-guia em todos os casos.

Jayme defende que a mera aplicação matemática das regras de conflito não deve prevalecer indiscriminadamente, devendo dar lugar a melhores alternativas quando colocar em jogo os direitos do homem. O elemento guia destacado por Erik Jayme é uma retomada dos direitos humanos129, como novos e únicos valores seguros a utilizar neste caos legislativo, de codificações e micros sistemas, de leis especiais privilegiadoras e leis gerais ultrapassadas, da procura de uma equidade cada vez mais discursiva do que real. Defende Jayme que os direitos fundamentais são as novas normas fundamentais, e esses direitos constitucionais influenciariam o novo direito privado, a ponto de assumir um papel social, como protetor do indivíduo e como inibidor de abusos.

Para que seja compreendido o fenômeno da transnacionalização do direito, além das suas fontes e valores, é também preciso refletir sobre seus atores – especialmente os juízes, seguramente os “agentes mais ativos”130 desse fenômeno. É sobre a atuação dos juízes que se falará a seguir.