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2.3 TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA

2.3.1. Características fundamentais da ação comunicativa

A teoria da ação comunicativa contempla a associação de três conceitos fundamentais: a situação de fala ideal, o consenso verdadeiro e os interesses

universalizáveis.

2.3.1.1 A situação de fala ideal

Compreende-se como situação de fala ideal a igualitária oportunização de atos de fala pelos interlocutores, estando ausente qualquer forma de constrangimento, pressão ou coação entre eles ou sobre eles.

Nos casos em que existe um uso privilegiado ou majoritário de determinados atos de fala, não se configura a situação de fala ideal. Por exemplo, se um dos locutores tem o privilégio dos atos de fala que exprimem comando, ele pode, facilmente, suprimir as objeções dos interlocutores, levando a uma situação que se assemelha ao consenso. Este, porém, não será o consenso verdadeiro, de vez que a supressão das objeções não se deveu ao convencimento dos interlocutores por meio de argumentos capazes de convencer. Eles foram, apenas, reduzidos ao silêncio por um comando.

Esta é a razão pela qual a situação de fala ideal é tão importante no contexto da teoria de Habermas. Habermas (1971, p. 136 sq.) reconhece que ela jamais se realiza nas condições do discurso empírico. Entretanto, leva os locutores a “agir, na efetuação dos atos de fala e das ações, contrafactualmente, como se a situação de fala ideal não fosse mera ficção, mas real” (grifo no original). Declara-a, ainda, “o fundamento normativo do ato de se entender linguisticamente [...] antecipado, mas, enquanto fundamento antecipado, também eficaz”. (HABERMAS, 1971, p. 140)

2.3.1.2 O consenso verdadeiro

No plano da Teoria da Ação Comunicativa, revela-se de igual importância a caracterização do conceito de consenso verdadeiro. Os participantes de uma discussão asseguram-se que o consenso obtido é verdadeiro pela ausência de seu questionamento ulterior por qualquer dos interlocutores, situados que estão na perspectiva de uma situação de fala ideal64.

É preciso distinguir o consenso verdadeiro de Habermas do consenso empírico ou factual. Como se viu na seção anterior, na ausência da situação de fala ideal a situação de consenso pode ser obtida não por um acordo racional entre os locutores, mas pela supressão de sua capacidade de objetar e argumentar. Mesmo que a coerção não seja evidente, o apelo a interesses particulares (não universalizáveis) pode levar os interlocutores a comportarem-se de modo a supor-se que o consenso se tenha estabelecido. Neste caso, trata-se meramente de um consenso empírico que não se identifica com o consenso verdadeiro.

É no plano do discurso que as pretensões de verdade dos sujeitos podem se

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“A impossibilidade teórica da situação de fala ideal não significa a impossibilidade desse reconhecimento unânime, por parte dos participantes de uma discussão prática, de que o consenso que alcançaram é verdadeiro. Significa que, sendo impossível que todos os locutores teoricamente concebíveis participem efetivamente da discussão, é sempre possível admitir que algum deles houvesse de apresentar um argumento novo que invalidasse a unanimidade factualmente alcançada. Havendo consenso suficientemente amplo acerca da verdade de determinados enunciados, as pessoas que não participam desse consenso são consideradas "ignorantes" dessa verdade. Através de um conveniente processo de educação elas podem "reorganizar seu comportamento sob o imperativo das pretensões de validade" e passar a integrar o conjunto dos participantes desse consenso. Por outro lado, todas as pessoas que participam de um consenso poderiam, em princípio, ser levadas a rever sua opinião por argumentos produzidos em apoio de uma opinião inicialmente minoritária”. (ROCHA, 1990, p. 196) (Esta citação remete a um texto de Habermas anteriormente citado no trabalho de Rocha, que diz: “Tanto quanto me parece, nisto se exprime o entrelaçamento especificamente humano das produções cognitivas e das motivações da ação com a inter- subjetividade lingüística: neste estádio do desenvolvimento sociocultural, o comportamento animal é reorganizado sob os imperativos das pretensões de validade”). (HABERMAS, 1976, p. 350)

manifestar, com vistas ao consenso. De acordo com Rocha (1990, p. 181), o consenso revela-se verdadeiro na medida em que os sujeitos racionais, em uma situação de discussão, permitem-se corrigir as suas pretensões de verdade, na busca do melhor argumento racional orientador de suas ações individuais. No plano do discurso voltado ao entendimento, os sujeitos racionais65 manifestam argumentos ditos substanciais, já que capazes de convencer os participantes.

O acordo racional aqui evidenciado fundamenta a objetividade da experiência comunicativa e o consenso alcançado pode ser sintoma da verdade reivindicada para os enunciados consensualmente admitidos. Rocha (1990, p. 188-199) aponta a característica elementar de um consenso dito verdadeiro: a presença da situação

de fala ideal, a qual envolve a igualitária oportunização de atos de fala pelos

participantes do discurso, o que acaba por diferenciar dito consenso de um consenso empírico (factualmente alcançado). O consenso verdadeiro só se assemelha ao consenso empírico na medida em que as condições de interlocução se assemelhem à situação de fala ideal.

No discurso empírico, sendo finito o número de participantes da discussão, admite- se sempre a possibilidade de alguma forma de controle sobre cada um deles, não impedindo a incidência de coerção externa, razão pela qual se deve ampliar indefinidamente o número de participantes do discurso, de tal forma a viabilizar a manifestação de um consenso verdadeiro. (ROCHA, 1990, p. 188-189)

A racionalidade dos interlocutores é o que lhes permite alcançar um consenso ausente de coerção externa, reconhecidas pelos sujeitos necessidades comuns, compartilhadas de modo comunicacional. Neste plano, a razão atua como condição de possibilidade do consenso verdadeiro, configurando-se na própria efetuação desse consenso. (ROCHA, 1990, p. 191)

De acordo com Rocha (1990, p. 191):

A possibilidade efetiva de utilizar uma linguagem comum para realizar, intencionalmente, a comunicação intersubjetiva aparece, em conseqüência, como o sintoma definitivo da racionalidade dos interlocutores. A ocorrência de um consenso que se pretende verdadeiro é, ao mesmo tempo, a legitimação de uma linguagem comum que se estrutura e é usada de modo a que no nível semântico esteja pressuposta a verdade dos enunciados; no nível sintático, a cogência dos argumentos e, no nível pragmático, a racionalidade dos locutores.

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O consenso verdadeiro é, pois, sinal característico da racionalidade dos sujeitos, que, envoltos na perspectiva de uma situação de fala ideal, buscam o entendimento no plano do discurso, diferenciando-se, nesta medida, do consenso empírico, que, por envolver um número finito de participantes, só é passível de manifestar particulares consensos factuais entre os envolvidos.

2.3.1.3 Os interesses universalizáveis

Ao viabilizar o consenso entre os sujeitos, a ação comunicativa permite a exteriorização de interesses universalizáveis, assim entendidos os interesses que se possam revelar comuns a todos os participantes do discurso. Isto se verifica na aceitação, pelos sujeitos livres de qualquer pressão ou coação, do melhor argumento (argumento substancial) que, por sua força racionalmente cogente, harmoniza as pretensões de verdade de todos os participantes.

Nesta ordem, a ação comunicativa, por visar o consenso entre os sujeitos (a partir do acordo racional orientador das ações individuais dos interlocutores), é expressiva dos interesses universalizáveis. A ação estratégica, ao contrário, por visar o êxito sobre o oponente quanto a metas individuais, expressa interesses particulares, não universalizáveis, na medida em que se verifica impraticável um consenso verdadeiro em torno da pretensão de validade que eles reivindicam.

A expressão de interesses universalizáveis pode se evidenciar a partir da motivação da ação empreendida pelos sujeitos, em cujo âmbito se verificará a manifestação de interesses comuns ou, do contrário, de interesses particulares pelos sujeitos sociais envolvidos no discurso.

Na perspectiva da ação comunicativa, pressuposta que está uma situação de fala ideal, cada participante pode, igualitariamente, manifestar suas pretensões de verdade, com vistas a um consenso. Note-se que o acordo aqui obtido é dito racional justamente porque os participantes têm consciência de que ele só pode surgir de interesses universalizáveis, comuns a todos os integrantes do discurso.

Tal é o pensamento de Rocha (1990, p. 180), para quem a situação de discussão presente no discurso racional já é garantia suficiente de universalização de

interesses (grifo acrescentado).

Um consenso obtido comunicativamente compreende, portanto, a expressão de

interesses comuns a todos os participantes do discurso, garantindo a harmonização

das pretensões de validade dos participantes no plano do acordo racionalmente obtido.

Nesta ótica, pode-se fazer uma distinção entre normas susceptíveis de justificação e normas que estabilizam relações de força. Na medida em que as normas exprimem interesses universalizáveis, elas repousam sobre um consenso racional. De outra forma, na medida em que as normas regulam interesses não-universalizáveis, elas repousam sobre a força66.