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2.2 TIPOLOGIA DAS AÇÕES EM HABERMAS

2.2.6 Os atos de fala à luz da tipologia da ação de Habermas

Na teoria dos atos de fala não se compreende apenas a estrutura semântica de uma palavra, frase ou sentença, mas o efeito visado por seu emitente, bem como o efeito produzido diante do receptor. Ao produzir um ato de fala, o sujeito expressa-se e expressa a realidade que o circunscreve, mas os efeitos produzidos pelo ato de fala ultrapassam o simples âmbito do falante, constatando-se as modificações cognitivas e comportamentais que passa a gerar sobre os sujeitos intercomunicantes que atuam no discurso57.

Adentrando a realidade presente na comunicação entre os sujeitos, Habermas passa a estudar os efeitos produzidos pelos atos de fala, no qual os sujeitos,

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No original: “The model of purposive-rational action takes as its point of departure the view that the actor is primarily oriented to attaining an end (which has been rendered sufficiently precise in terms of purposes), that he selects means that seem to him appropriate in the given situation, and that he calculates other foreseeable consequences of action as secondary conditions of success. Success is defined as the appearance in the world of a desired state, which can, in a given situation, be causally produced through goal-oriented action or omission”.

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No original: “We call an action oriented to success strategic when we consider it under the aspect of following rules of rational choice and assess the efficacy of influencing the decisions of a rational opponent”.

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“O mesmo saber proposicional ganha uma faceta inteiramente diversa quando é utilizado em atos de fala, nos quais se visa ao consenso. Neles a razão adquire uma dimensão maior do que a dimensão tradicional de logos, limitada à representação do real. Trata-se de uma racionalidade cujo grau de idealização transcende o contexto, pois que toca o ponto-chave da teoria da ação comunicativa: as pretensões de validez.” (ARAÚJO, 2004, p. 249-250)

envolvidos num discurso, buscam o entendimento nas três esferas de mundo por ele concebidas (mundo objetivo, mundo social e mundo subjetivo).

Assim é que, para Habermas (1984b, p. 305), na ação comunicativa se consideram determinantes os atos de fala nos quais o falante veicula pretensões de verdade susceptíveis de crítica. Por outro lado, quando o falante produzir atos de fala diante dos quais o receptor seja levado a agir no sentido que deseja o falante, estaremos diante de uma ação estratégica. Há, entretanto, uma relação de dependência entre os atos perlocucionários (produtores de efeitos) e os atos ilocucionários (portadores de sentido). (HABERMAS, 2004b, p. 122). O sucesso da ação estratégica (produção de efeitos) depende do sucesso do ato ilocucionário (sua compreensão pelo receptor)58.

Assim, tal qual Austin, Habermas destaca a existência factual59 de três possíveis atos de fala: atos de fala locucionários, ilocucionários e perlocucionários.

Os atos de fala locucionários correspondem a mera expressão lingüística, na qual o interlocutor diz (profere) algo sobre o mundo. Aqui, não visa ele a argumentação com os demais sujeitos (interlocutores), nem influenciá-los sobre determinado ponto. Um ato de fala locucionário corresponde, tão somente, a uma emissão de palavras ou frases, sem pretensões de influência sobre os falantes; é um mero exprimir-se (dizer algo) a respeito do seu universo interior ou exterior, atendendo à sintaxe da linguagem.

Os atos de fala ilocucionários correspondem às proposições emitidas pelo sujeito na inter-relação com seus semelhantes, buscando o entendimento sobre determinado ponto. Aqui, produzem-se modificações tanto no emissor quanto no receptor da mensagem, sendo que ditas proposições (opiniões, idéias, sentimentos) expressos

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Habermas dá um exemplo dessa dependência, ilustrada na seguinte afirmação: “_Você se comporta como um porco!” Notam-se, no exemplo dado, dois efeitos simultaneamente alcançáveis pela emissão deste ato de fala. Aqui, o efeito dissuasor na modificação de comportamento por parte do receptor (fazê-lo comportar-se civilizadamente – sucesso perlocucionário) depende, não obstante, da compreensibilidade pelo receptor do ato ilocucionário formulado (argumentação de que o indivíduo está se comportando com um “porco” – sucesso ilocucionário). O mesmo se dá na seguinte afirmação: “_ Se você não me der o dinheiro de Pedro, comunicarei a seu superior que...” Neste caso, o efeito perlocucionário da intimidação (sucesso perlocucionário) depende da compreensão (entendimento) do anúncio de uma sanção negativa condicionada (sucesso perlocucionário). (HABERMAS, 2004b, p. 122)

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A concepção de teoria dos atos de fala de Habermas não se limita a estes três tipos, deixando clara em sua obra a existência de outros atos de fala, a exemplo dos atos regulativos (ligados à ação normativa) e os expressivos (ligados à ação dramatúrgica), os quais, por não se relacionarem às ações comunicativa e estratégica (foco desta pesquisa), não serão devidamente explorados.

pelos sujeitos, levados a efeito no plano de um discurso, promovem o entendimento viabilizado no plano argumentativo.

Para Habermas, os atos ilocucionários, por buscarem o entendimento entre os sujeitos, promovem o acordo lingüístico racionalmente motivado entre eles, harmonizando entre si seus planos individuais de ação, livres que estão de usos instrumentais (ação física, a exemplo de uma imposição violenta) ou estratégicos (influência pela fala, com imposição do ponto de vista), residindo a intenção comunicativa no próprio “dizer”, contrariamente aos atos perlocucionários60, os quais, por visarem o êxito na produção de efeitos sobre o ouvinte, acabam por impedir o acordo racionalmente motivado entre os sujeitos. (ARAÚJO, 2004, p. 253) Os atos de fala ilocucionários encaixam-se com exatidão na perspectiva da ação comunicativa proposta por Habermas, em que os sujeitos, livres de qualquer pressão ou coação, manifestando suas pretensões de verdade no plano de um discurso racionalmente motivado, e na situação de fala ideal, buscam o entendimento sobre algum ponto, sendo a única força prevalecente a do melhor argumento, e tendo como direção (fim) o consenso (aqui entendido como o acordo racional que orientará as ações dos participantes), servindo então de base para o agir comum regulador das futuras ações. Nos atos de fala ilocucionários, o conteúdo semântico das proposições emitidas pelos sujeitos visam ao entendimento intersubjetivo entre os participantes, que confrontam a verdade das proposições, viabilizando, assim, a ação racional comunicativa.

Os atos de fala perlocucionários, por seu turno, correspondem às proposições racionalmente motivadas tendentes à persuasão de uma das partes sobre a outra (de um sujeito sobre o outro), calculadas no intuito de se atingir uma determinada meta ou se obter um determinado êxito, engendrando uma modificação no comportamento do receptor de forma com que ele aja de acordo com o que é esperado pelo emissor do ato perlocucionário. Estes atos de fala correspondem, na tipologia habermasiana, à ação estratégica (teleológico-estratégica),61 cujos efeitos

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Segundo revela Dutra (2005, p. 87), Habermas afirma que o uso estratégico da linguagem (uso perlocucionário) é parasitário do uso ilocucionário (uso normal da linguagem), visto que enfraquece a força ilocucionária geradora de consenso, viabilizada pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validade, fazendo-se uso de meios extralingüísticos (como a ameaça e o poder). É

parasitário, porque a compreensibilidade da mensagem é tomada de empréstimo do ato ilocucionário. 61

“Em contextos estratégicos de ação, a linguagem funciona, em geral, segundo o modelo de perlocuções. Aqui, a comunicação lingüística é subordinada aos imperativos do agir racional

são racionalmente calculados por um sujeito frente aos seus oponentes. Segue-se que, na concepção de Habermas62, ditos atos de fala expressam a realidade vivida pelos sujeitos nos três mundos existentes: o mundo objetivo das coisas (relativo ao conjunto das entidades sobre as quais é possível um enunciado verdadeiro), o mundo social das normas (relativo à adequação das proposições ao contexto das normas observadas nas relações entre os sujeitos) e o mundo subjetivo das vivências e afetos (relativo à sinceridade e autenticidade dos sentimentos e idéias dos sujeitos).

Em outras palavras, os atos ilocucionários viabilizam o entendimento entre os sujeitos intersubjetivamente relacionados, estando ligados à ação comunicativa; já os atos perlocucionários visam ao convencimento estrategicamente motivado de influência de um sujeito sobre o(s) outro(s), produzindo uma modificação psicológico-comportamental do(s) oponente(s), na satisfação ou ajuste aos seus próprios interesses, estando relacionados, então, à ação estratégica.

Para Habermas (1987, p. 64), na reprodução simbólica do campo da vida, os atos de fala só podem cumprir simultaneamente as funções de transmissão de saber, integração social e socialização dos indivíduos se em cada ato de fala o componente proposicional, o componente ilocucionário e o componente expressivo se integrarem em uma unidade gramatical63.

orientada a fins. Interações estratégicas são determinadas pelas decisões de atores orientados ao sucesso, que se observam mutuamente. Eles se encontram sob condições de uma dupla contingência, como antagonistas que, no interesse dos planos de ação de cada um, exercem

influência um sobre o outro (normalmente sobre as atitudes proposicionais do outro). Eles suspendem

as atitudes performativas de interlocutores, na medida em que assumem, da perspectiva de terceiras pessoas, os papéis de falante e ouvinte envolvidos. Desse ponto de vista, as metas ilocucionárias só são relevantes como condições de sucessos perlocucionários. Por conseguinte, sujeitos da ação estratégica que se comunicam entre si não perseguem suas metas ilocucionárias sem reservas – como ocorre no uso comunicativo da linguagem”. (HABERMAS, 2004b, p. 123-124)

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Diferenciando o agir comunicativo do agir estratégico a partir da utilização, pelo sujeito, de atos

ilocucionários/perlocucionários, Habermas deixa claro que: “Falamos então de agir comunicativo

quando agentes coordenam seus planos de ação mediante o entendimento mútuo lingüístico, ou seja, quando eles os coordenam de tal modo que lançam mão das forças de ligação ilocucionárias próprias dos atos de fala (1). No agir estratégico, esse potencial de racionalidade comunicativa permanece inutilizado, mesmo quando as interações são linguisticamente mediadas. Como aqui os envolvidos coordenam seus planos de ação mediante uma influenciação recíproca, a linguagem não é empregada comunicativamente no sentido já explicado, mas de forma orientada a conseqüências. Para a análise desse uso da linguagem, as chamadas perlocuções fornecem uma chave apropriada” (HABERMAS, 2004b, p. 118)

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Não obstante, ressalta Habermas que o sucesso do ato de fala depende da “aceitação da oferta” (proposição) por parte do receptor, posicionando-se com um “sim” ou “não” a uma pretensão de verdade passível de crítica, baseando as suas posições em argumentos racionais. Para ele, como a

Isto é particularmente relevante porque, assim como qualquer construção lingüística pode ser examinada segundo a sintaxe, a semântica e a pragmática, também os proferimentos, que são os enunciados usados em situação real de fala, têm uma dimensão formal, comunicativa e, se for o caso, estratégica.

Como se viu, a racionalidade que preside à ação estratégica é de natureza instrumental, enquanto a construção do acordo racional pressupõe um outro tipo de racionalidade. Para fundamentar adequadamente esta distinção, é necessário um exame mais minucioso da teoria da ação comunicativa. A isto destina-se o próximo capítulo.