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Wittgenstein (2005, p. 15) atribui a toda palavra a existência de um significado, sendo este o objeto por ela designado. Promovendo uma analogia entre a linguagem e o jogo, entende-a não numa visão essencialista (voltada à busca de um conceito de linguagem), mas como uma atividade entrelaçada num conjunto de atividades que, semelhantemente a um jogo, envolve ações coletivas, de cooperação, disputa e competição, atuando os seus intervenientes na expressão das próprias regras à medida que o jogo se desenvolve. (WITTGENSTEIN, 2005, p. 33)

Na visão wittgensteiniana, as regras de projeção da linguagem nascem no interior da própria linguagem, voltadas para um contexto prático, o que acaba por conferir a ela o caráter de autonomia, sendo que, não obstante ser autônoma (separando-se do mundo o sistema lingüístico), o dualismo linguagem-mundo sempre persiste (MARQUES, 2003, p. 130-131). Wittgenstein foca a sua particular análise no aspecto volitivo (comportamento voluntário) do emitente da expressão lingüística, investigando acerca da região psicológica da vontade, a envolver aspectos como a crença, intenção e expectativa, indissociáveis ao sujeito no uso cotidiano da

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Ainda sobre as críticas à teoria dos atos de fala, acentua Koch: “Mais recentemente, a Teoria dos Atos de Fala tem sido alvo de críticas e recebido algumas reformulações. Uma das críticas é que a teoria é unilateral, colocando uma ênfase quase exclusiva no locutor – isto é, que trata da ação, mas não da interação. Critica-se, também, o fato de se levarem em conta basicamente enunciados isolados, examinados fora de um contexto real de uso. Um problema que se vem tentando sanar é o de não se terem levado em conta, na caracterização das atividades ilocucionais, seqüências maiores de enunciados ou textos”. (KOCH, 2007, p. 22)

linguagem, dando margem aos múltiplos jogos da linguagem por ele abordados (MARQUES, 2003, p. 174). Wittgenstein, na sua segunda fase, é o primeiro filósofo moderno a insistir na importância da pragmática para o significado, entrelaçando inextricavelmente a comunicação linguística com a vida social.

Não se concebe, entretanto, uma apreensão substancial da realidade por parte do sujeito. Invariavelmente, a compreensão de um texto não está imune à inevitabilidade do choque promovido entre o objeto cognoscível e o universo da pré- compreensão24 do intérprete25.

É nesta perspectiva que se desenvolve a filosofia hermenêutica de Gadamer (1997, p. 27-28):

Toda forma de compreender é enraizada na situação hermenêutica do sujeito, nessa espécie de “espaço” de que todos partimos, conscientes ou não, na medida em que conhecemos. Vincula-se ao conjunto de experiências trazidas na História que formam indissociavelmente nosso raio de visão e pré-moldam nossas interações intelectivas com os fenômenos que se postam à frente. (...) Assim sendo, o homem, ao interpretar qualquer fenômeno, já possui antecipadamente uma pré-compreensão difusa do mesmo, um pré-conceito, uma antecipação prévia de seu sentido,

influenciada pela tradição em que se insere (suas experiências, seu modo

de vida, sua situação hermenêutica etc.). Por esse motivo, fracassará todo empreendimento que intente compreender objetivamente, em absoluto, qualquer tipo de fenômeno, eis que a compreensão, como dito, sujeita-se também à tradição ao qual pertence aquele que se dá ao conhecer.

Essa realidade se revela, segundo Gadamer26, não apenas no plano textual, mas

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Ainda sobre a incidência da pré-compreensão no processo interpretativo, explicita Larenz: “No sentido do processo do compreender existe, por regra, uma conjectura de sentido, mesmo que por vezes ainda vaga, que acorre a inserir-se numa primeira perspectiva, ainda fugidia. O intérprete está munido de uma “pré-compreensão”, com que acede ao texto. Esta pré-compreensão refere-se à coisa de que o texto trata e à linguagem em que se fala dela. Sem uma tal pré-compreensão, tanto num como noutro processo, seria difícil, ou de todo impossível, formar-se uma “conjectura de sentido””. (LARENZ, 1997, p. 288)

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De fato, como explicita Gadamer: “Não existe seguramente nenhuma compreensão totalmente livre de preconceitos, embora a vontade do nosso conhecimento deva sempre buscar escapar de todos os nossos preconceitos. No conjunto da nossa investigação mostrou-se que a certeza proporcionada pelo uso dos métodos científicos não é suficiente para garantir a verdade. Isso vale, sobretudo, para as ciências do espírito, mas de modo algum significa uma diminuição de sua cientificidade. Significa, antes, a legitimação da pretensão de um significado humano especial, que elas vêm reivindicando desde antigamente”. (GADAMER, 1997, p. 631)

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“Compreender e interpretar se subordinam de uma maneira específica à tradição da linguagem. Para a compreensão vale o mesmo que para a linguagem. Ambas não devem ser tomadas apenas como um fato que se pode investigar empiricamente. Ambas jamais podem ser um simples objeto; abrangem, antes, tudo o que, de um modo ou de outro, pode chegar a ser objeto. Por fim, Gadamer discorre que a linguagem que vive no falar, que abarca toda a compreensão, inclusive a do intérprete dos textos, está tão envolvida na realização do pensar e do interpretar que verdadeiramente nos

igualmente no plano da conversação, daí a impossibilidade de se prever o seu sucesso ou o seu fracasso. A conversação, dotada que é de um espírito próprio, revela um processo dinâmico de acordo em que os sujeitos, abrindo espaço para os diversos pontos de vista, buscam a compreensão (GADAMER, 1997, p. 497-499) A forma de realização desta compreensão é a interpretação, razão pela qual, para Gadamer (1997, p. 502-503), “todo compreender é interpretar” (conceitos indissociáveis), sendo que este interpretar se desenvolve no medium de uma linguagem27.

A partir destes elementos, realçando o caráter condicionador da linguagem, Gadamer (1997, p. 577) vislumbra visões de mundo diferentes a partir da multiplicidade de tradições culturais em que cada um está imerso, razão pela qual os diversos mundos, separados no curso da história, apresentam grandes diferenças. Não obstante esta condicionalidade e conformidade de comportamento, viabilizadas pela tradição, o mundo está aberto a constantes transformações, já que a linguagem viabiliza entre os sujeitos a convergência de atitudes de mudança. Em outras palavras, a linguagem, ao mesmo tempo em que condiciona o comportamento, também viabiliza um agir transformador sobre o mundo. (GADAMER, 1997, p. 580) Advêm daí as relações entre e linguagem e a vida social, não apenas no sentido de ver-se a linguagem como um elemento instrumental no processo social das interações intersubjetivas, mas sim como um algo essencial à própria construção desse referente comum aos falantes e geralmente identificado com a realidade objetiva. Gadamer é contemporâneo de Habermas e, tal qual ele, motivado pela consciência das relações entre linguagem e vida social, ainda que com um enfoque diferente.

A linguagem é vista por Berger e Luckmann (1985, p. 11) como uma qualidade pertencente a fenômenos independentes de nossa volição (no sentido de que não podemos desejar que não existam), destacando, entre as várias realidades, a realidade da vida cotidiana, considerada esta a “realidade por excelência”. Para eles,

restaria muito pouco se desconsiderássemos o conteúdo que nos transmitem as línguas e quiséssemos pensá-las unicamente como normas”. (GADAMER, 1997, p. 523-524)

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Para Gadamer, a linguagem tem a função de “deixar falar o objeto”, consistindo no “medium universal em que se realiza a própria compreensão”. (GADAMER, 1997, p. 502-503)

a realidade da vida cotidiana28 possui singularidade pela impossibilidade de voltarmos as costas a ela, de ignorarmos a sua presença, estando cada um imerso na esfera que a circunscreve, onde os fenômenos se apresentam em padrões pré- estabelecidos e objetivados previamente à “entrada em cena” do sujeito no mundo. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 38)

A realidade partilhada pelo sujeito com seus semelhantes promove a coexistência de suas vivências, gerando “um intercâmbio contínuo de expressividades, simultaneamente acessíveis a ambos os sujeitos no processo comunicativo”. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 47)

Afirmam Berger e Luckmann (1985, p. 57) que “a vida cotidiana é, sobretudo, a vida com a linguagem”, daí resultando a importância de sua compreensão para a própria compreensão da realidade.

Por consequência, o acervo social de conhecimentos acaba sendo, por intermédio da linguagem, transmitido de geração a geração, estruturando-se o mundo em termos de rotina, e o conhecimento em termos de convivências. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 64-65)

Vivo no mundo do senso comum da vida cotidiana equipado com corpos específicos de conhecimento. Mais ainda, sei que outros partilham, ao menos em parte, deste conhecimento, e eles sabem que eu sei disso. Minha interação com os outros na vida cotidiana é por conseguinte constantemente afetada por nossa participação comum no acervo social disponível do conhecimento. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 62)

O principal efeito disto corresponde à estabilização das ações individuais, possibilitando a construção de um mundo social disposto numa ordem institucional, em que cada indivíduo passa a agir no plano de realidade que lhe é presente (entregue) e de acordo com as expectativas sociais dos outros indivíduos. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 83)

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“A linguagem tem origem e encontra sua referência primária na vida cotidiana, referindo-se sobretudo à realidade que experimento na consciência em estado de vigília, que é dominada por motivos pragmáticos (isto é, o aglomerado de significados diretamente referentes a ações presentes ou futuras) e que partilho com outros de uma maneira suposta evidente. Embora a linguagem possa também ser empregada para se referir a outras realidades, o que será discutido a seguir dentro em breve, conserva mesmo assim seu arraigamento na realidade do senso comum da vida diária. Sendo um sistema de sinais, a linguagem tem a qualidade da objetividade. Encontro a linguagem como uma facticidade externa a mim, exercendo efeitos coercitivos sobre mim. A linguagem força-me a entrar em seus padrões”. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 58)

O processo de adequação e ajustamento, lembram Berger e Luckmann (1985, p. 89), é experimentado desde a infância, com a sujeição das crianças ao comportamento disciplinado pelos adultos, sendo que quanto maior for a institucionalização da conduta, tanto maior será a previsibilidade de seu controle no plano social29, daí repousar a lógica das instituições não nas instituições, mas na maneira como estas são tratadas no plano da reflexão social, valendo dizer que: “a consciência reflexiva impõe a qualidade de lógica à ordem institucional. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 89-91)

A concepção de Berger e Luckmann (1985, p. 93) da existência de um controle

social revela-se no fornecimento institucionalizado de regras de conduta transmitidas

como uma “receita” a todos os membros do grupo social, definindo os papéis que devem ser desempenhados no contexto das instituições, capazes de controlar e predizer condutas e, ao mesmo tempo, enxergando qualquer desvio da ordem estabelecida como um afastamento da realidade, passível, portanto, de punição30. Vivemos em função de um universo simbólico, compartilhado por todos os homens que integram determinada sociedade e que, por fornecer a base de todos os

sentidos, propicia a legitimação das práticas sociais, de tal sorte que a proposição de

um “outro universo simbólico” reflete em uma ameaça ao status quo. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 142)

Berger e Luckmann são tributários da sociologia fenomenológica de Alfred Schutz. A visão de mundo construtivista que eles elaboram, embora com construtos teóricos diferentes, é perfeitamente compatível com a teoria habermasiana do agir comunicativo. Com efeito, a teoria da construção dos universos simbólicos e de seu efeito legitimador é, com outros conceitos, paralela à tese habermasiana da construção do consenso verdadeiro fundamentador da verdade e da racionalidade. De modo semelhante, os usos, de que falam Ortega y Gasset31, correspondem a

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“Ao nível das significações, quanto mais a conduta é julgada certa e natural, tanto mais se restringirão as possíveis alternativas dos “programas” institucionais, sendo cada vez mais predizível e controlada a conduta”. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 89)

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“Nós estamos condenados a não poder sair da absoluta liberdade e indeterminação da linguagem e da argumentação e somos, por conseqüência, condenados a compreender a realidade a partir daquilo que aí é estatuído. Dentro desse contexto, o mundo vivido, as instituições e o direito têm a função de amortizar as instabilidades de tais formas de vida”. (DUTRA, 2005, p. 196)

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“Ao seguir os usos, comportamo-nos como autômatos, vivemos por conta da sociedade ou coletividade. Esta, no entanto, não é algo humano ou sobre-humano; ao contrário: atua exclusivamente mediante o simples e puro mecanismo dos usos, dos quais ninguém é sujeito criador,

formas de comportamento socialmente impostas pela convivência, e adotadas, de uma forma ou de outra, “porque não tem remédio”. Estes usos, cuja principal característica é a irracionalidade, permitem aos indivíduos prever a conduta dos seus semelhantes, impondo, sob pressão, um determinado repertório de ações que obrigam o indivíduo a viver à altura dos tempos, injetando nele a herança acumulada do passado. (ORTEGA Y GASSET, 1973, p. 48-49)

Neste particular, as instituições sociais, através de mecanismos de coerção e sanção, promovem o forçado ajuste dos comportamentos desviantes ao conjunto das normas sociais vigentes no grupo.

Aí está, enfim, o papel da linguagem como mecanismo de controle social, na medida em que, ao estabelecer a ordem (estado da realidade), viabiliza a realização do mundo, apreendendo-o e produzindo-o, cuja eficácia realizadora é a conversação, de tal forma que “todos os que empregam a mesma língua são mantenedores da realidade”. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 204)

Esta posição acrescenta credibilidade à hipótese de Sapir-Whorf, que postula uma diferenciação de racionalidades para falantes de línguas diferentes (CHANDLER, s. d.).

Nas palavras de Edward Sapir, escritas em 1929:

[...] é puro delírio imaginar que a pessoa ajusta-se à realidade de um modo que não seja essencialmente pelo uso da linguagem e que a linguagem seja meramente um meio incidental para resolver problemas específicos de comunicação e reflexão. O que acontece é que o ‘mundo real’ é, em grande medida, construído inconscientemente sobre os hábitos lingüísticos do grupo. Não há duas linguagens suficientemente semelhantes para que se considere representarem a mesma realidade social32.

Em 1940, seu discípulo Benjamim Lee Whorf diria:

responsável e consciente. E, como a “vida social ou coletiva” consiste nos usos, essa vida não é humana, é algo intermédio entre a natureza e o homem, é uma quase-natureza e como a natureza: irracional, mecânica e brutal. Não há uma “alma coletiva”. A sociedade, a coletividade é a grande desalmada, - já que é o humano naturalizado, mecanizado e como que mineralizado. Por isso está justificado que a sociedade se chame “mundo” social. Não é, com efeito, tanto “humanidade” como “elemento inumano” em que a pessoa se encontra. Não obstante, a sociedade, ao ser mecanismo, é uma formidável máquina de fazer homens.” (ORTEGA Y GASSET, 1973, p. 49)

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No original: “It is quite an illusion to imagine that one adjusts to reality essentially without the use of language and that language is merely an incidental means of solving specific problems of communication or reflection. The fact of the matter is that the ‘real world’ is to a large extent unconsciously built upon the language habits of the group. No two languages are ever sufficiently similar to be considered as representing the same social reality”. (SAPIR, 1958, p. 159 apud CHANDLER, s.d.)

[...] o mundo se apresenta como um fluxo caleidoscópico de impressões que têm de ser organizadas por nossas mentes – e isto significa, em grande medida, pelos sistemas linguísticos de nossas mentes. Decompomos a natureza, organizamo-la por meio de conceitos e atribuímos significados pelo modo como o fazemos, em grande medida, porque fazemos parte de um acordo para organizá-la deste modo – acordo que se sustenta em nossa comunidade comunicacional e está documentada nas formulações de nossa linguagem. É claro que o acordo é implícito e não declarado, mas seus termos são completamente obrigatórios; sem subscrevermos os dados de organização e classificação determinados pelo acordo, não podemos, sequer, falar33.

A hipótese de Sapir-Whorf parece antecipar, como conjectura, a teoria habermasiana da razão comunicativa.

A linguagem revela-se, assim, não apenas no medium da apreensão da realidade e do seu compartilhamento aos membros do grupo, descortinando-se, muito além, no próprio mecanismo legitimador dos padrões sociais, estabilizando as ações individuais dos seus membros no plano das vivências socialmente sentidas. Em outras palavras, somos condicionados pela linguagem e, desta forma, condicionados a reproduzir e cumprir as regras e convenções por ela estabelecidas.

Percebe-se, portanto, que a comunicação não tem, na vida social, um papel meramente instrumental, mas constitui-se em elemento dinâmico com caráter estruturante da própria realidade que pode ser conhecida e reconhecida intersubjetivamente. Além disso, serve para ordenar os comportamentos humanos, justificando expectativas recíprocas de desempenho. É esta compreensão que vai inspirar Jürgen Habermas, ao buscar, no modelo da discussão racional, o fundamento das pretensões de verdade e, na possibilidade desse fundamento, a própria definição de racionalidade.

Este é o assunto das próximas seções.