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Características poiéticas, estésicas e neutras da música eletroacústica

EMOTIVA REFERENCIAL CONATIVA

3. Intender 2 Ouvir

2.5 Características poiéticas, estésicas e neutras da música eletroacústica

Nattiez explora o aspecto semântico da música tonal ao comparar os efeitos de

Tristão e Isolda de Wagner e a Pequena Serenata Noturna de Mozart: “É claro que os

adjetivos hão de variar de ouvinte para ouvinte, mas é possível, com base em pesquisas bem rigorosas, determinar estatisticamente a significação de um fragmento musical.” Isso porque “cada qual reage a uma obra segundo às suas idiossincrasias pessoais, à sua experiência anterior, memórias, mas a música conota estas reações de maneira relativamente homogênea” (NATTIEZ, s.d., p. 29). É de se objetar aqui, também, o papel que outros elementos musicais, impressos ao sistema tonal discutido, desempenham na percepção, inclusive a figura do intérprete. Aprofundando a reflexão sobre o caráter

múltiplo da significação, no qual essa só se torna possível a partir do compartilhamento de referências atuantes no circuito da fala, encontramos em Molino (s.d.) e Nattiez (2005) um aspecto interessante para a compreensão do significado linguístico. Se abordamos até aqui o compartilhamento de significantes simbólicos entre os integrantes do circuito da linguagem musical, além de perceber as infinitas redes de referências responsáveis pela atribuição de significados a tais significantes, é possível deduzir que existam processos diferentes envolvidos no ato de emissão e recepção do signo (seja ele escrito ou sonoro). Sobre isso, Molino distingue três modos de se analisar o signo:

“Qualquer objeto simbólico supõe uma troca na qual produtor e consumidor, emissor e receptor, não são intermutáveis e não têm o mesmo ponto de vista sobre o objeto, o qual de modo nenhum constituem da mesma maneira. Convém, portanto, distinguir uma dimensão poiética e uma dimensão estésica do fenômeno simbólico. Mas o fenômeno simbólico é também objeto, matéria submetida a uma forma. A estas três modalidades de existência corresponderão três dimensões da análise simbólica: a análise poiética, a análise estésica e a análise ‘neutra’ do objeto.” (MOLINO, s.d., p. 135 – grifos do original)

Embora Molino se refira como estésica apenas à dimensão de recepção final (o ouvinte), pode-se imaginar esse processo difuso de significação entre o compositor e o intérprete, incluindo o aspecto gráfico da partitura como uma forma de comunicar as perspectivas estésicas alinhadas àquelas poiéticas imaginadas pelo compositor. Desse fato, extraímos o exemplo de que é possível um intérprete executar uma obra sem que tenha conhecimento das perspectivas poiéticas empregadas. Assim, chegamos a uma expansão do caráter estésico da comunicação. Para exemplificar a colocação de Molino e aplicá-la ao circuito múltiplo da comunicação musical, podemos incluir as dimensões por ele citadas no circuito de comunicação, obtendo, assim, o seguinte quadro:

COMPOSITOR Partitura INTÉRPRETE Objeto Sonoro OUVINTE

código simbólico escrito

código simbólico sonoro

Quadro 2.4 – Dimensões poiéticas e estésicas da mensagem musical

A dimensão neutra se configuraria como inerente à mensagem e seus signos, sendo sua análise de cunho estrutural, da qual a semiologia se ocupou em seus primeiros anos: a análise das estruturas a partir da observação dos signos. Uma análise do nível neutro destinar-se-ia a avaliar o signo a partir de suas constituições estruturais, independentes dos símbolos a que ela se referem. No entanto, Nattiez defende que uma análise semiológica da música deva atentar para não focar seus esforços puramente no estruturalismo, em detrimento de outros fatores de igual importância. Segundo ele, aliada a essa análise puramente imanente e descritiva (a análise estruturalista), devem-se elaborar interpretações sob o ponto de vista poiético e estésico (o que ele chama de

procedimento indutivo). Tais interpretações atuam no campo da semântica e fazem alusão

às estratégias de produção e percepção. Além disso, defende que “para penetrar ainda mais na poiética de uma obra, pode-se fazer referência não somente a seu contexto histórico e cultural geral, mas se apoiar nos escritos dos músicos” (NATTIEZ, 2005, p. 40). Essa busca por informações exteriores à escrita pura delinearia uma aproximação maior ao fato musical completo, a fim de expor as conexões entre forma e conteúdo. Para isso, Nattiez delineia diferentes espécies de julgamentos, as quais subsidiam a dimensão estésica da mensagem. Sobre tais julgamentos, ele as diferencia como (NATTIEZ, 1990, p. 103):

1) Normativos: avaliações pessoais, julgamentos de gostos;

2) Objetivos: avaliações de natureza técnica, sobre propriedades do estímulo musical (timbre, tempo, vibrato), sobre a forma musical (gênero, estilo, partes) ou sobre o tipo de escritura; Dimensão POIÉTICA Dimensão ESTÉSICA Dimensão POIÉTICA Dimensão ESTÉSICA

3) Sobre o significado: atribuições de conteúdo ao estímulo, muitas vezes extramusicais;

4) Afirmações de ordem interior: relacionadas com efeitos psicológicos experimentados pelo receptor.

Dessa forma, é possível compreender a colocação de Nattiez ao afirmar que a análise semiológica musical só se torna completa à medida em que se têm esses aspectos perceptivos em voga. Essa relação entre o signo percebido pelo receptor e o signo almejado pelo compositor encontra-se no centro do processo de significação, ao qual Lévi-Strauss atribui a emoção musical como fruto do prazer estético. Ele escreve:

“A emoção musical provem precisamente do fato de que a cada instante o compositor retira ou acrescenta mais ou menos do que prevê o ouvinte, convencido de poder adivinhar o projeto, embora seja na verdade incapaz de desvendá-lo devido a sua sujeição a uma dupla periodicidade: a de sua caixa torácica, que esta ligada a sua natureza individual e a da escala, ligada a sua educação. […] O prazer estético e feito dessa infinidade de enlevos e tréguas, esperas inúteis e esperas recompensadas além do esperado, resultado dos desafios trazidos pela obra” (LÉVI-STRAUSS, 2010, p. 36)

Nesse contexto, podemos avaliar as circunstâncias introduzidas pela música eletroacústica no âmbito estésico. O compositor, ao escrever para um instrumentista, mantém contato com as perspectiva estésica da primeira mensagem; a música acusmática o coloca, então, em contato direto com a perspectiva estésica do ouvinte. Além disso, podemos refletir sobre as relações instrumentais e as referências envolvidas com o advento das possibilidades eletrônicas, em que as perspectivas estésicas carecem de suporte simbólico. Por tal motivo, Philippe Manoury afirma o papel da live-electronics sobre a perspectiva estésica, em que a ação exercida pela eletrônica, agindo no percurso da mensagem e fazendo parte dela, amplia as percepções das relações entre causa e efeito:

“A próxima consequência desse estado de coisas é que a máquina, após ter interpelado o artista, interpelará o ouvinte. Ela não constitui simplesmente um meio entre um criador e seu público, como o é por exemplo um violino, mas age entre o gesto do instrumentista e o fenômeno que é percebido. A parte mais enigmática desse modo de comunicação reside no fato de essa ação ser oculta e se realizar sem o conhecimento do ouvinte. Tudo o que ele percebe são efeitos sem que daí deduza suas causas. Os circuitos que partem da captação da consequência do gesto instrumental para chegar à produção do fenômeno sonoro são habitados por demônios” (MANOURY, 2009, p. 208 – grifos do original)

Nesse sentido, podemos concluir sobre outro papel fundamental da música eletroacústica na transformação da linguagem musical: além de exigir um julgamento a respeito de significados ocultos, em que inexiste referência direta, a própria interferência eletrônica carrega em si um significado estésico, trazendo tal caráter à luz da experiência.