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Sobre as contingências instrumentais da linguagem musical

EMOTIVA REFERENCIAL CONATIVA

4. CONTINGÊNCIAS SINCRÔNICAS: O INSTRUMENTO ELETROACÚSTICO

4.1 Sobre as contingências instrumentais da linguagem musical

Para compreender a complexidade do processo de comunicação musical, faz-se necessário analisar esse ponto crucial da diferença entre a linguagem verbal e a linguagem musical: na música existe sempre uma ferramenta de expressão, o instrumento, cujo desenvolvimento tecnológico esteve comumente na vanguarda de muitas das transformações do código musical ao longo de sua história41. Mesmo no caso da música vocal, na qual o instrumento não é externo, mas antes a própria voz, existe sempre um esquema de referência, indicando normas de entonação, projeção, articulação etc. É sob esse aspecto que podemos notar diferentes práticas em diferentes períodos, como o bel

canto ou o Sprechgesang, demonstrando uma espécie de “instrumentalização” da voz.

Como outro exemplo de tecnicidade precedendo e orientando transformações no esquema referencial da linguagem musical, podemos citar a admissão da utilização composicional de certos movimentos melódicos que foram proibidos na prática sincrônica de determinado período, como as quintas de trompa42. Essas passaram a ser permitidas na prática do contraponto devido a um problema instrumental apresentado aos compositores da época de sua formalização: as possibilidades de produção sonora das trompas naturais exigiam esse tipo de condução polifônica para serem funcionais. Exemplos desse tipo de transformação, que parte de questões práticas ao estabelecimento de princípios, podem ser encontrados em toda a história musical. Schaeffer aborda a questão instrumental na música de modo exaustivo em seu Tratado dos Objetos Musicais (1966, pp. 49-68), explicitando a possibilidade de condicionamento do fato musical pelas circunstâncias instrumentais.

Podemos definir toda transformação instrumental expressiva como crucial para certas transformações da linguagem: a transição do cravo ao pianoforte, a adição de teclas adicionais aos instrumentos de madeiras e de pistões aos instrumentos de metais etc., todas essas aquisições implicaram uma mudança paradigmática para os praticantes da

                                                                                                               

41 Aqui abrimos um paralelo sintomático com a linguagem falada, na qual a adição de novos meios

tecnológicos de comunicação, como a informática, por exemplo, introduz mudanças substanciais que afetam a norma linguística a longo prazo. No entanto, na linguagem falada parece-nos que tais mudanças não afetam profundamente o código. Ademais, seria de se supor que essa contingência musical em relação ao desenvolvimento tecnológico dos instrumentos que a executam não possui paralelo de mesma grandeza na linguagem verbal.

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linguagem e, justamente sob essa perspectiva, é-nos complicado realizar uma analogia rigorosa da música com a linguagem verbal. Contudo, ainda que essa diferença entre as linguagens verbal e musical seja incontestável, tal caráter “instrumental” poderia ter suas características práticas analisadas a partir das estruturas expostas por Saussure: tanto sob uma perspectiva sincrônica, por estar inserido na prática compartilhada por certo grupo de indivíduos de determinado período; como também sob uma perspectiva diacrônica, uma vez que tal caráter está ligado a certa tecnologia instrumental, cujos avanços podem determinar rupturas entre estados subsequentes da linguagem musical. É difícil estipular os limites dessa linguística diacrônica: o caráter técnico da música e as necessidades teóricas de sua prática influenciam-se mutuamente, assumindo ora o caráter de causa, ora de consequência.

Prosseguindo ao objeto específico do presente trabalho, vemos que tal questão instrumental encontra, com o advento da música eletroacústica, um alargamento substancial, uma vez que aqui se incluem aparelhos que inicialmente não foram produzidos para esse fim. Embora a utilização de instrumentos eletrônicos já estivesse presente nas obras de compositores na década de 1930, como é o caso da utilização das

Ondes Martenot por Olivier Messiaen em Oraison, de 1937 (e mais tarde na Turangalîla- Symphonie, em 1946-48), ou o caso de John Cage, que compusera Imaginary Landscape

para dois fonógrafos já em 1939, foi na década de 1950 que a instituição de estúdios de música eletroacústica ganha impulso. Em tais estúdios, os equipamentos resumiam-se a osciladores e filtros e a prática da composição eletrônica estava sujeita às limitações impostas por essa “ausência” de recursos. Com o passar do tempo e o desenvolvimento das ferramentas eletrônicas destinadas à própria música, contudo, a prática eletroacústica pôde inserir elementos e realizar descobertas (sobretudo na concepção de timbre) que acabariam por influenciar, inclusive, a linguagem da música tradicional e sua escrita.

Atualmente, é possível dizer que existe virtualmente uma inesgotável rede de possibilidades para a utilização de processos eletroacústicos, tanto no campo do live-

electronics, quanto na esfera da música acusmática ou mista. Na composição musical,

uma vez que o compositor se mostre consciente das idiossincrasias técnicas impostas pela experiência eletrônica, a linguagem se depara com a ausência de esquemas dos quais outrora sentia necessidade para desenvolver sua escritura: faltava-lhes os limites instrumentais com os quais estava acostumado a lidar (tessituras instrumentais, modos de ataques, limites de andamentos impostos pela motricidade do corpo humano etc.), assim

como lhes apareciam, sob outro ponto de vista, novos limites, veiculados às características técnicas dos equipamentos eletrônicos. Pierre Boulez explora esse campo, no qual o compositor deveria descobrir uma nova maneira de lidar com a linguagem musical. Evitar a tentação de se recorrer aos modelos da prática tradicional, segundo ele, mostrava-se como a tarefa mais complicada:

“No campo da eletrônica e dos computadores – instrumento que estaria diretamente envolvido – modelos não existem, ou apenas esporadicamente, e largamente graças à nossa imaginação. Pela falta de esquemas sonoros a seguir, o novo campo parece exageradamente vasto, caótico, e se não inorgânico pelo menos inorganizado. A tentação natural é aproximar esse novo campo aos nossos métodos experimentados e testados e aplicar a rede de categorias familiares a um domínio inexplorado – categorias que pareceriam tornar a tarefa mais fácil e às quais, por essa razão, nós gostaríamos de recorrer impensadamente.”43

Alinhada à tricotomia hjelmsleviana apresentada no primeiro capítulo, a observação de Boulez atenta para a inexistência absoluta de um esquema estabelecido socialmente sob a perspectiva instrumental. Concluímos assim que a partir do momento em que se estabelece um uso compartilhado de ferramentas, os processos de desenvolvimento de tais ferramentas passam a ser motivados por tal uso.

Alfredo Lietti, técnico do Studio di Fonologia Musicale em Milão na época de sua criação por Luciano Berio e Bruno Maderna em 1954, descreve as experiências compartilhadas pelos compositores, em relação ao novo instrumental disponível, em um artigo escrito para a Société Belge de Musicologie intitulado “Évolution des moyens techniques de la musique électronique” (1959). Segundo ele, o fato de os compositores utilizarem instrumentos que não foram desenvolvidos com finalidade musical exigia um intenso compartilhamento de conhecimento entre engenheiros e músicos. Essa relação, também constatada por Schaeffer, passou a atuar nas duas direções: exigia-se do compositor um conhecimento específico sobre as possibilidades dos circuitos eletrônicos; e exigia-se do engenheiro uma atuação que o aproximaria do intérprete. Para Schaeffer, o engenheiro passa então a “enfrentar questões que já não são puramente técnicas, mas cuja                                                                                                                

43  “In   the   field   of   electronics   and   computers   –   the   instrument   that   would   be   directly   involved   –  

models   do   not   exist,   or   only   sporadically,   and   largely   thanks   to   our   imagination.   Lack   of   sound   schemes   to   follow,   the   new   field   seems   exaggeratedly   vast,   chaotic,   and   if   not   inorganic   at   least   unorganized.   The   quite   natural   temptation   is   to   approach   this   new   field   with   our   tried   and   tested   methods  and  to  apply  the  grid  of  familiar  categories  to  an  unexplored  domain  –  categories  that  would   seem   to   make   the   task   easier   and   to   which,   for   that   reason,   we   would   like   to   resort   unthinkingly”   (BOULEZ,  1986,  p.  492).  

finalidade é arbitrada pela escuta sensível, pelo julgamento musical” (SHAEFFER, 1966, p. 79).

Sobre esse aspecto, podemos conjecturar as idiossincrasias envolvidas na constituição das duas escolas proeminentes da música eletroacústica ao final da década de 1940 na França e na Alemanha. Embora relativamente distintas, ambas as tendências iniciais da composição eletroacústica compartilhavam a pretensão de se explorar semanticamente as características morfológicas dos objetos sonoros e, para compreender as implicações sincrônicas e diacrônicas das vertentes eletrônica e concreta, faz-se necessário o conhecimento acerca dos equipamentos disponíveis e suas peculiaridades. Para isso, voltamos a comentar o artigo de Alfredo Lietti citado anteriormente, no qual o autor descreve as utilidades de cada equipamento existente no estúdio da RAI em Milão e suas limitações. Tais equipamentos foram os primeiros a serem incorporados nos estúdios de música eletroacústica da Europa: osciladores, filtros, geradores de pulsos e seletores de amplitudes, cujas particularidades descreveremos a seguir.