EMOTIVA REFERENCIAL CONATIVA
3. RELAÇÕES DIACRÔNICAS: A HERANÇA HISTÓRICA DA MÚSICA
3.3 A emancipação do acaso
Durante a década de 1950, pintores, escultores e arquitetos exploraram um fator que sempre existiu nas artes visuais: um objeto quando visto por diferentes ângulos varia quanto à sua aparência. Assim, uma arte visual pode ter diversas formas, ou ainda uma infinita quantidade de formas e, contudo, continuar a mesma. No campo musical, muitas analogias podem ser feitas com as artes visuais e a indeterminação pode, também aqui, ser entendida como inerente ao objeto, pois à medida em que a execução de uma obra ocorre num espaço temporal e trabalha com diversos parâmetros em sintonia, podemos concluir que jamais existiram duas execuções semelhantes e que toda música possui uma “mutação” natural a cada apresentação. Por esse motivo, Paul Griffiths (1980), em verbete escrito para o dicionário Grove de música, afirma que o conceito de aleatoriedade
se aplica a toda música, pois é impossível para o compositor prever todo aspecto na realização da composição. Embora a música acusmática tenha eliminado o fator humano da interpretação (esse detentor de diversas dissidências indeterminadas relacionadas às pequenas diferenças na interpretação, fisicamente impossíveis de ser exatamente duplicadas), até o som resultante de uma fita magnética (ou, no caso atual, do som proveniente de aparatos digitais) depende de parâmetros como as condições acústicas e os equipamentos e alto-falantes utilizados.
A origem da reflexão sobre o papel do acaso na música ocorreu de forma gradual e foi representada por compositores importantes, como Boulez, Stockhausen, Pousseur e Berio. Segundo Brindle (1987), o serialismo integral desenvolvido na Europa nos anos 1950, enquanto criava uma nova linguagem musical, continha, em si próprio, as sementes de sua autodestruição, principalmente pela complexidade excessiva, criando problemas na performance, os quais dificilmente possuíam um retorno expressivo proporcional. Os sistemas, por mais diversos que fossem, tinham a tendência de produzir trabalhos com certa uniformidade. Se observarmos, no entanto, com maior profundidade a música serial, perceberemos que muito do acaso existe mesmo nas obras mais rigorosamente calculadas. Ainda que em proporções não idealizadas, o acaso se faz aí presente, uma vez que o desenvolvimento de um sistema, seja ele de organização numérica ou não, gera uma indeterminação de eventos futuros ligados ao empirismo do próprio sistema. Em outras palavras, a serialização integral pode ser comparada à confecção de seu próprio conjunto de indeterminações.
Apesar do conceito de casualidade possuir importantes representantes na vanguarda europeia, foi nos Estados Unidos que a aleatoriedade foi levada às últimas consequências. Cage foi o principal representante da música aleatória e, mesmo com as premissas do serialismo integral em declínio na Europa, foi só a partir de sua segunda visita a Darmstadt em 1958 que a indeterminação ganhou notabilidade em solo europeu. Cage, em sua preleção em Darmstadt, expõe os principais conceitos de sua produção musical e, ao mesmo tempo, realiza uma crítica a tradição europeia, deixando clara a natureza experimental de sua obra:
“Esta é uma conferência sobre a composição que é indeterminada quanto a sua performance. O Klavierstück XI de Karlheinz Stockhausen é um exemplo. A Arte
da Fuga de Johann Sebastian Bach é um exemplo. Na Arte da Fuga [...] o timbre
e a amplitude característicos do material, não sendo dados, são indeterminados. Essa indeterminação cria a possibilidade de uma única estrutura de harmônicos e
extensão de decibéis a cada performance da Arte da Fuga. No caso do
Klavierstück XI, [...] a seqüência das partes [...] é indeterminada, criando a
possibilidade de uma única forma, isto é, de uma única morfologia da continuidade, de um único conteúdo expressivo a cada performance”39
Segundo Terra, a questão que se coloca para John Cage é a de caracterizar a especificidade (o traço distintivo) das músicas que empregam esses elementos no século XX. Para o compositor norte-americano, a introdução de componentes indeterminados na música só se constituirá em um fator relevante para a história da música ocidental à medida que implicar uma mudança da própria noção de obra musical. É nesse sentido que faz uma crítica ao uso da indeterminação na peça de Stockhausen, afirmando que, por tal obra não se abster das convenções europeias, o uso da indeterminação seria desnecessário, já que ineficaz. Para Cage, a indeterminação só constituirá um valor na medida em que levar ao rompimento com a tradição musical europeia e afirmar o caráter eminentemente experimental da obra (caracterizando, assim, a motivação linguística vinculada à quebra do contrato social). Ainda segundo Terra, é por não abdicar da escolha do compositor que Boulez recusa o modo como John Cage emprega o acaso em suas obras. A crítica que dirige ao compositor é implacável: trata-se, segundo ele, de uma forma de utilização do acaso que mascara uma deficiência básica na técnica de composição.
Nesse sentido, a questão que se coloca ao compositor, com a possibilidade de que parâmetros indeterminados governem a estruturação de uma obra, é sobre a possibilidade de se especificar o limiar entre uma organização de aspectos aleatórios e o caos, questão à qual as experiências eletroacústica forneceram novas ferramentas de exploração. Em outras palavras: uma possível “banalidade” formal afetaria a integridade de um discurso indeterminado? Como identificar a banalidade ou, ainda, a não coerência na organização de algo que, a priori, pareça, simplesmente, a ausência de tal organização? Deixando de lado os traços estritamente composicionais ligados à forma, como as características estilísticas da vanguarda européia, que tratam a estruturação pela utilização de conceitos musicais e até de percepção primária como, por exemplo, a relação entre som e silêncio,
39 “This is a lecture on composition which is indeterminate with respect to its performance. The
Klavierstük XI by Karlheinz Stockhausen is an example. The Art of the Fugue by Johann Sebastian Bach
is an example. In the Art of the Fugue […] timbre and amplitude characteristics of the material, by not being given, are undetermined. This indeterminacy brings about the possibility of a unique overtone structure and decibel range for each performance of the Art of the Fugue. In the case of Klavierstük XI […] the sequence of the parts […] is indeterminate, bringing about the possibility of a unique form, which is to say a unique morphology of the continuity, a unique expressive content, for each performance”
intensidades, gestos melódicos etc., seria possível a identificação de uma organização da casualidade?
Nesse sentido, Henri Pousseur propõe a ampliação do esquema formulado pela Teoria da Informação (tal como desenvolvida por Claude E. Shannon e Warren Weaver em 1949), desdobrando em dois níveis e, por conseguinte, em duas linhas perpendiculares as noções conjugadas nas extremidades de seu eixo. Opõe, de um lado, ordem e desordem e, de outro, riqueza e banalidade:
Fig. 3.1 – Eixo da Teoria da Informação (POUSSEUR apud TERRA, 2000, p. 45)
Vera Terra escreve sobre o diagrama anterior:
“A ordem banal nada informa, nada cria. O estado de desordem banal, caracterizado pela ausência total de ordem, produz um ‘nivelamento homogeneizador’, que empobrece e até mesmo anula o processo criador. Paradoxalmente, a tentativa de construir uma ordem rica, através do controle total dos parâmetros sonoros, produziu, na primeira fase do serialismo pós- weberniano, o mesmo efeito de ‘nivelamento homogeneizador’ no âmbito global da obra. Para solucionar esse problema, os compositores voltaram-se para o sentido oposto do eixo, em direção à desordem rica. Buscaram construir uma organização aberta, através da pesquisa de formas móveis ou variáveis e do exercício de práticas de invenção coletiva. Associando ordem e desordem,
procuraram superar o dualismo presente na primeira fase do serialismo pós- weberniano e na Teoria da Informação, concebendo a composição como um processo de ‘diferenciação definidora’. È nesse contexto que o acaso integra as decisões composicionais. Seu papel é o de estimulação, de produção de surpresa e desvio, de modo a promover a abertura da obra” (TERRA, 2000, p. 45-46).
No contexto sobre a abertura da obra ao acaso, e da sua possível sistematização, podemos perceber outra contingência diacrônica herdada pela música eletroacústica: o papel do acaso na linguagem musical já era discutido e, não por acaso, relações randômicas foram desde cedo exploradas na computação musical. A publicação da Teoria da Informação em 1949 levou Claude Shannon e Warren Weaver a elaborar um projeto de construção de uma máquina de compor, baseada num sistema de probabilidades randômicas. Iannis Xenakis, décadas depois, apresenta um novo modelo baseado em relações estocásticas e, fazendo uso da estatística, desenvolve um sistema composicional baseado na incerteza de eventos futuros. A indeterminação, aqui, é parte constituinte da estruturação da obra e podemos considerar que a música eletroacústica, ao mesmo tempo que incorpora as reflexões correntes, possibilita, através de seu instrumental, um grau de rigor sobre o tema até então impensável. A utilização do acaso na música eletrônica torna-se muito comum desde então, abrindo possibilidades de estruturação e expressão através de procedimentos que englobam a utilização de processos matemáticos e estatísticos gerando, assim, uma interligação da música com outros avanços tecnológicos, (conforme veremos a seguir). Se antes a indeterminação resumia-se a apenas alguns aspectos da composição, com a música eletroacústica ele passa a atuar de formas mais ou menos rígidas, sendo que o objeto sonoro gerado pelas transformações eletroacústicas na eletrônica em tempo real, em seu aspecto concreto, gravado e passível de análise, demonstra uma indeterminação inerente (nos moldes daquelas apontadas anteriormente), relacionada aos pequenos desvios gestuais diferentes de intérprete para intérprete, os quais podem ser manipulados de forma a exagerar os aspectos causais da interpretação. A ampliação de tais desvios, através de procedimentos eletrônicos e exacerbando as flutuações inerentes aos objetos sonoros, demonstrou-se detentora de grande potencial expressivo, sobre o qual a busca pela indeterminação como parâmetro sistemático pode transcorrer. Além disso, em concomitância com o pensamento musical vigente, o uso da indeterminação passa a atuar sobre outros parâmetros, incluindo as variações
modulatórias, cuja taxa de modulação pode ser determinada por geradores de sequências randômicas.
Dessa forma, percebe-se a confluência de dois fatores predominantes no pensamento musical herdado pelos compositores à frente dos primeiros experimentos no campo da música eletroacústica, a saber: a serialização e a indeterminação. Consciente das peculiaridades da aplicação da técnica serial aos primeiros experimentos, Berio aponta para o fato de que procedimentos seriais aplicados à totalidade de parâmetros (fundamento teórico utilizado nos experimentos em Colônia, por exemplo) acabaram por gerar resultados perceptivos análogos aos procedimentos randômicos. Para ele, no entanto, é “inegável que a consciência dessa similaridade relativa de resultados esta na raiz de muitos avanços musicais significativos das ultimas décadas”40.
Dessa forma, podemos considerar que os princípios seriais e aleatórios já encontravam-se em pauta nas discussões teóricas durante o nascimento da música eletroacústica, estando presentes nas preleções de John Cage e Karlheinz Stockhausen, em Darmstadt, no ano de 1958. Desvincular os primeiros anos da música eletroacústica (e seus desenvolvimentos iniciais) dessa herança histórica, compromete a compreensão de suas motivações, as quais esbarram nas fortes contingências dos recursos eletroacústicos, como veremos a seguir.
40 “It is equally undeniable that the awareness of this relative similarity of results is at the root of many