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O presente trabalho discutiu e analisou a transposição de termos oriundos da linguística e da semiologia (em particular aqueles provenientes de textos de Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson e Roland Barthes) para a linguagem musical, bem como a aplicação de tais termos ao advento particular da música eletroacústica. A dicotomia sincronia/diacronia norteou a estrutura e delineou as aproximações realizadas no decorrer do trabalho, cujas acepções a respeito do processo composicional (em particular aqueles de Pierre Schaeffer, Pierre Boulez, Luciano Berio, Karlheinz Stockhausen e Flo Menezes) também demonstraram-se de grande valor para a realização da análise musical presente no último capítulo.

Observou-se que as aproximações semiológicas entre linguagem musical e verbal, a partir dos fundamentos expostos pelos autores supracitados e abordados na primeira parte deste trabalho, configuram-se como prolíficas, contanto que considerem-se algumas diferenças pertinentes entre tais. No presente trabalho, foram discutidas três delas: 1) a expansão do circuito da fala musical, 2) as relações entre arbitrariedade e motivação na linguagem musical e a 3) instrumentalização da prática linguística da música. Em se assegurando uma abordagem que leve em conta os meandros teóricos e práticos envolvidos, pôde-se observar uma complexa rede de referências desenvolvendo-se sob perspectivas sincrônicas e diacrônicas, as quais delimitam-se através das funções práticas da linguagem musical – determinadas pelo circuito da fala –, assim como através dos materiais de que faz uso. Sobre esses aspectos, averiguou-se que a música eletroacústica mostra-se como portadora de potencialidades linguísticas substanciais, configurando-se, ora como fonte de rupturas na linguagem (tanto em seu caráter prático, no circuito da fala, quanto na deflagração de possibilidade de rigor na criação semântica sobre a morfologia sonora a partir dos novos instrumentos disponíveis), ora como consequência de heranças teóricas diacronicamente relacionadas ao desenvolvimento histórico de tal linguagem.

A discussão a respeito da ampliação dos traços distintivos dos signos musicais demonstrou a experiência eletroacústica como determinante para a compreensão dos elementos acústico-musicais (esses comparáveis, como visto, ao nível fonológico da linguagem verbal), cujos contornos contribuíram sobremaneira para o desenvolvimento de teorias que auxiliassem na expansão da compreensão sobre as morfologias dos objetos sonoros.

A configuração dos eixos linguísticos sistema/sintagma, tal como sugerida por Roland Barthes, também auxiliou na determinação dos limites da linguagem, e o aspecto

formal da construção linguística musical (vinculado ao ato social compartilhado da transmissão sonora, como bem asseverara Jakobson) mostra-se completamente dependente de um eixo associativo, cujas relações in absentia se estabelecem como determinantes na formação do valor específico do signo musical. Nesse sentido, viu-se que as escolas francesa e alemã adotaram diferentes estratégias na busca pela identidade particular do timbre. A musique concrète, através da manipulação de sons gravados, desenvolveu-se na direção de categorizar diferentes níveis morfológicos, dos elementos mais simples aos mais complexos, do espectro sonoro. A elektronische Musik, por outro lado, concentrou-se na criação de blocos sonoros a partir de ondas senoidais e através das variações de seus parâmetros. Em ambos os casos, no entanto, as descobertas mostraram- se determinantes para o desenvolvimento do eixo sistemático barthesiano discutido. Aplicáveis aos parâmetros timbrísticos, tais estudos desvelaram as ferramentas para a organização de uma possível sintaxe de timbres, através da atribuição de valor aos traços pertinentes envolvidos.

No segundo capítulo, avaliamos o circuito da fala (que, através das críticas de Jakobson ao Curso de Saussure, revela-se determinante na configuração do sentido linguístico) nos valendo do sistema triádico de Karl Bühler para dissociar o signo musical de sua representação escrita. Além disso, tal sistema triádico forneceu-nos um modelo seguro para a inserção do intérprete no circuito da comunicação musical. As discussões sobre o alargamento de tal circuito na linguagem musical revelou o profundo impacto que tais experiências representaram, na medida em que possibilitaram a manutenção de diferentes graus de interferência sobre a escritura de uma obra.

O sistema de Karl Bühler possibilitou, também, uma aproximação muito prudente com as funções linguísticas jakobsonianas. Sobre tais, as análises de Flo Menezes guiaram a transposição para o campo da música, centralizando a função poética e elucidando uma preponderância das funções auto referenciais, sobretudo àquelas associadas ao código ou à mensagem do esquema de Jakobson. Aqui, os diferentes tipos de escuta propostos por Pierre Schaeffer apontam o papel do receptor da mensagem na confecção do sentido musical. Nesse contexto, apoiamo-nos sobre as perspectivas poiéticas, estésicas e neutras do signo musical, tal como apontadas por Jean-Jacques Nattiez e Jean Molino, as quais estão relacionadas às estratégias escriturais adotadas pelo compositor e às estratégias perceptuais adotadas pelo receptor durante o processo de comunicação.

A escritura musical, na acepção compartilhada por Pierre Boulez e Flo Menezes do termo, desvela-se na intersecção de contingências sincrônicas (nas quais o compositor se depara com novas possibilidades instrumentais) e diacrônicas (que colocam o compositor numa espécie de “contrato social”, no qual ele busca elementos para criar seu estilo). Além disso, o advento da música eletroacústica mostra-se como agente de transformações na própria concepção de obra musical. A escrita, até então fonte da análise semiológica (que em seus primeiros anos de aplicação à música se concentrava sobre o aspecto neutro do signo musical), com o advento da música acusmática deixa de existir, abrindo espaço para emancipação da concepção de escritura independente, tanto da escrita quanto do intérprete, e trazendo à tona elementos inerentes ao processo criativo. Aqui, balizamo-nos nas ideias de Roland Barthes para delinear a extensão do termo escritura musical, cuja emancipação ocorre com a música acusmática, que destitui a escrita da escritura. As análises de Leyla Perrone-Moisés sobre as ideias de Roland Barthes evidenciaram a informação poética como inerente a própria mensagem, determinando o estilo da composição como dependente de uma rica rede de referências compartilhadas pelos atuantes do circuito da fala musical (que, como já assegurara Saussure, só se tornam possíveis através do “código social”, a língua). Nesse sentido, as ideias de Pierre Boulez, Flo Menezes e Iannis Xenakis, cujos apontamentos desenvolveram-se de forma a evidenciar as contingências teóricas (herdadas culturalmente) e práticas (evidenciadas pelo aparato eletroacústico) da linguagem eletroacústica, deflagraram uma total interferência na própria escritura instrumental, que passa a buscar elementos para a transmissão de valores semânticos timbrísticos, cujo rigor foi ampliado através das descobertas realizadas pelos estudos eletroacústicos.

No terceiro capítulo, sugeriu-se de início a averiguação sobre aspectos arbitrários e motivados dos signos musicais. Como bem previra Roland Barthes, a música se apresenta como um sistema semiológico no qual motivações sistemáticas podem partir do indivíduo (ou, no caso, do compositor) e no qual os signos podem possuir valores radicalmente motivados. No caso da música eletroacústica, as motivações podem ser remetidas diacronicamente, dessa forma, ao esfacelamento do sistema tonal do início do século XX. Nesse contexto, as contingências sincrônicas e diacrônicas demonstraram-se como determinantes na construção das obras eletroacústicas inaugurais, as quais se nutriram das discussões teóricas vigentes sincronicamente, essas completamente atreladas a uma herança cultural de ordem diacrônica. Para o propósito desde trabalho, focamos a

discussão a respeito dessa herança histórica da música eletroacústica em dois aspectos centrais, já presentes e desenvolvidos entre as décadas de 1940 e 1960: o serialismo e a indeterminação na construção das estratégias composicionais. A discussão realizada foi dividida em duas partes: uma sobre o papel de Anton Webern para o desenvolvimento do serialismo integral, e outra sobre o uso do acaso na música, a partir das cartas trocadas por Pierre Boulez e John Cage (e editadas por Jean-Jacques Nattiez). As especulações acerca do embate entre o extremo controle serial (oriundos da poética weberniana) e o acaso absoluto proposto por Cage, deflagraram que, qual fosse o caso, os resultados sonoros obtidos pelas diferentes estratégias eram, muitas vezes, semelhantes do ponto de vista estésico (ao que Luciano Berio atenta como sendo uma das grandes descobertas da sua geração). Nutrida por tais discussões, a linguagem eletroacústica desenvolveu-se em torno da manutenção de estratégias que incorporavam, entre outros aspectos, aleatoriedade e controle serial. Averiguou-se assim, conforme previsto pelo sincronismo

dinâmico de Jakobson já apontado no primeiro capítulo, ser impossível dissociar

completamente os desenvolvimentos tecnológicos do instrumento eletroacústico e a herança histórica da linguagem musical.

No quarto capítulo, revelou-se o papel das contingências instrumentais na configuração das obras inaugurais, assim como a indissociável relação entre as possibilidades técnicas apresentadas e as estratégias criativas adotadas. O rápido desenvolvimento dos meios tecnológicos permitiu o alargamento das possibilidades expressivas apresentadas ao compositor, culminando no desenvolvimento de softwares especializados na produção e difusão de sons eletroacústicos. A partir da nova instrumentação, as especulações teóricas ganharam novos terrenos de atuação, podendo ser aplicadas, inclusive, durante a execução da obra e interferindo no objeto musical executado pelo intérprete, através da eletrônica em tempo real. Tal novidade, aliada às novas ferramentas de difusão dos objetos gerados eletronicamente ao redor do público, demonstram a música eletroacústica como fonte de novas descobertas, que acabaram por incrementar significativamente a linguagem musical em todos os seus níveis.

Nesse contexto, a análise das obras Scriptio e TransScriptio de Flo Menezes, apresentada no quinto capítulo, absorve as aproximações entre as linguagens verbal e musical realizadas durante o trabalho. Dessa forma, tal análise organizou-se em três partes: 1) uma abordagem a respeito do eixo sistemático da obra, responsável pelos valores associativos de seus signos; 2) uma abordagem a respeito do eixo sintagmático,

sobre o qual o compositor relaciona os termos no fluxo temporal da obra; 3) e uma abordagem a respeito da escritura eletroacústica, responsável pelas transformações que resultam na transfiguração de Scriptio em TransScriptio. Valendo-se das concepções do próprio compositor a respeito das etapas da construção musical, destacada pela sua “estrela de cinco pontas da composição”, citada na introdução da análise, conseguiu-se sublinhar todos os elementos discutidos durante o trabalho, incluindo as relações entre as estratégias poiéticas do compositor e as possibilidades estésicas apresentadas ao intérprete e ao ouvinte final. A discussão sobre a escritura eletroacústica da obra demonstrou-se bastante prolífica, deflagrando o largo potencial expressivo da relação intérprete/live-electronics. Através da exploração da interatividade entre escritura instrumental e processamentos eletrônicos, Flo Menezes incorpora a transgressão da eletrônica sobre a própria partitura instrumental. Aqui, mais uma vez, a escritura eletroacústica acaba por asseverar múltiplas influências sobre a prática da linguagem musical.

ANEXO

PARTITURAS