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2. Herança clássica

2.3. Caracteres de uma primitiva escrita

Desejo Sob os Ulmeiros foi um escândalo – e adiante explicitaremos em que

sentido preciso ele é, em si mesmo, um escândalo (ponto 3.1). Mas, excetuando talvez as situações em que os objetos artísticos assentam numa deliberada estratégia de choque, num plano de perturbação da ordem emocional – e esse não é certamente o caso da peça de Eugene O’Neill –, esta categoria não se revela grandemente útil se for nossa intenção inquirir da natureza específica de um texto dramático ou de uma proposta teatral. A reportagem da indignação tende a fixar-se na espuma das coisas, que rapidamente se dissipa, condenando o assunto a um envelhecimento precoce e deixando escapar o essencial.90 Todavia, se nos ativermos momentaneamente ao magma incandescente de que Desejo é feito (incesto, filicídio, alcoolismo, luxúria, vingança, todo um catálogo de paixões e delitos) e à reação que colheu nos EUA das primeiras décadas do século XX (como regista ainda a Encyclopædia Britannica, “o primeiro elenco de Los Angeles foi preso por representar uma obra obscena”),91 afigurar-se-á inteiramente justificado que o dramaturgo norte-americano visite, neste seu teatro do

escândalo, a obra do tragediógrafo da Antiguidade clássica que, precisamente, como

informa Frederico Lourenço, “mais escandalizou os seus concidadãos com a ousadia dos temas que tratou”.92

Referimo-nos a Eurípides, o ateniense que terá virado do avesso o ethos dos heróis trágicos e feito “descambar”93 a própria tragédia enquanto género nobre. Dizê-lo não corresponderá a um exagero retórico ou a uma liberdade estilística da nossa parte. A

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Um exemplo tomado de empréstimo ao cinema: a onda de choque produzida por Je vous salue, Marie impediu que se alcançasse uma evidência (como diz Nelson Rodrigues, “só os profetas enxergam o óbvio”): o facto de o filme de Jean-Luc Godard estar imbuído de uma reverência de cariz religioso. Sentimo-nos inclinados a subscrever a opinião do jornalista e escritor italiano Sergio Saviane, que, na altura em que o filme se estreava em Roma, afirmou: “É um filme hiper-católico! Nunca esperaria isto de Godard… Está cheio de amor e graciosidade infinita. Não há nele ponta de obscenidade ou blasfémia!”

Apud Maryel Locke, “A History of The Public Controversy”, in Charles Warren/Maryel Locke (ed.), Jean-Luc Godard’s Hail Mary: Women and The Sacred in Film, Carbondale, Southern Illinois University

Press, 1993, p. 5.

91 In Encyclopædia Britannica [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.britannica.com/

EBchecked/topic/159216/Desire-Under-the-Elms> [consult. 09-04-2014].

92 F. Lourenço, “Eurípides, Medeia”, in Grécia Revisitada, op. cit., p. 296. 93 F. Lourenço, “Eurípides: Trágico no Superlativo”, op. cit., p. 58.

descrição pertence ao escritor e helenista português, que, ao cotejar o teatro euripidiano com o de Ésquilo e o de Sófocles, apresenta um esclarecedor ponto de situação:

A elevação moral esquiliana desapareceu. A nobreza de expressão e a sobriedade de efeitos de Sófocles também. Em Eurípides, assistimos (passe a expressão) à desbunda total. O estilo é ao mesmo tempo hiperbólico, simples, barroco, transparente, incompreensível, de mau gosto e arrepiantemente lírico. Poesia em estado puro, poesia do quotidiano, poesia da desmesura, poesia do gore, do sangue, da morte, da loucura: esta é a própria respiração da tragédia de Eurípides.94

Um diagnóstico que é confirmado por Maria de Fátima Sousa e Silva, num estudo em que, respigando testemunhos em Aristófanes, analisa o drama de Fedra tal como este nos surge no Hipólito de Eurípides – tragédia de que conhecemos apenas uma segunda versão (Hipólito Portador da Coroa), supostamente expurgada de uma desassombrada disposição viciosa constante da primeira (Hipólito Velado), dada como perdida.95 Nesse ensaio, a classicista assinala o golpe que o criador de intrigas eróticas e “uniões culpadas” (citando Aristófanes) desferiu à honorabilidade do teatro clássico: “A acusação de imoralidade cai agora, com ecos de escândalo, sobre a tragédia.”96

Evidentemente, não terão sido a aura de escândalo nem a notícia do ultraje público a desencadear o interesse de Eugene O’Neill por Eurípides e o seu Hipólito. A nosso ver, a atenção do dramaturgo norte-americano – tal como se manifesta em Desejo

Sob os Ulmeiros – incide no conflito erótico que o poeta antigo não hesita em explorar

(ao invés dos seus predecessores, que dele guardam distância), na orientação realista que confere ao teatro clássico e, invocando de novo o saber de Maria Helena da Rocha

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Idem, ibidem.

95 Têm sido empreendidas diversas tentativas de reconstituição do primeiro Hipólito, cujo despudor terá

chocado a sensibilidade do público ateniense. Pela importância de que ainda se reveste o seu estudo, mencione-se a de Spencer Barrett (vide W.S. Barrett, Euripides’ Hippolytus, Oxford, Claredon Press, 1964, pp. 15-22). Transcrevemos a versão mínima de um desses exercícios reconstitutivos: “A Ama de Fedra terá tentado refrear a paixão da sua senhora, em vez de encorajar a sua manifestação. Depois de Fedra apresentar a sua acusação ao marido Teseu, há uma confrontação entre ele e Hipólito, culminando, como na versão que chegou até nós, na imprecação que Posídon executou, ao enviar um touro do mar para matar Hipólito. A verdade é revelada, talvez através de uma confissão de Fedra, que depois suicida- se.” Peter Burian, “Myth into muthos: the shaping of tragic plot”, in P. E. Easterling (ed.), The Cambridge

Companion to Greek Tragedy, New York, Cambridge University Companion, 1997, pp. 201-202.

96 Maria de Fátima Sousa e Silva, “A Fedra de Eurípides: Ecos de um escândalo”, in Ensaios Sobre

Pereira, na “feição predominantemente psicológica do teatro do terceiro dos grandes trágicos gregos”.97 Fedra avulta nessa galeria de heroínas euripidianas “cuja feminilidade – assegura-nos Frederico Lourenço – é aproveitada com uma verosimilhança psicológica que faz delas figuras muito mais reais do que as inesquecíveis, mas comparativamente monolíticas, Cassandra e Antígona, de Ésquilo e Sófocles, respetivamente”.98 Orientação realista, drama psicológico, lutas endógenas, desejo sexual – como veremos, todas estas matérias orgânicas fertilizam o subsolo da herdade dos Cabot…

Comecemos, contudo, pela evidência – por aquilo que, cartesianamente, se nos afigura claro e distinto: a simpatia entre a ação dramática de Desejo Sob os Ulmeiros e o

Hipólito. Na tragédia estreada a 428 a.C., que valeu a Eurípides o primeiro prémio nas

Grandes Dionisíacas, Fedra é acometida por uma avassaladora paixão carnal pelo jovem Hipólito, filho do seu marido, Teseu. Desprezada no seu amor, e não querendo trazer desonra sobre si e os seus filhos, comete suicídio e vinga-se de Hipólito, ao deixar escrita uma infundada acusação contra o enteado – a de que este a violara, poluindo a cama do próprio pai. Confrontado com a denúncia, Teseu amaldiçoa o filho, nesse mesmo dia despedaçado por um touro que, em resposta à paterna imprecação, irrompe das águas do mar. Na nossa perspetiva, é este incandescente triângulo que se encontra, distorcida ou retorcidamente, reproduzido em Desejo Sob os Ulmeiros: Abbie é essa mulher sensual que, tendo casado com o septuagenário Ephraim, deseja, desde o primeiro encontro, o corpo jovem e vigoroso do enteado; Eben é esse enteado que – não representando o supino modelo de virtudes que Hipólito encarna – reage, todavia, com a repugnância e altivez deste à expressão do desejo da mulher do pai; e Ephraim é esse pai que deposita crédito na palavra da mulher ensandecida pelo desejo e não hesita em amaldiçoar o filho. Mas o carácter intrincado, manifestamente não linear, deste jogo de

97 M. H. R. Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, vol. I, op. cit., p. 325. Maria de Fátima

Sousa e Silva evoca todos estes elementos no seu estudo sobre a Fedra: “A orientação realista que Eurípides procurou dar à tragédia influenciou, como é inevitável, a caracterização psicológica das personagens. Humanas como são, as figuras que criou participam das fraquezas inerentes à sua própria natureza. E Eurípides compraz-se em denunciar as lutas interiores que as dominam, como a qualquer simples mortal, o que constitui um elemento novo dentro do teatro trágico. Pela primeira vez, a cena da tragédia abria-se ao vasto domínio das relações sentimentais entre os dois sexos, que os seus antecessores tinham evitado por considerarem indigno tal tipo de intrigas.” M. F. S. Silva, “A Fedra de Eurípides: Ecos de um escândalo”, op. cit., p. 167.

semelhanças e correspondências lembra-nos o imperativo contido no velho oxímoro:

Festina lente.

Detenhamo-nos, pois, antes de mais, nos reflexos e refrações que Abbie estabelece com a sua remota ascendente grega. Como Fedra, a personagem de O’Neill começa por ocultar o desejo que sente e, a exemplo da filha de Pasífae, vinga-se do ostensivo repúdio a que é votada, forjando a acusação de que Eben a tentara seduzir, uma patranha que, na terceira e última parte da peça, conhecerá consequências devastadoras. Ao invés de Fedra, contudo, Abbie confronta diretamente o enteado e acaba mesmo por ser bem-sucedida nas suas investidas eróticas, fazendo de Eben seu amante. Surgindo aos nossos olhos como uma criatura estruturalmente oportunista e lasciva, talvez Abbie tenha mais em comum com a Fedra da infeliz (porque tão mal acolhida) primeira versão do Hipólito. Nessa versão, dada como perdida, Fedra afigurar- se-ia uma mulher amoral que ousava despudoradamente seduzir o enteado, descrição que se ajustaria na perfeição à personagem o’neilliana. Sucede, porém, que a figura de Abbie não é puramente negativa. Se, no Hipólito sobrevivente e definitivo, a esposa de Teseu é uma figura de incontestável dignidade,99 a mulher de Ephraim Cabot é, de algum modo, reabilitada ao longo da peça de O’Neill, descobrindo-se-lhe afinal uma insuspeitada nobreza nos horrores de que é simultaneamente vítima e fautora.100 Nesse ponto, assemelha-se mais à Fedra de Hipólito Portador da Coroa do que à de Hipólito

Velado, cujo suicídio seria afinal destituído de qualquer honra ou dignidade, afigurando-

se antes um cobarde ato de fuga. De resto, poderiam pertencer a uma Abbie rural múltiplos passos das intervenções da heroína euripidiana, nomeadamente a seguinte metáfora agrícola: “A minha alma já está completamente arada pelo desejo…” (v. 505)

99 Na introdução à sua tradução do Hipólito, Frederico Lourenço chama a nossa atenção para o facto de

tal dignidade ser reconhecida inclusive por Ártemis, deusa que teve em Hipólito o mais escrupuloso devoto. Dirigindo-se a Teseu, diz: “Venho para te mostrar o espírito justo do teu filho, para que morra honrado, e para te mostrar a paixão desvairada da tua mulher ou, de certo modo, a sua nobreza.” (vv. 1296-1301) Vide Frederico Lourenço, “Introdução”, in Eurípides, Hipólito, trad. Frederico Lourenço, Lisboa, Colibri, 1996, p. 11.

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Frederico Lourenço salienta uma estratégia tipicamente euripidiana: “Ao longo da peça, Eurípides leva o espectador a rever de alto a baixo a sua perceção das duas personagens principais, a ponto de, no final, ficarem completamente invertidos os papéis do ‘bom’ e do ‘mau’.” F. Lourenço, “Introdução”, op. cit., p. 12. Uma estratégia análoga é aplicada por O’Neill em Desejo Sob os Ulmeiros, obrigando-nos a “rever de alto a baixo” a nossa perceção das personagens: se inicialmente a nossa simpatia está com Eben – uma espécie de Hamlet chamado a vingar a mãe –, no final é o desesperado amor de Abbie que nos comove.

Tal como a castamente lúbrica personagem de Eurípides, Abbie está refém do impiedoso poder de eros e thanatos, que num caso redunda em suicídio e no outro em infanticídio. Fedra e Abbie são, ambas, acometidas pelo mal da loucura: no Prólogo, Afrodite alude à intensa perturbação psíquica da sua devota e, sobressaltada pelas desconformes palavras de Fedra, a Ama confirmará, logo no primeiro episódio, o

prognóstico precoce enunciado pela deusa, obtendo o assentimento da sua senhora:

AMA: Mas que conversa disparatada é esta outra vez? Mesmo agora ias para a montanha, desejosa de ir à caça. Agora é a paixão dos poldros nas praias sem ondas. Perceber qual dos deuses te afasta do caminho e dá a volta à cabeça – isto, filha, só mediante poderes de divinação muito especiais!

FEDRA: Pobre de mim, que terei eu feito? Para onde me afastei do bom senso? Enlouqueci… caí devido a uma interferência divina. Ai, ai, pobre de mim! Ama, cobre-me outra vez a cabeça. Tenho vergonha das coisas que disse. Cobre-me. As lágrimas correm-me dos olhos e só vejo vergonha à minha frente. Pensar racionalmente dói, mas a loucura é uma desgraça terrível. (vv. 232-248)

No caso de Abbie, a loucura insinua-se sub-repticiamente na brusca mudança de humor que ocorre quando irrompe pela sala de visitas onde o corpo da mãe de Eben estivera em câmara ardente, para manifestar-se em toda essa cena, célebre pelo seu funéreo erotismo [II Parte, Cena 2]. Nesse lugar – a peculiar câmara ardente a que acima nos referimos –, Abbie assimila, perturbada e perturbantemente, a figura invisível da mãe morta e consuma o ‘incesto’ com Eben. Nas didascálias, o recurso de O’Neill a expressões como “louca paixão” ou “doidamente” não configuram propriamente hipérboles ou meras forças de expressão. Após o infanticídio, quer Eben quer Ephraim compreenderão que, como afirma Fedra, “a loucura é uma desgraça terrível”.

ABBIE:(Demasiado absorta nos seus próprios pensamentos para o ouvir e tentando convencê- lo.) Não há agora razões para que vás… Não faz sentido… Está tudo como dantes… Não há

nada entre nós… depois do que eu fiz!

EBEN: (Algo na voz dela o intriga. Fita-a um tanto assustado.) Pareces louca, Abbie! Que

fizeste? [III Parte, Cena 3]

EPHRAIM: [O teu filho] está como eu esta manhã. Nunca dormi até tão tarde… ABBIE: Está morto.

CABOT:(Fita-a, perplexo.) O quê?…

CABOT:(Recuando, lívido.) Estás bêbada… ou doida… ou…!

ABBIE: (Levanta de repente a cabeça, volta-se para ele, desvairada.) Matei-o, é o que te digo! Abafei-o. Vai lá acima ver, se não me acreditas! [III Parte, Cena 4]

Numa apressada primeira leitura, é difícil identificar a simetria entre as personagens de Eben e Hipólito: o jovem de Desejo Sob os Ulmeiros não apenas cede aos libidinosos avanços de Abbie, como está longe de se pautar pelos elevados padrões de castidade e autodomínio erguidos pelo nobre adorador de Ártemis. Nunca da boca da personagem de O’Neill sairiam as seguintes palavras: “Não estou interessado em deuses que se limitem a taumaturgias nocturnas” [v. 106]. Nem se poderia despedir dos seus irmãos, Simeon e Peter, nos termos em que Hipólito diz adeus aos companheiros de juventude: “Nunca vereis outro homem mais virtuoso” [v. 1100]. Na verdade, logo na abertura de Desejo, é-nos dado a saber que Eben visita frequentemente Minnie, a “mulher escarlate”, meretriz de aldeia com quem já seu pai e irmãos se haviam deitado. Fá-lo inclusive no “dia do Senhor”, como afirma uma escandalizada – ou despeitada – Abbie. Os irmãos acusam: “Luxúria… é o que cresce em ti!” [I Parte, Cena 2]; mais adiante, o pai há-de corroborar: “A luxúria corrói-lhe o coração.” [II Parte, Cena 1]. No entanto, a nosso ver, o vínculo entre o casto Hipólito e o devasso Eben subsiste, e reconhecê-lo não requer uma especial subtileza de análise: ainda que com um carácter diverso, a indignação e a repugnância com que o nobre herói de Eurípides reage às imorais propostas da Ama são análogas às que Eben expressa face à lúbrica insinuação de Abbie. Curiosamente, quando agarrados pelo braço, ambos se livram do repulsivo contacto físico, eloquente demonstração de um asco que tem na ação de “cuspir” um violento correlato.

HIPÓLITO: Não me posso calar, depois das coisas terríveis que ouvi. AMA: (Agarra o braço de Hipólito.) Podes sim, pelo teu braço direito.

HIPÓLITO: (Com um espasmo de repugnância.) Importas-te de tirar a mão e de não me tocar na roupa? [vv. 604-606]

ABBIE: (Pousando a mão no braço dele, sedutora.) Sejamos amigos, Eben.

EBEN:(Estupidificado, como que hipnotizado) Sim!… (Depois, sacudindo com fúria o braço dela:) Não, velha bruxa! Tenho-te ódio! [I Parte, Cena 4]

HIPÓLITO: Tenho nojo deles! [Literalmente: “Cuspi!”] Delinquentes a mim não me são próximos! [vv. 613-614]

EBEN:(Cuspindo com nojo.) Essa… aqui… a dormir com ele… a roubar a herdade da minha

mãe! Mais valia amansar uma doninha malcheirosa ou beijar uma serpente! [I Parte, Cena 3]

À altivez e superioridade moral que definem a postura de Hipólito e Eben face a Fedra e Abbie haverá que somar uma intrigante feição da fisionomia moral daquela personagem grega, que reaparece, ainda que desfigurada, no seu longínquo descendente norte-americano: a misógina recusa do casamento e a veneração de uma figura transcendente, exterior ao universo dos mortais. No discurso que encerra a truculenta altercação com a Ama, Hipólito fará inclusive do tópico um eminente objeto de teorização.

HIPÓLITO: O mais fácil de aturar é a mulher que nem conta como gente; mas entronizar em casa estupidamente uma mulher assim também não serve de nada. Detesto as que são inteligentes: que nunca haja nenhuma em minha casa que pense mais do que deve uma mulher. É entre as mulheres inteligentes que Cípris implanta a pouca-vergonha. A sua própria estupidez impede a mulher limitada de enlouquecer. Era preciso que nenhuma criada se aproximasse da mulher e que com elas só vivessem animais afónicos, amigos de morder, para que não fossem capazes de falar nem, por sua vez, de lhes compreender a voz. Mas agora elas elaboram – as malvadas! – estratagemas perversos, que depois as criadas vêm cá para fora divulgar. [vv. 635-651]

Apesar de não se escusar ao comércio íntimo, de bom grado Eben subscreveria, como num abaixo-assinado, a feroz catilinária do seu ascendente ático. Se Abbie é repetidamente tratada por “pega”, “ladra”, “mentirosa” e “bruxa”, Minnie – a mulher cuja beleza e até honestidade são apregoadas nas contendas com os irmãos e com Abbie – não chega, na verdade, a merecer-lhe qualquer genuíno apreço: “Que me ralo eu com ela! Só me interessa que tem carne e da quente!” [I Parte, Cena 3]. Casar é algo que está ausente do seu horizonte de expectativas e é estranho à sua índole, como se depreende da seguinte troca de palavras entre pai e filho:

CABOT:Porque não vais para o baile? Estavam a perguntar por ti. EBEN: Que perguntem!

CABOT:Há lá uma molhada de raparigas bonitas. EBEN:Que vão para o diabo!

EBEN:Não vou casar com nenhuma. [III Parte, Cena 2]

Poderá certamente atribuir-se uma tal atitude à peculiar união de facto mantida com Abbie, mas estamos convencidos de que a sua raiz e motivação são anteriores e se prendem com a figura tutelar da mãe, cuja morte absorve a vida do filho, impondo-lhe uma dedicação absoluta. De facto, nem o envolvimento sexual com Abbie chega a fazer perigar esta influência, uma vez que a cópula é precedida por um fenómeno de ‘reencarnação’ da mãe na madrasta e é interpretada como um soberano gesto de vingança da progenitora. A devoção de Eben à mãe reproduz, em boa medida, a devoção de Hipólito à deusa Ártemis, de quem se diz “caçador” e “servidor”, “cavaleiro” e “guarda” (v. 1397-1399). O jovem príncipe de Eurípides, como infere Maria Helena da Rocha Pereira, é “um exemplo vivo de misticismo, no seu culto por Ártemis, de tal modo exclusivo que se torna, por excesso, culpado de hybris para com outra divindade não menos poderosa, Afrodite”.101 Analogamente, o convívio de Eben com a mãe morta adquire contornos místicos e teofânicos. Quando se vê em apuros, Eben recomenda-se à oração: “Hei-de rezar à minha mãe para que volte e venha ajudar- me…”; quando rompe com Abbie, apela à ira divina: “Não vou contar nada ao pai. Deixo a mãe vingar-se em ti”; e quando se confronta com o horror do infanticídio, interroga a progenitora por si endeusada: “Mãe, onde estavas tu, porque a não detiveste?”. Neste lutuoso e edipiano culto, não falta sequer altar ou templo: a sala de visitas, que permanecera fechada desde que ali repousara o cadáver materno, possui uma aura sagrada que a própria Abbie reconhecerá quando excitadamente franquear o seu umbral. Aí busca o jovem o oráculo: “Mãe! Mãe! Que queres? Que me estás a dizer?”. As cantantes palavras do filho de Teseu, relativas à sua exclusiva veneração a Ártemis, poderiam transitar diretamente para a boca de Eben, esse Hipólito americano, surpreendentemente dissoluto, mas igualmente devoto:

HIPÓLITO: […] Sou o único entre os homens que tem este privilégio: conviver e conversar contigo, ouvindo o som da tua voz, sem olhar, porém, para o teu olhar. [vv. 84-86]

De Ephraim Cabot poderemos dizer que representa uma expressiva inflação dramatúrgica e simbólica do arquétipo euripidiano, Teseu. Se, na tragédia grega, o pai

de Hipólito não comparece a uma parte substancial da peça, assomando apenas no terceiro episódio, na sequência do suicídio de Fedra, na peça de O’Neill, porém, o velho

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