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3. Herança bíblica

3.1. Pedras de tropeço

E esta pedra, que eu erigi à maneira de monumento, será para mim casa de Deus…

GÉNESIS 28.22

Quando estreou, a 11 de Novembro de 1924, no Greenwich Village de Nova Iorque, Desejo Sob os Ulmeiros foi considerado um escândalo. Teve, é certo, admiráveis índices de público – o que em nada contradiz o vaticínio, pelo contrário – e o autor afirmou, confiadamente, tratar-se da sua “melhor peça”.143 As reações críticas revelam, contudo, uma violenta crispação: o American denunciou a peça de Eugene O’Neill como um “cancro” e as suas personagens como seres “hediondos”; mais benigno talvez, o Post recusou-a com base na “sordidez quase irrecuperável” do seu argumento, enquanto a revista Time pontificava: “É o tipo de coisa a que o espectador se irá opor pela razão de que simplesmente a existência não pode ser tão brutal.” Houve também quem afirmasse que a peça deveria ser vista por todos aqueles que tivessem sério interesse pelo teatro, para logo acrescentar um edificante aviso: “Ninguém a deverá ver precipitadamente – sem ter conhecimento de que é uma história na qual luxúria e homicídio, incesto entre filho e madrasta e infanticídio, coisas ignóbeis e pecaminosas e uma aterradora liberdade de expressão são amplamente ilustrados.”144 A reação escandalizada não se confinou às páginas da imprensa: os fiscais da moral e dos bons costumes consideraram a peça “demasiado nociva para ser purificada por um lápis azul”.145 Em conformidade, o procurador público de Nova Iorque despendeu os melhores esforços para encerrar a produção e, em Londres, o zeloso Lord Chamberlain Office conseguiu proibir a apresentação da peça, anátema que só em 1941 seria suspenso.146

143 É uma convicção afirmada repetidamente nas cartas do dramaturgo, tanto antes como depois da

estreia. Em Julho de 1924, escreve: “Tenho a certeza de que, até ao momento, é a minha melhor peça e a mais acabada”. Já após a estreia da primeira montagem, em Fevereiro de 1925, pergunta a Michael Gold: “A propósito, já viste o Desejo Sob os Ulmeiros? Considero-o como o meu melhor”. In T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected Letters of Eugene O’Neill, op. cit., pp. 188, 193.

144 Fragmentos críticos citados por L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p.158. 145 T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 194.

A crónica deste escândalo encontra-se suficientemente explicada e, atualmente, talvez não justifique mais do que uma nota de rodapé, a título de anedota ou curiosidade histórica. Se, não obstante, a mencionámos é porque o conceito de escândalo se revela surpreendentemente adequado para descrever Desejo Sob os Ulmeiros, não pelos motivos acima aduzidos (o poder de choque da peça de O’Neill é hoje residual, e as suas virtudes não são, manifestamente, as do chamado in-yer-face theatre), mas, porque derivada do grego neotestamentário skándalon, a palavra significa literalmente pedra de

tropeço. Biblicamente, escandalizar é fazer cair, constituir(-se) motivo de tropeço e

queda para alguém. Trata-se de um conceito moral e religioso: escândalo é não só a tentação que Satanás ou o homem lança a um inimigo ou irmão, mas também uma provação divina, desencadeada para, por exemplo, aquilatar da perseverança ou fidelidade de um servo.147 O próprio Cristo, que nos Evangelhos é designado como “pedra angular” [Mt. 21.42; Act. 4.11; 1 Pe. 2.4-7], também se afigura skándalon – pedra de tropeço, sinal de contradição. Dirigindo-se à igreja da Ásia Menor, São Paulo adverte que a Cruz é um obstáculo a toda a lógica e sabedoria humana: “Nós pregamos o Messias crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para os gentios” [I Cor. 1.23]. Ora, as personagens de Desejo Sob os Ulmeiros são não apenas “pedras vivas” [I Pe. 2.5], para empregarmos uma formulação cunhada por São Pedro (ele próprio assim chamado para transportar no nome a sua vocação eclesial), mas também pedras de arestas vivas, pedras não lavradas, como as que a Lei de Moisés prescreve para a edificação dos altares sacrificiais,148 e sobretudo pedras de tropeço. O modo como as personagens de O’Neill se arremessam e acometem umas contra as outras, como se atingem e ferem mutuamente, como se fazem tropeçar e cair, constitui não apenas um caso de bellum omnia contra omnes, mas também uma espécie de intifada – guerra de pedras.

A identidade pétrea a que aludimos é especialmente evidente em Ephraim, nome bíblico que nos remete para o progenitor de uma das doze tribos de Israel e cuja etimologia significa fecundo ou fértil (o que lança uma irónica luz sobre a personagem do velho pai). Não é apenas o seu rosto que é duro, “como se tivesse sido esculpido num seixo” [I Parte, Cena 4], ou a sua compleição física que é de uma notável robustez (“rijo

147 Vide Xavier Léon-Dufour (dir.), Vocabulaire de Théologie Biblique, Paris, Les Éditions du Cerf, 2009,

p. 1199.

148 “Se fizeres para mim um altar de pedras, não o construirás com pedras lavradas, porque ao vibrares o

como uma nogueira”, [II Parte, Cena 1]): toda a sua história, índole e vocação possuem a natureza, a consistência e a severidade da pedra. Daí a sua total identificação com um Deus “duro e solitário” [III Parte, Cena 4], imune à patologia moral da condescendência, e a sua irreversível projeção na herdade de cujas pedras fez, pela sua inabalável persistência, brotar o trigo.149

CABOT: […] Deus é duro, não é fácil! Deus está nas pedras! Fundo a minha igreja numa pedra… em pedras, e estarei nelas. Era o que ele queria dizer a Pedro! (Suspira profundamente. Pausa.) Pedras. Apanhei-as, fiz com elas muros. Podes contar os anos da minha vida nesses muros, cada dia uma pedra, monte abaixo e monte acima, a vedar os campos que eram meus, que eu tinha feito sair do nada… segundo a vontade de Deus, como um servo das Suas mãos. E não era fácil. Era duro e, para tanto, Ele me endureceu. [II Parte, Cena 2]

Se bem que o patriarca Cabot não veja na sua descendência a matéria granítica de que ele próprio é feito (“Vivi com os rapazes. Eles odiavam-me por eu ser duro. E eu odiava-os por serem moles.”, [II Parte, Cena 2]), a verdade é que os filhos são, também eles, pedras no xadrez bíblico de Desejo Sob os Ulmeiros. Eugene O’Neill veicula-o subliminarmente, através de uma muito criteriosa escolha de nomes bíblicos para os restantes varões da tribo. Peter deriva do grego pétros, palavra que nos alvores da era cristã não era utilizada como nome próprio e que significa “pedra” ou “rocha”, reenviando-nos para o ato de nomeação que Jesus faz de um dos seus discípulos, um episódio dos Evangelhos a que Ephraim alude no passo supracitado: “Também Eu [Jesus] te digo: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do abismo nada poderão contra ela.” [Mt. 16.18] Simeon, o filho mais velho, é precisamente o nome pelo qual, até ao momento desse simbólico batismo, era conhecido este apóstolo que a tradição católica consagrou como o primeiro Bispo de Roma. De certo modo, Simeon e Peter são gémeos siameses ou, adotando a terminologia bíblica, uma só carne: dormem juntos numa cama de casal, como nos informa uma didascália de O’Neill [I Parte, Cena 3], e juntos partem rumo a essa Nova Jerusalém que é a Califórnia, entoando a uma só voz a cançoneta dos pesquisadores de ouro. Esta hipotética ligação simbiótica entre os dois irmãos torna-se, aliás, mais

149 Este aspeto adquire um caráter especialmente intrigante quando Ephraim formula o desejo de, na

impossibilidade de levar consigo a herdade que construiu com o seu sangue e suor, lhe deitar fogo na hora da morte, ficando a vê-la arder – “a esta casa, a cada grão de trigo, a cada árvore, até à última folhinha de feno!” [II Parte, Cena 1].

plausível a partir do momento em que consideramos o facto de os autores dos Evangelhos se referirem frequentemente ao apóstolo como Simão Pedro, conjugando o velho nome pré-cristão e o novo nome outorgado pelo Messias. Simbolicamente, não deixa ser interessante notar que, no momento em que abandonam a cena para não mais regressar, Simeon e Peter apanham pedras da estrada e lançam-nas contra as janelas da sala que servira de câmara mortuária à mãe de Eben, uma divisão “cujas persianas estão sempre fechadas”, partindo as vidraças e rasgando a cortina. Um episódio aparentemente marginal, mas que possui o impacto de uma blasfémia proferida em voz alta: trata-se de uma espécie de profanação do sanctum sanctorum, esse espaço sagrado que se encontrava na zona mais interior e secreta do templo, uma espécie de sacrário, lugar isolado por uma cortina de linho a que só o sumo-sacerdote, e com risco da própria vida, poderia aceder uma vez ao ano.150

A atribuição do nome Eben ao terceiro filho da tribo de Ephraim – aquele que, invocando uma outra expressão sagrada, poderíamos designar como a “pedra angular” do drama de O’Neill – vem ratificar em termos definitivos a natureza escandalosa, ou pelo menos pétrea, das criaturas que habitam e circulam por uma casa onde faz sempre frio, mesmo em dias de intenso calor.151 É certo que se trata de um nome comum na rural e puritana Nova Inglaterra de 1850, aspeto que um O’Neill obsessivo e perfeccionista terá com certeza ponderado, mas sucede que, no hebraico de que deriva,

eben significa literalmente “pedra”. Trata-se, em alguns casos, de uma variação e,

noutros, da natural abreviatura de um nome de forte inspiração bíblica: Ebenezer (Even

Ha’Ezer), que significa “pedra de ajuda” ou “pedra de socorro” e remete para um

episódio emblemático da história sagrada, ocorrido ainda no tempo dos Juízes. Enquanto os atemorizados israelitas pelejavam contra os filisteus, Samuel oferece um holocausto a Yahveh e, pela vitória alcançada, o profeta lança uma pedra memorial no campo de batalha, chamando àquele lugar Ebenezer: “Até aqui nos ajudou o Senhor.” [I Sm. 7.12] O Eben de Desejo Sob os Ulmeiros é Ebenezer apenas ironicamente (ajuda o pai a fecundar a madrasta, aplicando uma técnica primitiva de procriação assistida) ou na medida em que presta auxílio na herdade – “Não corras com ele. Sê compreensivo. Quem arranjas tu para te ajudar no campo?”, pergunta Abbie a Ephraim [II Parte, Cena

150 Vide X. Léon-Dufour (dir.), Vocabulaire de Théologie Biblique, op. cit., p. 1266-1271.

151 A dada altura, Cabot confessa a Abbie: “Há sempre uma solidão fria nesta casa… mesmo quando está

1] –, mas a sua identidade é, antes, a de uma pedra de tropeço, um skándalon: uma pedra de arestas vivas, perigosa, como a que, projetada pela ágil funda de David, fez tombar o gigante filisteu.

Mesmo Abbie – cujo nome, como adiante veremos, nada tem que ver com os étimos eben ou pétros e cuja ascendência bíblica não permite associações imediatas com as virtudes das pedras – não está isenta de feições, tanto físicas como psíquicas e morais, de pedra. Logo após nos descrever a vitalidade e o ar alegre da jovem mulher – a “Rosa de Sião” com que Cabot pretende florir a velhice e a herdade –, uma das romanescas didascálias de O’Neill exibe Abbie sob uma outra luz: “Há no queixo dela força e obstinação, uma determinação dura nos olhos, e em toda a personalidade as mesmas características desesperadas, irrequietas e indomáveis que tão aparentes são em Eben.” [I Parte, Cena 3] Dir-se-á, pois, que o profuso imaginário bíblico ligado a pedras e rochas – um imaginário que percorre as Escrituras como um todo, da pedra que serve de travesseiro a Jacob e depois se constitui em memorial sagrado [Gn. 28] às apocalípticas pedras preciosas com que a Nova Jerusalém será edificada [Ap. 21], passando pelas tábuas de pedra em que Yahveh lavra o Decálogo [Ex. 24] ou pelas imagens proféticas que celebram um Deus que é “rocha eterna” [Is. 26.4] – parece fecundar o enredo da peça de Eugene O’Neill.152 Mal sobe o pano sobre a cena e já

152 Como assinalámos no final do capítulo 1, Louis Sheaffer avança, com admirável sobriedade, uma

outra explicação, de cariz biográfico, para a centralidade simbólica da pedra na composição de Desejo

Sob os Ulmeiros. Recuperamos aqui um outro passo da sua biografia (desta vez, no segundo volume),

onde fornece uma outra hipótese biográfica para a coexistência dos ulmeiros e das pedras na descrição cenográfica da peça: “O modelo real para a casa dos Cabot era uma quinta localizada a curta distância de Brook Farm [propriedade onde Eugene O’Neill se instalou com a família em 1922], visível da autoestrada, que O’Neill terá certamente visto centenas de vezes. No quintal dianteiro da velha herdade Smith, como era então chamada, havia dois imponentes ulmeiros que emolduravam e davam sombra à casa. E este lugar, por seu turno, devia recordar a O’Neill a vivenda Monte Cristo em Nova Londres, rodeada de árvores (incluindo ulmeiros) que, para desagrado da mãe, Ella, a tornavam sombria. Pela descrição incluída em Desejo Sob os Ulmeiros, dir-se-ia que as árvores e os acessos de choro de Ella quando sob a influência da morfina estavam estranhamente entrelaçados na imaginação do filho dramaturgo […]. Um outro aspeto unia o passado ao presente do autor: a vivenda Monte Cristo tinha um muro ‘seco’ no quintal das traseiras, assim como Brook Farm no quintal dianteiro, numa região onde este tipo de estruturas era muito comum. Para O’Neill, estes muros de pedra solta, laboriosamente construídos ao longo de várias gerações, tinham passado a simbolizar a existência rude e árdua da Nova Inglaterra de outrora, como explicitado numa imagem chave da peça. ‘Pedras’, diz a certa altura o velho Ephraim. ‘Apanhei-as, fiz com elas muros. Podes contar os anos da minha vida nesses muros, cada dia uma pedra,

Simeon e Peter fantasiam uma terra prometida – já não a Canaã que mana leite e mel, mas a Califórnia das pepitas de ouro –, ao mesmo tempo que se confrontam com a agreste realidade de uma petrificada existência.

SIMEON:(Excitado por sua vez.) Fortunas amontoadas no chão, ali, para que as apanhem! As

minas de Salomão, diz-se. (Por momentos continuam a fitar o céu; depois os olhos caem-lhes.) PETER: (Com sardónica amargura.) Aqui… pedras amontoadas no chão… pedras sobre

pedras… ano sobre ano… ele e tu e eu e Eben… a fazer muros de pedra para ele nos muralhar à volta! [I Parte, Cena 1]

Mesmo opondo-se aos irmãos, de quem em boa medida se constitui adversário, Eben assenta mais uma pedra neste muro das lamentações, partilhando, na cena seguinte, a amarga perceção de um devir-pedra que define toda a sua existência.

EBEN:(Explodindo de repente.) Porque nunca se meteram entre ele e a minha mãe, quando ele a

andava a matar aos poucos… em paga da bondade com que vos tratava? (Há uma longa pausa.

Eles fitam-no surpresos.)

SIMEON:Bom… Era preciso levar o gado a beber. PETER:Ouhavia lenha a cortar.

SIMEON:Ou havia que lavrar. PETER:Ouque secar o feno. SIMEON:Ou que estrumar. PETER:Ou que sachar. SIMEON:Ouque podar. PETER:Ou que ordenhar.

EBEN:(Interrompendo asperamente.) Ou que fazer muros… pedra sobre pedra… muros e muros

até o coração ser uma pedra que se tira do caminho para uma pessoa se tornar uma pedra!

A cena soube extrair as devidas consequências desta bíblica recorrência. Daí que um encenador como Matthias Langhoff tenha optado por figurar a herdade como um pedregal, recusando em grande medida a cenografia de recorte naturalista prescrita pelo dramaturgo norte-americano (nem a casa nem os ulmeiros são propriamente figurados). “A enxada e a relha do arado são os utensílios com que [as personagens] esburacam uma terra dura como rocha. Os corpos estão condenados a vergar-se para extrair pedras

monte abaixo e monte acima, a vedar os campos que eram meus.’” L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, p. 129. (Trad. Rui Pires Cabral.)

do terreno.”153 Tendo em conta o carácter pedregoso da tão desejada e disputada herdade, bem como o estribilho desse híbrido de profeta hebreu e velho Karamazov que é Cabot – God is hard, not easy! –, deveríamos antes chamar-lhe hardade!154

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