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3. Herança bíblica

3.2. Trinta moedas, e um prato de lentilhas

Terrível é este lugar.

GÉNESIS 28.17

Confrontado com o escândalo chamado Desejo Sob os Ulmeiros e as suas indecorosas personagens, um crítico registou a seguinte observação, por ocasião da estreia em Nova Iorque: “Estas pessoas – ao contrário daquelas que encontramos na vida quotidiana! – são cruéis e gananciosas; discorrem livremente sobre assuntos vergonhosos que só têm lugar na Bíblia.”155 A esta distância, um tão beatífico reparo – segundo o qual a vida de todos os dias ignoraria criaturas duras como pedra – surge como algo quase comovente. O que, todavia, há de notável neste cómico comentário puritano é o facto de se revelar surpreendentemente certeiro. É claro que se trata de uma

pontaria involuntária, como a de um inábil atirador de fim-de-semana que, pretendendo

alvejar um boneco de feira, acertasse em cheio no sniper oculto por detrás de uma barraca distante. O que sucede é que a peça que Eugene O’Neill escreve nos ‘loucos anos vinte’ é não apenas devedora (e devoradora) da tragédia ática como também – provavelmente, em grau superior, se bem que de forma difusa e equívoca – desse livro (ou biblioteca portátil) que William Blake definiu como “o Grande Código da Arte”: a Bíblia Sagrada.156 Está longe de ser um acaso que, como faz notar o biógrafo Stephen A. Black, o dramaturgo americano se tenha embrenhado numa adaptação do Apocalipse de São João imediatamente antes de se lançar na escrita de Desejo Sob os Ulmeiros.157

153 O. Aslan, “La Saga des Cabot: Désir sous les ormes”, op. cit., p. 364. 154

É uma recomendação do poeta Daniel Jonas, que viu no termo hard do original inglês “o adjetivo mais determinante ao longo da peça”. Daniel Jonas, “2 textos sobre 2 ensaios e 1 ensaio sobre 1 texto”, in Pedro Sobrado (ed.), Desejo Sob os Ulmeiros: Programa, Teatro Nacional São João, Porto, 2011, p. 6.

155 Apud L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 126.

156 Apud N. Frye, The Great Code: The Bible and Literature, op. cit., p. xvi.

157 “O’Neill concluiu uma primeira versão da adaptação do Apocalipse e, no dia seguinte, 15 [de Janeiro

As visitações bíblicas de O’Neill não constituem sequer uma novidade, se bem sejam amiúde negligenciadas no exame da crítica:158 antes e depois de compor a tragédia dos Cabot, o dramaturgo foi frequentador habitual dessa caverna de Ali Babá e dela trouxe para a luz do dia algumas pedras… preciosas. Já em 1918, relata Travis Bogard, O’Neill escrevera The Rope, uma peça “conscientemente construída sobre a parábola do filho pródigo do Evangelho de São Lucas”,159 contendo ainda uma remissão para a história de Abraão e Isaac narrada pelo Génesis. E, uns escassos três anos depois de Desejo, O’Neill voltará ao lugar do crime para escrever Lazarus Laughed [Lázaro Riu, 1928] nas palavras do autor, a play for an imaginative theatre160 (uma classificação talvez provocatória, em virtude de os seus 420 papéis a tornarem virtualmente irrepresentável). Nessa peça onde tenta recriar um teatro altamente ritualizado, no qual apenas o protagonista se apresenta sem máscara, imagina-se a condição de Lázaro, um amigo a quem Jesus de Nazaré, segundo o Evangelho de São João, ressuscitou três dias após aquele sucumbir.

Uma dessas incursões em território sagrado ocorre em 1920, quatro anos antes de Desejo Sob os Ulmeiros. Trata-se de Beyond the Horizon [Além do Horizonte, 1920], peça em que O’Neill revisita um célebre tópico do Antigo Testamento: a história de Jacob e Esaú, os filhos gémeos nascidos a Isaac, por seu turno, filho unigénito que Yahveh concedeu a um envelhecido Abraão, a quem jurara uma descendência tão copiosa “como as estrelas do céu e como a areia que há nas praias do mar” [Gn. 22.17]. À primeira leitura, o arquétipo bíblico em Beyond the Horizon não é reconhecível senão

op. cit., p. 308. Louis Sheaffer corrobora esta informação, mencionando também este trabalho que nunca

chegou à cena e que é hoje dado como perdido. Vide L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 148.

158 Esta era, pelo menos, nos anos 1980, a perceção de Shelly Regenbaum, autora de um ensaio intitulado

“O’Neill and the Hebraic Theme of Sacrifice”. No ver desta investigadora norte-americana, a razão principal para o défice de atenção crítica à “utilização das histórias do Antigo Testamento” por parte de O’Neill prende-se com um procedimento dramatúrgico do escritor: “o facto de que esses arquétipos [bíblicos] nunca serem aberta e cabalmente dramatizados nas peças”. Prossegue Regenbaum: “E, no entanto, os conceitos e as figuras do Antigo Testamento manifestam-se na obra de O’Neill e são usados principalmente para exprimir conflitos familiares”. Shelly Regenbaum, “O’Neill and the Hebraic Theme of Sacrifice”, in Frederick Wilkins (ed.), The Eugene O’Neill Newsletter, vol. V, n.º 3, Boston, Suffolk University, 1981. In eONeill.com: An Electronic Eugene O’Neill Archive [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.eoneill.com/library/newsletter/v_3/v-3a.htm˃ [consult. 08-07-2012].

159 T. Bogard, Contour in Time, op. cit..

a olhos adestrados. Uma investigadora norte-americana, Shelly Regenbaum, deteve-se sobre os temas da história sagrada presentes na peça e concluiu: “[Beyond the Horizon] não contém referências ou alusões diretas ao Antigo Testamento em geral, nem à narrativa de Jacob e Esaú em particular. Além do mais, o enredo da peça, especialmente o seu desfecho, diverge da narrativa bíblica. E, no entanto, a influência do Antigo Testamento pode ser detetada em impressionantes correspondências temáticas.”161 Algo análogo se pode dizer de Desejo Sob os Ulmeiros, se bem que aqui seja dado livre curso ao imaginário bíblico: do pastiche do Cântico dos Cânticos, que O’Neill se diverte a pôr na boca de Ephraim, à invocação do Decálogo (“Honra o teu pai”), passando pelas menções a personagens veterotestamentárias, como Sansão ou Raquel, e pelas alusões explícitas aos Evangelhos (“Vamos começar a viver como os lírios do campo”, graceja Simeon),162 a influência da linguagem e da simbólica bíblicas em Desejo é de tal modo evidente que não requer especial acuidade analítica. Mas, à semelhança do que acontece em Beyond the Horizon, Desejo apropria-se da narrativa de Jacob e Esaú sub- repticiamente, como se se tratasse de uma mercadoria de contrabando: uma narrativa escandalosa, stumbling block para a apologética judaico-cristã e arma de arremesso à disposição daqueles que vêm na Bíblia “um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana”.163 Os logros e o sagaz oportunismo de Jacob têm absorvido as melhores energias de gerações de hermeneutas e apologetas: como justificar que o herdeiro da promessa feita a Abraão e renovada a Isaac, o silencioso

161 Shelly Regenbaum, “Wrestling With God: Old Testament Themes in O’Neill’s Beyond the Horizon”,

in Frederick Wilkins (ed.), The Eugene O’Neill Newsletter, vol. VIII, n.º 3, Boston, Suffolk University, 1984. In eONeill.com: An Electronic Eugene O’Neill Archive [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.eoneill.com/library/newsletter/viii_3/viii-3b.htm˃ [consult. 09-07-2012].

162 Zombeteira alusão a um passo do Sermão da Montanha: “Atentai para os lírios do campo, como

crescem: nem trabalham, nem fiam. E digo-vos que nem ainda Salomão, em toda a sua glória, foi vestido como um deles. Pois se Deus assim veste a erva do campo, que hoje é, e amanhã se lança no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé?” [Mt. 6.28b-30].

163 In Sérgio Costa Andrade, “Cronologia: Um percurso polémico”, Público (19 Jun. 2010), p. 4.

Recuperamos palavras do Prémio Nobel português, José Saramago. A este propósito, valerá a pena citar Claudio Magris, autor de Danúbio, que lembrava a centralidade das Sagradas Escrituras numa obra como a do insuspeito Bertolt Brecht: “Brecht encontrava na Bíblia um alfabeto para ler o mundo, a grandeza de um texto que diz, brutalmente e sem dourar a pílula, a verdade nua sobre a vida e a morte, o eros e a violência, o maravilhoso e o sabor a cinza, a altitude a que os homens podem chegar, elevando-se acima de si mesmos até conceber um absoluto que os transcende, sustém ou anula, e a infame vileza em que esses mesmos homens podem cair.” C. Magris, “El Alfabeto del Mundo”, op. cit., p. 23.

protagonista da akedah, seja um mentiroso e um falsário? Como explicar que Jacob perpetre as suas patifarias sem um moralizante reparo da parte do escritor sagrado? George Steiner reformula a questão nos seguintes termos: “Que ambiguidades e mistérios, contidos nas intenções de Deus para com a humanidade, subjazem ao destino escandaloso de Esaú e às frutíferas astúcias e velhacarias de Jacob, quase semelhantes às de Ulisses?”164

Ora, em Eben e na sua história reconhecemos os traços desse patriarca que, certa noite, teve por travesseiro uma pedra. De forma híbrida e impura, a narrativa sagrada (mas moralmente pouco edificante) do contrato de promessa de compra e venda do direito de primogenitura celebrado entre Esaú e Jacob [Gn. 25] reaparece na história de Eben e os seus irmãos. A cena em que, já com o temível pai a assomar no horizonte, Eben tira partido do desesperado desejo de fuga dos dois irmãos mais velhos, convencendo-os a vender o seu direito à herança, é reminiscente do episódio bíblico em que Jacob, inteligentemente, aproveita o desejo voraz de um Esaú esfaimado para lhe comprar o direito de primogenitura, prerrogativa que lhe garantia dois terços da herança.165 É certo que Eben faz uso de trinta moedas (o que o aproxima, momentaneamente, de um Judas Iscariotes), enquanto Jacob recorre a uma eficaz receita de lentilhas, mas isso em nada prejudica a simpatia tipológica à qual desejamos trazer alguma luz, e apenas demonstra o procedimento ziguezagueante, imprevisível e espantosamente ágil de O’Neill na gestão do seu arquivo simbólico.166 Mas note-se que, se Eben não coloca diante dos irmãos o prato de lentilhas que desgraçadamente Esaú devorou, é ele quem prepara as refeições para os irmãos, como fica desde logo demonstrado na cena inicial. Na verdade, até certo ponto, a cozinha é o território natural de Eben: Abbie deixá-lo-á fora de si com a seguinte provocação: “Esta herdade é minha! É o meu lar! E esta é a minha cozinha!” [I Parte, Cena 4]. À semelhança de

164 G. Steiner, “Um Prefácio à Bíblia Hebraica”, op. cit., p. 76.

165 Trata-se de uma mera suposição, mas é possível que O’Neill, ao optar por dois irmãos mais velhos em

vez de um, tivesse em mente não apenas uma certa polifonia dramatúrgica, mas também este aspeto ligado à posse da herança: tal como Jacob precisa de comprar a Esaú o direito de primogenitura que outorgava ao filho mais velho dois terços da herança, analogamente, Eben precisa de adquirir a Simeon e Peter as partes da herdade que, à morte do pai, lhes caberiam em sorte, de forma a garantir os dois terços restantes da propriedade.

166 Margaret Loftus Ranald assinala precisamente que, ao fazer uso de trinta moedas, O’Neill introduz um

aspeto da traição de Judas Iscariotes nesta reinvenção da narrativa de Esaú e Jacob. Vide M. L. Ranald, “From Trial to Triumph: The Early Plays”, op. cit., p. 66.

Esaú, Simeon e Peter são homens do campo, que tratam de animais; à semelhança de Jacob, que o capítulo 25 do Génesis descreve como um homem caseiro, Eben desconhece as lides do campo e move-se entre tachos e caçarolas: quando Simeon diz “A ele [Eben], as vacas mal o conhecem”, Peter apressa-se a acrescentar: “E os cavalos, e os porcos, e as galinhas. Mal o conhecem todos.” [I Parte, Cena 4].167

Uma outra afinidade, menos evidente, mas com implicações talvez mais profundas, diz respeito à simbiótica ligação de Eben e de Jacob com as suas respetivas mães. Uma das primeiras informações que nos são dadas sobre o patriarca hebreu diz respeito à preferência que Rebeca fazia recair sobre ele, em evidente detrimento do seu irmão Esaú. Talvez essa primazia afetiva esteja na origem do carácter eminentemente doméstico de Jacob e do seu persuasivo talento culinário, uma hipótese a que as próprias Sagradas Escrituras atribuem consistência, ao associar o espírito caseiro de Jacob e o favoritismo maternal [Gn. 25.27-28]. No que diz respeito a Eben, dispomos de uma confissão, em todos os aspetos esclarecedora:

EBEN: […] Cozinhar… fazer o trabalho dela… foi o que me levou a conhecê-la, sofrer o que ela tinha sofrido… Ela havia de voltar para me ajudar… voltar para descascar as batatas… voltar para fritar o presunto… voltar para cozer o pão… voltar, cheia de dores, para atiçar o lume, tirar a cinza, com os olhos cheios de lágrimas e raiados de sangue, por causa do fumo e das cinzas, como os dela estavam sempre. E ainda volta… está ali ao pé do fogão, à noite… não pode habituar-se a dormir e a repousar em paz. Não é capaz de se sentir livre… nem mesmo na cova. [I Parte, Cena 2]

O poderoso ascendente da figura da mãe é, muito provavelmente, o ponto nuclear do parentesco estrutural e simbólico que une Eben e Jacob. Ambos se encontram sob a forte influência de suffocating mothers,168 que determinam em grande medida os seus gestos e decisões. Elie Wiesel, que lê a personagem de Jacob como um

167 A afinidade dos irmãos Cabot com Jacob e Esaú insinua-se logo na abertura da peça: se Jacob e Esaú

disputam entre si desde antes do nascimento – dizem as Sagradas Escrituras que os gémeos lutavam no ventre de Rebeca e que Jacob dele saiu agarrado ao calcanhar de Esaú –, algo de similar sucede com Eben e o par Simeon/Peter: o mal-estar e a rivalidade já estão plenamente instalados quando sobe o pano e tornam-se cabalmente evidentes na segunda cena.

168 Usamos a expressão que Janet Adelman cunhou para falar das mães shakespearianas de Hamlet e King

Lear. Vide Janet Adelman, Suffocating Mothers: Fantasies of Maternal Origin in Shakespeare’s Plays, Hamlet to The Tempest, New York/London, Routledged, 1992.

ser “fraco, resignado e cobarde” até à decisiva luta com o Anjo que lhe alterará a própria identidade – a “vitória” sobre a criatura celestial será classificada pelo escritor judeu como “uma vitória sobre si mesmo” –, escreve: “Toda a gente o levou a fazer coisas – e ele obedeceu… Incapaz de iniciativa, Jacob não podia tomar decisões pela sua própria cabeça”.169 Reconheçamos que este everyone empregue por Wiesel é um manifesto exagero retórico, um mero recurso de estilo: para além da mãe, apenas um astucioso parente – o tio, Labão – submeteu Jacob aos seus ditames, mas, neste caso, de forma provisória, pois o herdeiro/usurpador da promessa soube, em devido tempo, inverter os termos da equação. Pelo contrário, a mãe aloja-se na vontade e na mente do filho: quase poderíamos dizer, como no poema de Herberto Helder, que “seu corpo move-se/ pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões/ e órgãos mergulhados”170 de Jacob. Rebeca não apenas é cúmplice do embuste a que o filho mais novo irá sujeitar um pai idoso e praticamente cego, como também urde o diabólico ardil para Isaac lhe conceder a bênção patriarcal: Génesis 28 relata como a mãe industria meticulosamente Jacob a fazer-se passar pelo irmão hirsuto, cobrindo-se de pêlos de cabritos e levando ao velho pai um apurado guisado de caça, de forma a usurpar o que caberia ao primogénito. Por instantes, o patriarca cego hesita – “És, na verdade, o meu filho Esaú?” –, mas a bênção acaba por ser pronunciada e irreversivelmente outorgada a Jacob. Quando o choro e a dor de um Esaú ultrajado se converterem em revolta e desejo de vingança, será de novo a mãe a urdir um plano, ordenando a Jacob que se refugie em Haran, junto do seu irmão Labão, até que ela o mande de novo chamar.

Uma análoga influência maternal manifesta-se em Eben, não se confinando apenas à reivindicação filial de uma semelhança (“Saio à minha mãe, até à última gota de sangue!”), contestada, aliás, pelos irmãos, que veem nele o pai “escrito e escarrado” [I Parte, Cena 2]. Antes de falecer, a mãe espiara o patriarca Ephraim, vira-o esconder os lucros (as bênçãos, poderemos talvez dizer) e instrui Eben como proceder, para que deles o filho se possa apropriar no tempo devido. Mesmo depois de morta, é dela que Eben espera toda a instrução: na cena célebre pelo seu lúgubre erotismo, o rapaz interrompe o ardor sensual de Abbie para perguntar: “Mãe! Mãe! Que queres? Que me estás a dizer?” [I Parte, Cena 3]; e, após o infanticídio cometido por Abbie, Eben

169 Elie Wiesel, “And Jacob Fought the Angel”, in Messengers of God: Biblical Portraits and Legends,

New York, Pocket Books, 1977, pp. 136, 138, 125.

170 Herberto Helder, “No sorriso louco das mães…”, in Poesia Toda, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, p.

manifesta incompreensão face à passividade da progenitora morta: “Mãe, onde estavas tu, porque a não detiveste?” [III Parte, Cena 3]. Curiosamente, tal como Rebeca sabe iludir Isaac, após assumir uma vocação maternal sobre Eben (“Hei-de tomar o lugar da tua mãe! Hei-de ser tudo o que ela era para ti!”), Abbie adquire uma especial competência em ludibriar o velho Cabot: “Sei sempre deitar-lhe poeira nos olhos.” [II Parte, Cena 4]. O vínculo à narrativa sagrada é, de resto, consolidado pela figura de Ephraim, no qual encontramos uma das particularidades de Isaac: tal como o patriarca hebreu, o velho Cabot sente-se, apesar da sua propalada robustez, a “cair da tripeça” [III Parte, Cena 3] e a sua visão está altamente enfraquecida. O’Neill descreve-o numa didascália, assim que a personagem entra em cena: “Os seus olhos são pequenos, muito juntos, extremamente pitosgas, piscando continuamente no esforço de focar os objetos e com um olhar que projeta uma tensão interior.” [I Parte, Cena 4] A sua débil visão é, aliás, motivo de um gracejo irónico da parte de Eben, na manhã que se segue às suas “núpcias” com Abbie:

EBEN: (Jovial.) Bom dia, pai. A ver as estrelas ao meio-dia? CABOT: Lindo, não está?

EBEN: (Olhando em volta com ares de dono.) Isto aqui? Uma quinta que é um gosto. CABOT: Eu falo do céu.

EBEN: (Sorrindo.) Como sabe? Esses seus olhos não vêem até lá. (Isto titila-lhe o humor; bate

nas ancas e ri.) Ah… ah! Essa é boa!

Deste jocoso remoque o septuagenário pai não é capaz de alcançar o verdadeiro sentido, porque aquilo que ele não consegue ver não são as estrelas do céu, mas os factos que todos veem (“O que aconteceu nesta casa é claro como água!”, dirá uma das mulheres presentes na festa da III Parte), a saber: que Eben enganou o pai com a sua nova mãe. A esta luz, Ephraim parece adquirir a fisionomia de Isaac, uma identidade que talvez já se encontrasse nele inscrita desde o início, como uma espécie de negativo: à semelhança do filho de Abraão, Cabot invoca o Altíssimo e Todo-Poderoso. Não para conferir bênção, mas maldição.

CABOT: (Erguendo os braços ao céu, numa fúria que já não domina.) Senhor Deus dos

Exércitos, esmaga estes filhos sem vergonha com a pior das Tuas maldições!

EBEN:(Intrometendo-se com violência.) O senhor e o seu Deus! Sempre a amaldiçoar gente…

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