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3. Herança bíblica

3.3. Máquina de emaranhar paisagens

Enquanto a cada dia me puder deter nem que seja sobre uma só linha das Escrituras, não perderei o espanto de estar vivo.

ERRI DE LUCA,Caroço de Azeitona

Um dos nossos mais eruditos biblistas, José Tolentino Mendonça, anotou na sua

Leitura Infinita: “Sem a chave bíblica, o recheio pictórico da Capela Sistina,

diariamente frequentada por milhares de pessoas, seria mais intrigante e impenetrável do que as misteriosas estátuas da Ilha da Páscoa.”171 Resultaria excessivo afirmar o mesmo a propósito da peça que Eugene O’Neill escreveu em 1924: por um lado, Desejo

Sob os Ulmeiros não é o Paraíso Perdido (embora também o seja); por outro, a trágica

chave grega tem rodado com eficácia a fechadura, já para não falar nessa chave-mestra – a biográfica e clínica – que parece abrir todas as portas (ou arrombá-las, tendo em conta o seu carácter invasivo). Contudo, a verdade é que vários elementos da peça se afiguram sem nexo ou razão, se não tivermos em conta esse imenso atlas ou armazém simbólico que são as Sagradas Escrituras. E muitos outros adquirem uma insuspeitada amplitude semântica, que desencadeia novas interrogações e desdobra os sentidos conhecidos. Empenhando-se a fundo na tentativa de transcender o naturalismo naive do teatro americano que tão manifestamente deplorava, O’Neill frequentou não apenas a Grécia de Eurípides, mas também os topoi bíblicos – palácios e amplas praças, escuros becos e baldios. Estes estão presentes nos temas e nas encruzilhadas do enredo como no desenho das suas personagens – não esqueçamos que, diz Steiner, os escritos veterotestamentários “se contam entre os textos-mestres de toda a psicologia dramática”172 – e na cadência discursiva. Pensamos, em particular, no tom profético de Ephraim Cabot e na sua corruptela do Cântico dos Cânticos:

CABOT:[…] Tu és a minha Rosa de Sião! Atende, tu és bela; os teus olhos são como pombas; os teus lábios são escarlates; os teus dois seios são como duas corças; o teu umbigo é como uma redonda taça; o teu ventre é como um monte de trigo… [II Parte, Cena 1]

171 Itálico nosso. J. T. Mendonça, A Leitura Infinita, op. cit., p. 47. 172 G. Steiner, “Um Prefácio à Bíblia Hebraica”, op. cit., p. 80.

Erradamente, tomar-se-á essa multiforme presença, que vai da paráfrase explícita à alusão paródica, por adornos ou elementos decorativos, muito apropriados a uma ação dramática inscrita no pitoresco cenário protestante da Nova Inglaterra, como se fossem adereços de que um encenador pudesse abrir mão por razões de ordem estética (ou cosmética) cénica, quando na verdade dessa presença real advém uma irrecusável e fulgurante energia dramática. A Bíblia ilumina, com o brilho tremeluzente do seu duplo gume, a terra e o céu que as personagens de Desejo Sob os Ulmeiros tanto contemplam, de mãos na anca ou punhos erguidos, apoiadas na enxada ou ao pé da cancela, a ponto de não saberem já de que falam – ou o que desejam.

PETER:Há ouro no Oeste, sim.

SIMEON:(Ainda sob a influência do poente; vagamente.) No céu?

PETER:Bom… é uma maneira de dizer… Há a promessa. (Excitando-se.) Ouro no céu… no Oeste… a Porta de Ouro… A Califórnia!… O Oeste Dourado!… Campos de ouro! [I Parte, Cena 1]

CABOT:(Abbie conserva desviado o rosto. O dele gradualmente se amacia. Fita o céu.) Lindo,

não está?

ABBIE:(De mau humor.) Nada vejo de lindo.

CABOT:O céu. Parece um campo fértil, lá em cima.

ABBIE: (Sarcástica.) Estás a pensar em comprar também essa quinta? [II Parte, Cena 1]

EBEN:(Jovial.) Bom dia, pai. A ver as estrelas ao meio-dia?

CABOT: Lindo, não está?

EBEN: (Olhando em volta com ares de dono.) Isto aqui? Uma quinta que é um gosto. CABOT: Eu falo do céu. [II Parte, Cena 4]

Se essa presença bíblica possui uma tal força gravitacional na estrutura e no enredo de

Desejo, como explicar o carácter pontual e assistemático das leituras que visam

explicitar onde e como e porquê essa presença se manifesta? A resposta não será fácil nem unívoca, podendo incidir tanto sobre o carácter alegadamente ocioso de uma tal cartografia como sobre a nietzschiana “síndrome Deus morreu” que, segundo Northrop Frye, afetou muitas abordagens críticas contemporâneas.173 Mas podemos também acrescentar uma hipótese endógena, intrínseca à própria obra de O’Neill e à sua escrita

dramática. Foi o que, de certo modo, fez, nos anos 80, Shelly Regenbaum, autora de um ensaio intitulado “O’Neill and the Hebraic Theme of Sacrifice”, quando avançou uma razão para o facto de a apropriação das histórias do Antigo Testamento por parte de O’Neill “escapar frequentemente à atenção dos críticos”. Este “lapso” seria, por assim dizer, desencadeado por um procedimento dramatúrgico do escritor: “o facto de esses arquétipos nunca serem aberta e cabalmente dramatizados nas peças”.174 Um passo que citámos no capítulo precedente pode também agora servir-nos de exemplo: no momento em que Eben compra aos irmãos o direito à herança – cena que, como vimos, é reminiscente do episódio bíblico em que Jacob adquire o direito à primogenitura de Esaú –, O’Neill introduz uma inflexão ou variação, renunciando às lentilhas e invocando as trinta moedas com que Judas Iscariotes foi remunerado pelo traiçoeiro ósculo. Um paradigma assoma, mas como que se retrai no preciso instante em que o julgamos reconhecer; dá então lugar a um outro, embora aquele venha a infiltrar-se de novo, mais adiante, através de um gesto ou palavra. Se nos é permitido invocar um produto da cultura pop, recordemos que encontramos um procedimento análogo numa canção célebre (demasiado célebre, talvez, e assaz incompreendida) desse génio talmúdico chamado Leonard Cohen: em seis versos de “Hallelujah”, o songwriter sobrepõe, com surpreendente agilidade, as narrativas bíblicas de David/Betsabé e de Sansão/Dalila, tornando-as, em apenas dois versos, virtualmente indiscerníveis. A viragem brusca despista-nos, mas revela-se também avassaladora: que quantidade de informação é processada em meia-dúzia de versos, que nos dizem tudo sobre a fé, o desejo, o poder, a traição, a deceção?175

Evocando um dispositivo do poeta Herberto Helder, poderíamos, a propósito de

Desejo Sob os Ulmeiros, falar de uma máquina de emaranhar paisagens. Ou de um

palimpsesto, de um texto no qual reaparecem caracteres de primitivas escritas. É por isto que os pequenos ensaios e artigos que têm, no decurso dos anos, relevado a influência imaginativa da Bíblia na tessitura de Desejo Sob os Ulmeiros disparam em sentidos tão diversos. Alguns exemplos:

174

Prossegue Regenbaum: “E, no entanto, os conceitos e as figuras do Antigo Testamento manifestam-se na obra de O’Neill e são usados principalmente para exprimir conflitos familiares”. S. Regenbaum, “O’Neill and the Hebraic Theme of Sacrifice”.

175 “Your faith was strong but you needed proof/ You saw her bathing on the roof/ Her beauty in the

moonlight overthrew you/ She tied you to a kitchen chair/ She broke your throne, and she cut your hair/ And from your lips she drew the Hallelujah”. Canção do álbum Various Positions (Columbia, 1984).

i) ainda na década de 1960, Peter L. Hays estabelece uma analogia entre Ephraim Cabot e Oseias, entre a história do casamento com Abbie e a história do casamento do profeta hebreu com uma meretriz;176

ii) por seu turno, no final da década de 1970, Patrick Bowles identifica “múltiplos paralelos” entre a narrativa bíblica da jovem Abisague e do velho Rei David e a história de Abbie e do septuagenário Ephraim;177

iii) em meados da década de 1980, Arnold Gordenstein avança a tese de que em

Desejo os “mitos combinados não são o Hipólito grego e o Efraim bíblico, mas

as histórias do Édipo e do Éden”;178

iv) num ensaio publicado em 2009, Brenda Murphy assinala o reconhecimento de uma imagem miltoniana de Adão e Eva na cena final da peça (“os dois [Eben

176 Este paralelismo é suportado não só pela sistemática associação de Ephraim à figura bíblica do profeta

– “E agora cá me vou para escutar a mensagem que Deus me manda na Primavera, como os profetas faziam” [I Parte, Cena 2] –, mas também, e muito especialmente, pelo facto de Abbie ser recorrentemente tratada por Eben como uma meretriz. Num desses momentos, o jovem amante grita-lhe: “Odeio-te! És uma pega… uma pega reles!” [III Parte, Cena 2]. Vide Peter L. Hays, “Biblical Perversions in Desire

Under the Elms”, in Modern Drama, n.º 11 (February 1969), pp. 423-428.

177 Patrick Bowles explora a possibilidade de Abbie ser uma abreviatura não de Abigail (nome que, sob a

influência puritana, se tornou bastante comum na Nova Inglaterra e que em Desejo adquiriria um sentido irónico, uma vez que este nome tem por significado “a alegria do pai”), mas de Abisague, figura marginal do Antigo Testamento. Para além de alguns eruditos considerarem esta Abisague a protagonista do

Cântico dos Cânticos (canto nupcial amiúde citado por Ephraim), ambas as figuras masculinas têm em

comum a idade avançada, padecerem de um frio que aparentemente nada consegue erradicar e não chegarem a conhecer (na aceção bíblica do termo) estas mulheres, lançando-se no seu concurso os filhos (Adonias na história bíblica, Eben na peça de O’Neill). Vide Patrick Bowles, “Another Biblical Parallel in

Desire Under the Elms”, in Frederick Wilkins (ed.), The Eugene O’Neill Newsletter, vol. II, n.º 3. Boston,

Suffolk University, 1979, in eONeill.com: An Electronic Eugene O’Neill Archive [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.eoneill.com/library/newsletter/ii_3/ii-3e.htm> [consult. 25-07-2012].

178

Diz o antigo professor norte-americano da Universidade Federal de Santa Catarina que “Abbie e Eben lembram, pela sua aura e nos seus gestos, Adão e Eva e o pecado original”. Arnold Gordenstein, “A Few Thousand Battered Books: Eugene O’Neill’s Use of Myth in Desire Under the Elms and Mourning

Becomes Electra”, in Ilha do Desterro: A Journal of English Language, Literatures in English and Cultural Studies, n.º 15/16, Florianópolis, Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 1986, in Periódicos UFSC [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/

e Abbie] saem de mãos dadas em direção ao nascer do sol, uma imagem que foi identificada com a de Adão e Eva a abandonar o jardim no Paraíso Perdido”);179 v) mais recentemente, em 2010, Jerry V. Stinnett parte da centralidade das referências bíblicas na peça de O’Neill para argumentar que “a ação trágica encontra a sua principal fonte nos mitos judaicos da criação”, descortinando na mãe morta de Eben a figura de Lilith.180

Embora algumas destas hipóteses nos pareçam escassamente argumentadas, nenhuma delas se afigura, em si mesma, despropositada. Ou melhor, não precisaremos propriamente de optar por esta em detrimento daquela, ou de preferir uma e recusar as restantes: sucede que a presença dos arquétipos bíblicos (e parabíblicos) no Desejo Sob

os Ulmeiros é da ordem do rizoma, e não da raiz. Evocamos momentaneamente os

conceitos botânicos tematizados pela dupla Deleuze/Guattari para afirmar que não há na peça de O’Neill uma totalitária raiz bíblica que se ramifique cartesianamente na estrutura dramática, mas uma fasciculação rizomática – múltipla, acentrada e dinâmica: “[O rizoma] é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, invertível, suscetível de receber modificações constantemente.” Já no final do seu ensaio, Deleuze e Guattari vaticinam: “Um rizoma não começa e não acaba, está sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo.”181 Mais modestamente talvez, descreveríamos a dissimulada montagem bíblica de Desejo Sob os Ulmeiros como bricolage, um trabalho feito a partir de sobras, restos, pedaços, um pouco como fez T.S. Eliot num ensaio que dedicou a Blake, ao falar de um engenhoso método à Robinson Crusoe, através do qual o poeta das Canções de Inocência e Experiência forjou um sistema de pensamento a partir de retalhos das suas leituras.182 Com mais propriedade talvez invocar-se-ia a noção de “pulsão rapsódica”183 proposta por Jean-Pierre Sarrazac, princípio ou força que teria sido responsável pelo desenvolvimento, ao longo de todo o século XX, de uma forma dramática aberta e heterogénea, em reinvenção permanente, que não cessa de

179

B. Murphy, “Tragedy in the Modern American Theatre”, op. cit., p. 496.

180

Jerry V. Stinnett, “A sinister maternity: Maw, Lilith, and Tragic Unity in Desire Under the Elms”, in Zander Brietzke (ed.), The Eugene O’Neill Review, vol. 32. Boston, Suffolk University, 2010, p. 10.

181 Gilles Deleuze/Felix Guattari, Rizoma, trad. Rafael Godinho, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, pp. 29,

61.

182 Vide N. Frye, The Great Code: The Bible and Literature, op. cit., p. xxi. 183 Vide J.-P. Sarrazac, Poétique du drame moderne, op. cit., p. 293 e ss.

concertar materiais, modos e géneros. Reencontramos algo dessa poética da impureza e da mestiçagem – que a figura do autor-rapsodo encarna – na combinação dinâmica de elementos trágicos, melodramáticos e romanescos, na hábil conjugação de mitos clássicos e de narrativas sagradas, que Eugene O’Neill promove em Desejo Sob os

Ulmeiros.

Em todo o caso, seja qual for o conceito ou a metáfora através dos quais ambicionemos perspetivar esta presença real – rizoma, palimpsesto, bricolage, rapsódia, patchwork –, o certo é que a linguagem e a simbólica bíblicas fecundaram o imaginário de Desejo Sob os Ulmeiros. Assinalá-lo e compreendê-lo não corresponde tanto a devolver a peça de Eugene O’Neill ao pano de fundo de que se destaca como a ampliar o horizonte da sua própria legibilidade. Educado em escolas católicas até aos treze anos de vida, o dramaturgo de ascendência irlandesa era já há muito um apóstata quando escreveu a folk tragedy dos Cabot. Numa carta dirigida a uma freira dominicana, três meses após a estreia pública da sua peça-escândalo, expõe: “Devo confessar-lhe que, nos últimos vinte anos, tenho vivido sem Fé.”184 Isso, todavia, não o impediu de descobrir a irrecusável inatualidade (no sentido que Nietzsche atribuía ao termo) da Bíblia, esse livro perigoso. As seguintes palavras de Elias Canetti poderiam ser suas: “É estranho! Diante do que hoje acontece, só a Bíblia me parece ter uma força adequada. E é precisamente a sua terribilidade que nos consola.”185

184 Carta de 6 de Fevereiro de 1925, endereçada a Sister Mary Leo. In T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected

Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 192.

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