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Dívida soberana: heranças clássica e bíblica em «Desejo Sob os Ulmeiros», de Eugene O'Neill, e notícia de duas encenações em Portugal

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F A C U L D A D E D E L E T R A S U N I V E R S I D A D E D O P O R T O

Pedro Miguel Meleiro Sobrado

2.º CICLO DE

Heranças clássica e bíblica em

de Eugene O’Neill, e notícia de duas encenações em Portugal

Orientador: Professora Doutora Isabel Morujão

Classificação: Ciclo de estudos: Dissertação:

Pedro Miguel Meleiro Sobrado

ICLO DE ESTUDOS EM ESTUDOS DE TEATRO

Dívida soberana

Heranças clássica e bíblica em Desejo Sob os Ulmeiros

Eugene O’Neill, e notícia de duas encenações em Portugal

2014

Orientador: Professora Doutora Isabel Morujão

Classificação: Ciclo de estudos:

Desejo Sob os Ulmeiros,

Eugene O’Neill, e notícia de duas encenações em Portugal

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Resumo

Em 1924, Eugene O’Neill estreou Desejo Sob os Ulmeiros, folk tragedy que representou o ápex da primeira fase da sua produção dramática e outorgou ao proclamado fundador da moderna dramaturgia norte-americana uma estatura internacional. Impugnando a despótica centralidade do argumento biografista e clínico na interpretação da peça, a presente dissertação pondera as relações intertextuais que ela estabelece, por um lado, com a tragédia clássica e, por outro, com as narrativas sagradas. Mais do que um levantamento exaustivo de paralelismos, citações e ressonâncias, procura-se compreender como os arquétipos clássicos e bíblicos operam no interior do texto o’neilliano e quais as suas consequências, em termos de expressividade dramática e de sentido. Se o Hipólito de Eurípides se afigura a raiz de Desejo

Sob os Ulmeiros – serve-lhe de eixo e modelo –, a simbólica bíblica manifesta-se rizomaticamente: é

acentrada, plural, dinâmica. Sendo o teatro uma “arte a dois tempos” (Henri Gouhier), que reclama o devir cénico dos seus textos, a nossa reflexão é complementada pela avaliação da posteridade de Desejo

Sob os Ulmeiros no teatro português, através da análise de encenações de João Lourenço (1990) e, em

especial, de Nuno Cardoso (2011).

Palavras-chave: Eugene O’Neill, Desejo Sob os Ulmeiros, Drama Americano, Tragédia Clássica,

Eurípides, Hipólito, Bíblia, Teatro Português, João Lourenço, Nuno Cardoso

Abstract

In 1924, Eugene O’Neill premiered Desire Under the Elms, a folk tragedy that marked the high point of the first phase of his dramatical production and conferred international status on the proclaimed founding father of modern American drama. Challenging the despotic centrality of the biographical and clinical argument in the interpretation of the play, this dissertation considers its intertextual relations with classical tragedy, on the one hand, and with sacred narratives, on the other. Not just an exhaustive survey of parallels, citations and resonances, this work aims to examine how classical and biblical archetypes operate within O’Neill’s text, and how they effect its dramatic expressiveness and meaning. If Euripides’

Hippolytus seems to lie at the root of Desire Under the Elms – serving as a fulcrum and a model –, the

biblical symbolism operates rhizomatically, being eccentric, plural and dynamic. Understanding theatre as an “art à deux temps” [art in two steps] (Henri Gouhier) that demands the actual staging of the text, our reflexion is supplemented by a look at how posterity has treated Desire Under the Elms in the context of Portuguese theatre. We analyse the staging of the play by João Lourenço (1990) and, particularly, by Nuno Cardoso (2011).

Keywords: Eugene O’Neill, Desire Under The Elms, American Drama, Greek Tragedy, Euripides,

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Índice

Agradecimentos……….4

Introdução………..8

1. Uma dramaturgia na primeira pessoa………..13

2. Herança clássica Limiar………...……21

2.1. Uma tragédia por escrever………23

2.2. Núpcias de morte………..27

2.3. Caracteres de uma primitiva escrita………..36

2.4. The Force behind………..45

3. Herança bíblica Limiar………...55

3.1. Pedras de tropeço………..58

3.2. Trinta moedas, e um prato de lentilhas……….64

3.3. Máquina de emaranhar paisagens……….71

4. Notícia de duas encenações em Portugal 4.1. Muito cuidado com o teatro………..77

4.2. Ecos do primeiro Desejo – a encenação João Lourenço………...82

4.3. O som e a fúria – a encenação de Nuno Cardoso……….88

Conclusão………..107

Bibliografia………114

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Agradecimentos

À Professora Isabel Morujão, que me demonstrou que uma orientadora pode albergar em si uma pequena multidão: professora, psicóloga, amiga, cúmplice (quase no sentido criminal!), personal trainer, sage… Não fossem o seu saber e ânimo (apetece dizer: a sua gaia ciência), a minha errática conduta académica teria conduzido a nenhures. A nossa demanda pela História de Deus de Gil Vicente deixou de ser passível de breve sumário numa dissertação de mestrado: partindo dessa pedregosa terra do demo (“terra que tenho de cardos e de pedras/ que vai desde Sintra até Torres Vedras…”), vimo-nos chegados à puritana Nova Inglaterra de O’Neill, onde God’s hard, not easy.

Ao Teatro Nacional São João – nas pessoas dos seus Administradores Francisca Carneiro Fernandes,

Salvador Santos e José Matos Silva e do seu Diretor Artístico, Nuno Carinhas –, instituição onde tenho

o privilégio de trabalhar e que pronta e generosamente me apoiou; à Paula Braga e ao ‘seu’ Centro de Documentação, em cujas estantes encontrei boa parte da minha biblioteca.

À Professora Alexandra Moreira da Silva, pelo desafio que me lançou para cursar este Mestrado de Estudos de Teatro, arduamente planeado com Paulo Eduardo Carvalho, e por tudo o que com ela – e ele – aprendi. À Professora Marta Várzeas, pela atenção que dedicou a um trabalho preliminar sobre a afinidade entre o Desejo o’neilliano e o Hipólito euripidiano, formulando recomendações que, pelo seu acerto, não pude senão aproveitar. Agradecimento devido também pelos posteriores esclarecimentos sobre alguns aspetos da cultura clássica.

Ao meu dedicado amigo Nuno Moreira, exemplar investigador desta Casa, no qual estas páginas encontraram o mais entusiasmado leitor a que poderiam aspirar. Ao Ricardo, que não leu, mas creu – bem-aventurado!

À Vera San Payo de Lemos, que amavelmente se dispôs a fornecer-me elementos sobre a encenação de

Desejo Sob os Ulmeiros realizada por João Lourenço, e à Joana Grande, do Teatro Aberto, pelo expedito

envio de artigos e imagens. Ao David Antunes, pela pronta cedência das suas traduções de Nevoeiro e

Sede. Ao João Tuna, pelas fotografias que fazem a nossa memória de espectadores.

Ao Nuno Carinhas, que me inventou como ‘dramaturgista’: a sua amizade e confiança valem-me mais do que um grau académico. Ao João Luís Pereira, colega de carteira nas Edições do TNSJ, o

espectador emancipado que, em boa medida, me iniciou no Teatro.

À Abigail (a minha tão assisada Abbie!), a quem gostaria de devolver o tempo de vida que este curso de mestrado, ou melhor, que a minha dispersão, indisciplina e vis inertiae criminosamente lhe subtraíram.

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Aos meus pais, Ernesto e Leonor, e aos meus irmãos, Jorge e Susana.

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Indicações de leitura

Os passos de Desejo Sob os Ulmeiros transcritos nesta dissertação provêm de uma tradução de Jorge de Sena, realizada no final da década de 1950 e disponível numa edição das Publicações Europa-América. Tendo em conta o número de citações, optamos por não incluir em rodapé qualquer nota, indicando entre parênteses retos o ato e a cena a que cada uma diz respeito e remetendo para a bibliografia final o crédito editorial. O mesmo se aplica à tradução do Hipólito, da autoria de Frederico Lourenço.

No que se refere às peças de Eugene O’Neill, nomeamos o título da tradução portuguesa mais recente ou familiar (sinalizando, na primeira menção, o título original entre parênteses retos e o ano da sua estreia); nos casos em que as peças não foram traduzidas para edição ou cena, mencionamos o título original.

A quase totalidade das citações de ensaios, biografias e obras especializadas sobre Eugene O’Neill e Desejo Sob os Ulmeiros provém de obras publicadas em língua estrangeira. Optamos por incluir esses passos numa tradução da nossa responsabilidade (exceto quando indicado), remetendo para rodapé as respetivas referências bibliográficas.

Em relação às citações bíblicas, privilegiamos, de um modo geral, a versão da Bíblia

Sagrada da Difusora Bíblica (Franciscanos Capuchinhos), publicada pela primeira vez

em 1998. Em alguns casos, por razões estritamente literárias, citamos a tradução da Bíblia realizada, no século XVII, por João Ferreira d’Almeida, um improvável protestante português na ilha de Java.

(7)

A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo.

(8)

Introdução

EBEN: Eu sou… o herdeiro. EUGENE O’NEILL, Desejo Sob os Ulmeiros

“A obra dramática de Eugene O’Neill é a de um herdeiro.”1 Assim inicia Jean-Pierre Sarrazac o ensaio que dedicou ao dramaturgo norte-americano nascido em 1888 – o mesmo ano que viu nascer Fernando Pessoa, como lembrou Jorge de Sena2 – e desaparecido em 1953. A proposição do dramaturgo e ensaísta francês considera naturalmente o pesado legado familiar de O’Neill, a sua manifesta impossibilidade em romper o vínculo parental, uma memória da infância impossível de rasurar. Mas Jean-Pierre Sarrazac não tem apenas em mente aquilo que tem sido explorado ad nauseam por comentadores e comentadores de comentadores: se é possível classificar Longa

Jornada para a Noite [Long Day’s Journey Into Night, 1956] como a obra de um herdeiro é porque O’Neill se apropria de um legado que é tão desejado quanto a

herdade – palavra que é sinónima de herança – disputada pelas personagens de Desejo

Sob os Ulmeiros [Desire Under the Elms, 1924]. Referimo-nos aos grandes dramaturgos

da viragem do século, de que a obra desse eterno filho é altamente devedora: Tchékhov, Ibsen, Strindberg. Particularmente, Strindberg, de quem recebe o método da confissão

dramática. Nota Sarrazac: “Strindberg, cuja encenação conjugal, atravessada por uma

torturante nostalgia de fusão com a mulher – ou com a mãe –, serve de modelo permanente às peças de O’Neill, funciona para o escritor americano de origem irlandesa como tutor ou pai.”3

A presente dissertação vasculha a herança de que Eugene O’Neill tomou posse – aquela porção que o legatário investiu na composição de um drama que, segundo o parecer unânime da crítica, certifica a maioridade do dramaturgo: Desejo Sob os

1

Jean-Pierre Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, in Théâtres Intimes, Paris, Actes Sud, 1989, p. 47.

2 Vide Jorge de Sena, “O Testamento de Eugene O’Neill”, in Do Teatro em Portugal, Lisboa, Edições 70,

1989, p. 383.

(9)

Ulmeiros.4 Este inventário crítico não visa o levantamento dos elementos da tradição teatral mencionados por Jean-Pierre Sarrazac – a avaliação do legado strindberguiano é exterior ao âmbito deste trabalho –, mas antes o estudo da apropriação, por parte de O’Neill, de uma dupla e vasta herança: clássica e bíblica, grega e judaico-cristã. Realizada, pois, no capítulo inicial, uma breve apreciação do argumento biográfico e clínico na receção crítica da peça estreada em Novembro de 1924, detemo-nos mais demoradamente, no segundo capítulo, sobre a ambição primeira do dramaturgo norte-americano (“recriar o espírito grego foi a meta que fixou para si mesmo”,5 assinalou Egil Törnqvist); o modo como tal aspiração se cumpre (ou não) em Desejo Sob os

Ulmeiros; as ressonâncias dos mitos de Édipo e Medeia contidas na peça; e, muito

especialmente, a homologia estrutural entre este American classic e o Hipólito de Eurípides, “o mais trágico dos poetas trágicos”, na célebre definição de Aristóteles.6 Depois de considerada a raiz trágica de Desejo, debruçar-nos-emos, no terceiro capítulo, sobre o rizoma bíblico7 que se propaga no seu enredo. Mobilizando a simbólica e a imagística das Escrituras, bem como algumas das suas narrativas (em particular, a de Jacob e Esaú), procurar-se-á expor o conflito e as personagens a uma outra luz, não para acrescentar mais um item ao já copioso rol de fontes invocadas a

4 Desse consenso cite-se, a título de exemplo, o clássico Contour in Time (1972) de Travis Bogard, autor

desaparecido em 1997 que continua hoje a ser estimado como um dos mais consistentes investigadores da obra de Eugene O’Neill: “[Desejo Sob os Ulmeiros] atinge uma perfeição de conteúdo e de forma que nenhuma peça anterior do escritor tinha alcançado. É uma obra de arte criada por um dramaturgo que, ao dominar o seu ofício e ao compreender cabalmente as implicações do tema, atinge finalmente a maioridade.” Travis Bogard, Contour in Time, in eONeill.com: An Electronic Eugene O’Neill Archive [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.eoneill.com/library/contour/triumvirate1/desire. htm˃ [consult. 13-05-2012].

5 Egil Törnqvist, “O’Neill’s philosophical and literary paragons”, in Michael Manheim (ed.), The

Cambridge Companion To Eugene O’Neill, Cambridge, Cambridge University Press, 1998, p. 19.

6

“Foi Aristóteles que, para descrever o teatro de Eurípides, dotou o adjetivo ‘trágico’ de uma forma do superlativo absoluto sintético: tragicíssimo (tragikótatos). O mais trágico dos poetas trágicos”. Frederico Lourenço, “Eurípides: Trágico no Superlativo”, in Grécia Revisitada: Ensaios sobre Cultura Grega, Lisboa, Cotovia, 2004, p. 58.

7 Raiz e rizoma: conceitos epistemológicos tematizados por Guattari e Deleuze que explicitaremos no

decurso deste trabalho, bem como na nossa conclusão. Vide Gilles Deleuze/Felix Guattari, Mille

(10)

propósito de Desejo Sob os Ulmeiros, nem talvez para produzir mais significado, mas, se nos for possível, para perceber melhor como é aquilo que é.8

Apesar de a estrutura do estudo ser praticamente simétrica na apreciação dos dois espólios simbólicos e narrativos, tendemos a considerar o capítulo relativo aos valores bíblicos como especialmente relevante e necessário: um tal parecer não decorre da presunção dos méritos intrínsecos desse trabalho em particular, nem sequer do pressuposto de que a quota-parte do legado proveniente das Sagradas Escrituras se revela mais decisiva na compreensão da peça do que aquela que provém das tragédias da Antiguidade. A razão é diversa: enquanto a matriz clássica de Desejo adquiriu, no decurso dos anos, contornos de ‘evidência’ – críticos e investigadores não hesitam em classificá-la como “a primeira tragédia de relevo a ser escrita na América”9 ou em tomá-la como a “refutação do axioma de que a tragédia é uma proeza impossível para os dramaturgos modernos”10 –, a simbólica bíblica manifesta-se de modo obscuro e difuso, sendo geralmente objeto de referências breves ou de pontuais e dispersivos comentários. Nisto, o próprio dramaturgo desempenhou o seu papel, pois as descrições que foi fornecendo da peça, bem como a sua aspiração a ser lido como um tragediógrafo, favoreceram a ênfase crítica sobre os arquétipos clássicos. Por seu turno, as citações e alusões bíblicas disseminadas pela superfície do texto dramático acabam por desencadear um efeito de despistagem, dando a ler-se como decorativas alusões que viriam apenas introduzir um novo grau de verosimilhança numa peça inscrita na Nova Inglaterra de 1850, profundamente marcada pelo puritanismo e a sua tradição político-teológica. Como tentaremos demonstrar, a influência do Livro dos Livros transcende largamente uma função ornamental ou o papel de adereço, infundindo na ficção teatral de O’Neill uma fulgurante energia dramática. É nesse arsenal simbólico, teatro do natural e do sobrenatural ou atlas do humano – the Great Code of Art, na famosa

8 O que aparenta ser um humilde desígnio pode revelar-se a maior das arrogâncias. No texto, aludimos a

um passo de “Contra a Interpretação”, ensaio de Susan Sontag que marcou uma época: “A função da crítica devia ser mostrar como é o que é, ou mesmo que é o que é, em vez de mostrar o que significa.” Susan Sontag, “Contra a Interpretação”, in Contra a Interpretação e Outros Ensaios, trad. José Lima, Lisboa, Gótica, 2004, p. 32.

9 T. Bogard, Contour in Time, op. cit.

10 Margaret Loftus Ranald apud Stephen A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy, New

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definição de William Blake11 – que se encontrará o sentido e o nexo de várias cenas nucleares de Desejo Sob os Ulmeiros e de feições particulares das suas personagens em carne viva.

Diremos, em suma, que este trabalho visa associar ao legado ático, no interior do qual Eugene O’Neill programaticamente se move, uma outra herança, que vem capitalizar decisivamente a empresa do dramaturgo americano. É nossa convicção que, na composição de Desejo Sob os Ulmeiros, O’Neill é fortemente atraído por aquilo que George Steiner chama “o magnetismo dual da Atenas pagã e da Jerusalém hebraica”.12 Como o autor de A Morte da Tragédia e de Depois de Babel, o dramaturgo também poderia dizer: “Venho depois de Atenas e depois de Jerusalém. Todos nós vivemos no interior desta dupla herança.”13 Se, de facto, como sugere Sarrazac, herdeiro é o epíteto justo para descrever O’Neill, é também porque no seu labor dramatúrgico se apropria desses atos de fala fundadores da nossa ‘civilização’, textos que, através dos séculos, mantêm intacta toda a sua força germinativa. Escreve o triestino Claudio Magris: “Heine dizia que houve dois povos na história do mundo, ou pelo menos do Ocidente, os judeus e os gregos, que expressaram a essência da vida para todos e para sempre. Com efeito, a Bíblia – Antigo e Novo Testamentos – e a tragédia e o mito gregos continuam a fornecer-nos as chaves e as imagens para compreender quem e o que somos, a culpa e a salvação, o exílio e o regresso”.14

Em relação a esta herança, Eugene O’Neill bem poderia argumentar nos termos em que Eben se refere a Minnie: “Possuí-a. Pode ter sido dele… e vossa também… Mas agora é minha!” [I Parte, Cena 3].

Poderíamos, talvez, ficar-nos por aqui. Sucede, porém, que todo o verdadeiro texto dramático clama pela cena, pela teatralidade, e que, por outro lado, o acontecimento teatral – a encenação, a representação, o jogo do ator – transcende uma mera operação de transferência do papel para o palco. Patrice Pavis explica que a

11

Apud Northrop Frye, The Great Code: The Bible and Literature, New York, Harcourt Brace Jovanovich Publishers, 1983, p. xvi.

12

George Steiner, A Ideia de Europa, trad. Maria de Fátima Aubyn, Lisboa, Gradiva, 2005, pp. 41-42.

13 George Steiner/Ramin Jahanbegloo, Quatro Entrevistas com George Steiner, trad. Miguel Serras

Pereira, Lisboa, Fenda, 2006, p. 105.

14 Claudio Magris, “El Alfabeto del Mundo”, in Alfabetos: Ensayos de Literatura, trad. Pilar González

(12)

encenação não corresponde à “redução ou transformação de um texto em espetáculo, mas antes ao seu confronto”, ou seja, à aptidão de “pôr o texto sob uma tensão dramática e cénica”.15 Por essa razão, num capítulo final, damos notícia das duas únicas encenações profissionais de Desejo Sob os Ulmeiros realizadas, com vinte anos de distância, em Portugal, por destacados criadores teatrais de diferentes gerações: João Lourenço (n. 1944), do Novo Grupo/Teatro Aberto, e Nuno Cardoso (n. 1970), da companhia Ao Cabo Teatro. Da primeira encenação, produzida em 1990, tomámos conhecimento através de documentos da época (imprensa, fotografias, programa de sala); da segunda, socorremo-nos do mesmo tipo de recursos, bem como de um registo vídeo de plano fixo, mas beneficiamos sobretudo desse arquivo intempestivo que é a nossa memória de espectadores.16 Invocando, pois, duas categorias tematizadas por Patrice Pavis, diremos que, no primeiro caso, ensaiaremos um breve exercício de

reconstituição da representação a partir dos “resíduos do ato teatral”;17 no segundo, fundamo-nos sobre a “experiência individual e única do espectador confrontado com o acontecimento cénico”.18 No que diz respeito à encenação de Nuno Cardoso, para além deste indispensável contacto direto com o espetáculo finalizado – nas palavras de Pavis, a “regra de ouro” da análise da criação teatral –, foi-nos ainda dado assistir a ensaios, em momentos distintos do processo de criação. Daí que a reflexão sobre esta segunda encenação de Desejo Sob os Ulmeiros possa expandir-se significativamente para além da simples nótula histórica. Digamos que, ao ponderarmos as diversas escolhas e escolas em jogo nas duas produções, é nossa intenção bifurcar o itinerário das interpretações e, mesmo que modestamente, evidenciar o homem de teatro que – desde os primeiros dias nos Provincetown Players de Massachusetts até à colaboração final com o nova-iorquino Theatre Guild – Eugene O’Neill também foi.

15 Patrice Pavis, “From Stage to Page: A Difficult Birth”, in Theatre at the Crossroads of Culture, trad.

Loren Kruger, London/New York, Routledge, 1992, pp. 26, 30.

16

Eugenio Barba advoga que a experiência teatral escapa aos media e diz sobretudo respeito à memória do espectador: “Na época da memória eletrónica, do filme e da reprodutibilidade, o espetáculo teatral dirige-se à memória viva, a qual não é um museu, mas metamorfose”. Apud Patrice Pavis, L’Analyse des

spectacles, Domont, Armand Colin, 2008, p. 43.

17 Idem, p. 21. 18 Idem, p. 22.

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1. Uma dramaturgia na primeira pessoa

Desculpem-me não ser simpático, mas acabo de chegar do Inferno.

BENJAMIN DE CASSERES, sobre o semblante de Eugene O’Neill19

Existências como a de Eugene O’Neill – marcadas pelo excesso e pelo ferrete do trágico – tornam irresistível o exercício crítico que consiste em ler a obra à luz da vida, em escandir toda uma literatura diversa ao ritmo dos mesmos factos de uma existência. Apesar de, no princípio da década de 70, Louis Sheaffer ter empreendido, em dois volumes galardoados com o Prémio Pulitzer, um trabalho biográfico de uma amplitude e minúcia praticamente insuperáveis, no caso do dramaturgo norte-americano, o passado é tão funestamente transbordante, que é seguro afirmar que cada biógrafo ou crítico terá direito ao seu quinhão de conjeturas e correspondências. Objetar-se-á que uma tal estratégia interpretativa se revela não apenas altamente sedutora, mas efetivamente necessária, tendo em consideração que é da vida que toda a escrita de O’Neill umbilicalmente se alimenta: que outro tópico é no seu teatro objeto de tão obsessivas cogitações e ruminações quanto o familiar, nomeadamente o relacionamento entre pais e filhos? À semelhança do Conrad de O Coração das Trevas, autor que prezava imensamente, Eugene foi marinheiro e viajante experimentado, mas, de certo modo, nunca chegou a sair de casa, a deixar pai e mãe. Também é verdade que nunca chegou a

ter uma casa, e esse tornou-se o problema nodal do seu teatro.20 Perguntamos de novo: se o seu teatro testemunha a espetacularidade do íntimo, se participa de uma estética do

buraco de fechadura – como diria Nelson Rodrigues, “anjo pornográfico” que tanto

19 Apud Barrett H. Clark, Eugene O’Neill: The Man and His Plays, New York, Dover, 1947, p. 40. 20 A culpa que Mary imputa ao marido, James Tyrone, dá conta desse vazio ardente em torno do qual

volteiam os dramas o’neillianos: “[O teu pai] viveu demais em hotéis. E claro que nunca nos melhores. Sempre em hotéis de segunda ordem. Não compreende o que é um lar. Nem se sente à vontade nele. E, no entanto, anseia por um lar. Chega a ter orgulho neste buraco miserável.” Mais adiante, referindo-se às criadas, censura de novo o marido: “Não é justo esperar que a Bridget ou a Cathleen se comportem como se isto fosse uma casa de verdade. Sabem que o não é, tão bem como nós. Nunca foi e nunca o há-de ser.” Especialmente eloquente é a declaração que Edmund (o avatar de Eugene em Longa Jornada) faz no ato derradeiro: “Serei sempre um estranho que nunca se sente em sua casa, que realmente não quer, nem é querido, que não pertence a isto, que tem de estar sempre um pouco de amores com a morte!” Eugene O’Neill, Jornada para a Noite, trad. Jorge de Sena, Lisboa, Cotovia, 1992, pp. 78, 88, 170.

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admirava O’Neill21 –, recusar a chave biográfica ou íntima não constituirá um contrassenso? Poder-se-á mesmo supor que, involuntariamente, o dramaturgo fomentou, a título póstumo, uma semelhante voragem – poderíamos mesmo dizer, devassa – biográfica, com uma peça como Longa Jornada para a Noite, cuja publicação O’Neill remeteu expressamente para um momento ulterior à sua morte e que rapidamente se revelou o seu maior feito literário. O receio de que, um dia, alguém viesse a “saber de nós” e escrevesse “qualquer coisa vulgar e melodramática sobre o assunto” – ou, terror dos terrores, “uma peça”! – levou o dramaturgo americano a antecipar-se, compondo um drama-exorcismo, testamento dramático escrito com “lágrimas e sangue”, no qual expõe o “inferno que cada membro da família suportou”.22 Medida profilática que redundou, afinal, numa reação paradoxal, multiplicando toda a sorte de suposições e bisbilhotices sobre a vida privada e o passado familiar de O’Neill. Dir-se-ia que, a partir de Longa Jornada, todas as suas peças se tornaram retroativamente autobiográficas.

Desejo Sob os Ulmeiros, peça escrita em 1924 que consagrou O’Neill como um

dramaturgo de primeira água e lhe outorgou uma estatura internacional, não escapou à compulsão biografista de cariz clínico: em 1957, três anos após a morte do dramaturgo, um psiquiatra nova-iorquino de filiação freudiana, Philip Weissman, tratou de estabelecer para a posteridade um conjunto de conexões entre as peças de O’Neill e alguns traços marcantes da sua vida pessoal. Na omnisciência psicanalítica de Weissman, Longa Jornada para a Noite constitui uma projeção “consciente” da história familiar de O’Neill, enquanto Desejo Sob os Ulmeiros configura “um drama autobiográfico inconsciente”.23 Uma tese que parecia ser ratificada pelo próprio autor

21

Ruy Castro alude a essa admiração num determinado passo da biografia O Anjo Pornográfico: “[Nelson Rodrigues] tinha medo de que não entendessem que Vestido de Noiva podia ter sido escrito em seis dias, mas tinha levado anos maturando em sua cabeça. Além disso, ouvira dizer que seu ídolo Eugene O’Neill escrevia devagar e reescrevia mais devagar ainda. E ele, que nem reescrevia? Não tinha culpa se, quando se sentava para trabalhar, já sabia o que iria fazer.” Mais adiante, o biógrafo do escritor brasileiro assinala: “Senhora dos Afogados era inspirada em O Luto Assenta a Electra, de O’Neill […].” Ruy Castro, O Anjo Pornográfico: A Vida de Nelson Rodrigues, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, pp. 177-178, 252.

22

Apud Louis Sheaffer, O’Neill: Son and Artist: Volume II, New York, Cooper Square Press, 2002, p. 505.

23 Philip Weissman, “Conscious and Unconscious Autobiographical Dramas of Eugene O’Neill”, in

Journal of the American Psychoanalytic Association, V, July 1957, p. 432. Disponível em www: <URL:

(15)

numa carta datada de Fevereiro de 1925, na qual, apesar de desdenhar dos méritos de Freud, aventava, talvez com uma irritação mal contida, a seguinte hipótese: “Se existe qualquer freudismo no Desejo, o mais certo é que tenha entrado diretamente ‘através do meu inconsciente’.”24 Mas trata-se apenas de uma hipótese, e bem vacilante, se dermos crédito a uma confissão de O’Neill, feita em 1928, três décadas antes de o psiquiatra de Nova Iorque formular a tese de uma autobiografia inconsciente: I have always loved

Ephraim so much! He’s so autobiographical!25 O conhecimento prévio de uma tão desassombrada declaração de amor ao titã puritano que constitui um dos vértices – também poderíamos dizer ‘vórtices’ – do infame triângulo de Desejo Sob os Ulmeiros seria suficiente para perturbar a supina ingenuidade que subjaz à ideia de uma involuntária e inapercebida projeção biográfica.26 Declaração, de resto, bastante intrigante, pois parece ainda descompor os intérpretes que, como Weissman, se mostram mais atreitos a identificar Eugene – eterno filho atormentado por obsessões edipianas – com Eben do que com o septuagenário Ephraim, cujo temperamento e avidez pela terra parecem refletir cristalinamente a personalidade do pai do dramaturgo,

em Desejo Sob os Ulmeiros se viu não só uma “autobiografia inconsciente” como também um “plágio inconsciente”. É uma tese avançada por Louis Sheaffer, na esteira das impressões de Kenneth Macgowan, amigo pessoal de Eugene O’Neill e um dos elementos do chamado “Triunvirato” (constituído pelo dramaturgo, por Macgowan e pelo encenador, cenógrafo e figurinista Robert Edmond Jones) que dirigiu o Greenwich Village Theater e a Provincetown Playhouse. Segundo o biógrafo, Desejo apropria-se da estrutura narrativa de uma peça de Sidney Howard, They Knew What They Wanted, que Macgowan dera a conhecer a Eugene pouco tempo antes. Vide L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., pp. 126-127.

24

A mencionada depreciação das virtudes da psicanálise freudiana ocorre no seguinte passo da mesma carta: “A meu ver, Freud só nos dá conjeturas e explicações vacilantes sobre verdades do passado emocional da humanidade que todos os autores dramáticos intuíram claramente desde o nascimento do verdadeiro teatro. […] Eu tenho um enorme respeito pelo trabalho de Freud – mas não sou um adepto!” Carta de 25 de Fevereiro de 1925, endereçada a Mr. Perlman. Travis Bogard/Jackson Bryer (ed.), Selected

Letters of Eugene O’Neill, New York, Limelight, 1994, p. 192.

25 Apud L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op.cit., p. 130. 26

Tanto assim é que, num artigo de 1958, Arthur Gelbs – autor de múltiplos ensaios sobre Eugene O’Neill, coautor de uma biografia seminal do dramaturgo (O’Neill, 1962) e, à época, editor do The New

York Times – adianta que “um conjunto de amigos próximos de O’Neill estava a par, durante a escrita e a

montagem da peça, que os conflitos nela presentes ecoavam os problemas emocionais do próprio autor com os seus pais e irmão”. Arthur Gelbs, “At the Roots of O’Neill’s Elms” (The New York Times, March 2, 1958), in eONeill.com: An Electronic Eugene O’Neill Archive [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www. eoneill.com/library/on/gelbs/times3.2.1958.htm> [consult. 09-04-2012].

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o ator James O’Neill.27 É como se o escritor, cuja fascinação pelas máscaras era, de resto, bem conhecida,28 se entretivesse postumamente – a si e aos seus mais diligentes leitores – com um pueril e perverso jogo de esconde-esconde: não, não, eu não estou aí,

onde me analisais, mas aqui, de onde vos observo, a rir.29

Em todo o caso, o facto é que, sob os auspícios de Philip Weissman, se deu início à exploração do filão biográfico, tão pródigo e concorrido quanto o oitocentista ouro da Califórnia de que se fala em Desejo Sob os Ulmeiros. Essa prospeção começa nas leituras feitas por O’Neill no período que antecede a composição do drama – do desbotado They Knew What They Wanted de Sidney Howard, de que o Desejo de cores garridas seria um “plágio inconsciente”,30 ao Nascimento da Tragédia de Nietzsche31

27 Após enunciar as afinidades entre o velho Cabot e o pai O’Neill, Louis Sheaffer esclarece

inteligentemente em que medida encontramos em Ephraim uma projeção do dramaturgo: “No essencial, o velho Cabot […] representa mais um dos vários autorretratos do dramaturgo. Ephraim despreza o que é fácil, o que é obtido sem esforço; similarmente, ‘fácil’ era um dos adjetivos mais depreciativos do léxico de O’Neill. Ephraim, assim como o seu criador, é um marido exigente e difícil, e um pai incompetente. Por último, nada era mais verdadeiro para O’Neill que o facto de sofrer de um perpétuo sentimento de isolamento, de não ser compreendido por aqueles que lhe eram mais próximos, outra característica fundamental que partilha com o velho Cabot. Na cena em que Ephraim, ao tentar estabelecer contacto com a nova esposa, procura explicar-se e justificar-se, o estribilho ‘E eu sempre solitário’ pontua o seu discurso. ‘Alguma vez me conhecerás… ou a algum homem ou mulher?’, pergunta ele, desdenhosamente, a Abbie. ‘Não, parece-me que nunca’.” (L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op.cit., p. 130.) Esse sentimento de solidão é também uma realidade a que a mãe de Longa Jornada empresta voz no final do II Ato: “Como isto é solitário! […] Mas porquê, Mãe do Céu, tanta solidão?” E. O’Neill, Jornada para a

Noite, op. cit., p. 111.

28

Essa fascinação revelou-se na composição de obras como The Great God Brown, a primeira peça de O’Neill cuja representação decorre totalmente com máscaras, e Lazarus Laughed, em que centenas de personagens usam máscara, à exceção do protagonista. Vide Margaret Loftus Ranald, “O’Neill, Eugene”, in Mark Hawkins-Dady (ed.), Playwrights: International Dictionary of Theatre – 2, Detroit/London/ Washington DC, St. James Press, 1994, p. 724.

29 Adotamos um aviso de Foucault: “Não, não, eu não estou onde você me espreita, mas aqui de onde o

observo rindo”. Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, trad. Luiz Felipe Baeta Neves, Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1987, p. 20.

30

L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 126.

31

No capítulo de Contour in Time que dedica ao Desejo Sob os Ulmeiros, Travis Bogard detém-se em particular sobre o modo como O’Neill encontrou no pensamento de Friedrich Nietzsche um esquema filosófico capaz de infundir fôlego aos seus interesses fundamentais como dramaturgo. O crítico ocupa-se, por exemplo, com a centralidade da dialética entre forças dionisíacas e os princípios apolíneos. Mais recentemente, também o politólogo John Patrick Diggins abordou a questão da influência de Nietzsche no

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(cujo exemplar o’neilliano estaria coberto de copiosas anotações),32 passando por uma obra de Wilhem Stekel sobre aberrações sexuais, com especial destaque para o caso de uma mãe que seduz o filho, levando-o à loucura.33 Mas das putativas ‘fontes’ às doídas memórias familiares (a vivenda Monte Cristo comprada pelo pai em Nova Londres, os acessos de choro de uma mãe que, viciada em morfina, erra pela casa como uma sombra, etc.) ou às neuroses pessoais do autor vai um curto passo. A esta luz algo impudica, agressiva como o foco de um interrogatório policial, têm-se formulado hipóteses como aquela que identifica no ‘incesto’ que Eben comete com Abbie uma sublimação das fantasias sexuais do irmão do dramaturgo, Jamie, com a mãe. Outro eloquente exemplo: a propósito do infanticídio da peça, biógrafos como Stephen A. Black ventilam a possibilidade de Eben e Abbie constituírem uma projeção do autor e daquela que, à época, era sua mulher, um casal “cuja paixão excluía toda a gente, incluindo os filhos, e de que por fim restavam as suas próprias cinzas”.34 Aplicando esta lógica, Eben é Gene e Abbie é Aggie, bastando trocar o b pelo g para fazer tombar as máscaras.

A biografia pode, contudo, revelar-se um escolho. E a estratégia biografista acaba frequentemente por redundar num procedimento redutor, falho e potencialmente vicioso: ao entrarmos tão depressa nessa noite escura, vemo-nos a dado momento absorvidos na tarefa de procurar, com um escrúpulo de fiscal, as mínimas correspondências entre homem e obra, deixando-se o texto, na sua irredutível autonomia, intocado. Perante uma tal tirania interpretativa na receção da obra dramática de Eugene O’Neill, sentimo-nos tentados a invocar a zaratustriana morte do autor proclamada por Barthes, para quem, no ano de 1968, era tempo de superar a estafada fórmula crítica que implicava ler a poesia de Baudelaire como a expressão do “fracasso

dramaturgo norte-americano. Vide John Patrick Diggins, Eugene O’Neill’s America: Desire Under

Democracy, Chicago/London, The University of Chicago Press, 2007, p. 100 e ss.

32

Vide Brenda Murphy, “Tragedy in the Modern American Theatre”, in Rebecca Bushnell (ed.), A

Companion to Tragedy, West Sussex, Wiley-Blackwell, 2009, p. 492.

33

Vide S.A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy, op. cit., p. 311.

34 Idem, ibidem. Um pouco mais adiante no seu livro, Stephen A. Black volta a ler e a associar o

infanticídio de Desejo Sob os Ulmeiros àquilo que chama “a relutância de O’Neill em se assumir como pai e a ocasional ambivalência do escritor e de Agnes em relação à intrusão de Shane na intimidade do casal”. Idem, p. 313.

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do homem Baudelaire”35 ou a pintura de Van Gogh como o resultado da sua insanidade. Escorado nas experiências dos surrealistas e nas intuições de Mallarmé, de Valéry (segundo o qual o recurso à interioridade do escritor no exercício de interpretação se afigura uma “pura superstição”) ou mesmo de Proust, o semiólogo sepulta a categoria totalitária e castradora do Autor sob uma conceção libertária de escrita, tomada como lugar de aniquilação de toda a origem: “Dar um Autor a um texto é impor a esse texto um mecanismo de segurança, é dotá-lo de um significado último, é fechar a escrita.”36 Para a nossa demanda, talvez mais importante do que o caráter destrutivo da renúncia a essa privilegiada instância literária, a partir da qual a enunciação se esclareceria, se afigure o poder criativo que é conferido à leitura e ao leitor, nos quais o texto encontra a sua própria unidade:

Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas, que entram em diálogo entre si, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor […], é o leitor.37

O ensaísta Jean-Pierre Sarrazac não participaria na implosão da figura do autor, mas, ainda que não despreze a apreciação da dimensão pessoal ou biográfica na hermenêutica textual, chama justamente a nossa atenção para a manifesta insuficiência do procedimento biografista e identifica com precisão o ponto em que este deixa de ser operativo. No ensaio em que se detém sobre a filiação strindbergueriana de O’Neill, o dramaturgo francês faz notar:

A crítica destacou na obra de O’Neill a parte das memórias pessoais e o rastro da sua vida familiar e conjugal, mas faz silêncio sobre o essencial, a saber: o processo existencial e estético através do qual os elementos autobiográficos adquirem forma dramática. Não é negligenciável assinalar que o jovem jornalista de The Straw e Longa Jornada para a Noite constitui um autorretrato do dramaturgo e remete para um doloroso episódio da juventude, mas, por outro lado, seria decisivo estabelecer de que forma e até que ponto essas peças e muitas outras definem uma dramaturgia na primeira pessoa.38

35

Roland Barthes, “A Morte do Autor”, in O Rumor da Língua, trad. António Gonçalves, Lisboa, Edições 70, 1987, p. 50.

36 Idem, p. 52. 37 Idem, p. 53.

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No caso específico de Eugene O’Neill, no qual a categoria fundamental da ‘vida’ parece adquirir um relevo muito particular, o luxuriante arquivo biográfico ameaça, a dada altura, tornar-se um esquife que rasura outras possibilidades de vida interpretativa e crítica. Assemelha-se àqueles túmulos de sociedades antigas nos quais, juntamente com o defunto, se depunham roupas, vasos, armas, vinho, comida.

Condomínios fechados de luxo que não deixam, por isso, de ser tumbas. Evidentemente,

como adverte uma expressão proverbial alemã, convém não deitar fora o bebé com a

água do banho. Por um lado, o argumento clínico revela-se perverso, além de

imensamente frágil: se, como afirmava Sartre, “Paul Valéry é um intelectual pequeno-burguês, mas nem todo o intelectual pequeno-burguês é Paul Valéry”,39 também Eugene O’Neill pode padecer de um distúrbio edipiano, mas nem todo aquele que apresenta essa particular perturbação de personalidade é Eugene O’Neill (de onde se infere que nem a condição pequeno-burguesa explica a obra do filósofo francês nem as neuroses edipianas dão conta das peças do dramaturgo norte-americano).40 Por outro lado, devemos sentir-nos gratos por algumas abordagens de cariz biográfico não denotarem esta debilidade determinista nem enfermarem de uma ostensiva propensão intrusiva. É o caso de várias observações e relatos que Louis Sheaffer incluiu na sua biografia de O’Neill. Manifestamente, há luzes que encandeiam, que impedem que se veja e, nessa medida, obscurecem tudo (como sabia Heidegger),41 e há luzes, ainda que ténues ou

39 Jean-Paul Sartre, Questions de méthode, Paris, Gallimard, 1986, p. 55.

40 Seguimos aqui os termos da argumentação de António M. Feijó sobre a famigerada histero-neurastenia

de Fernando Pessoa: “Há uma teoria que afirma que a heteronomia é a fabricação de um histérico-neurasténico, ou, em alternativa, de uma personalidade múltipla. Este argumento clínico – usado, aliás, pelo próprio Pessoa a propósito de si mesmo – é débil, e facilmente desmontável. É o mesmo tipo de argumento que críticos marxistas vulgares usavam para atacar um autor como Paul Valéry, classificando-o cclassificando-omclassificando-o ‘pequenclassificando-o-burguês’. Dclassificando-o mesmclassificando-o mclassificando-odclassificando-o que Pessclassificando-oa é um histéricclassificando-o-neurasténicclassificando-o, Valéry é um pequeno-burguês, e a pequena burguesia de Valéry determinaria o que escreve. Sartre arrumou esta tese de modo expedito: ‘Valéry pode ser um pequeno-burguês, mas nem todo o pequeno-burguês é Valéry’. Ser pequeno-burguês não me torna capaz de escrever como Valéry, do mesmo modo que ter personalidade múltipla não torna ninguém capaz de escrever como Pessoa. Na maioria dos casos, aqueles que sofrem de tais distúrbios padecem de um sofrimento atroz que os torna incapazes de criar. […] O argumento clínico é, pois, perverso, como são genericamente os argumentos clínicos, porque inoculam medo.” António M. Feijó, “Fernando Pessoa, Romance”, in Pedro Sobrado (ed.), Turismo Infinito:

Manual de Leitura, Porto, Teatro Nacional São João, 2014, p. 27.

41 “A luz do público obscurece tudo.” Martin Heidegger apud Hannah Arendt, Homens em Tempos

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vacilantes, que esclarecem alguma coisa. Avançamos com um exemplo útil, que prepara o caminho para a tematização, no terceiro capítulo, da nuclear irradiação simbólica das

pedras na mecânica dramática de Desejo Sob os Ulmeiros. O passo abaixo transcrito

remete-nos para a infância de O’Neill, quando passava os Verões na Monte Cristo Cottage, numa altura em que, como o autor escreverá mais tarde no verso de uma fotografia, “ainda não tinha a mania do teatro, mas era um incansável desenhador de árvores e navios”.42

Além das grandes árvores, uma outra característica da propriedade dos O’Neill que contribuiria para o tom e a imagística de Desejo Sob os Ulmeiros era um velho e maciço muro “seco” com algumas centenas de metros de comprimento, construído com pedras e pedregulhos da região. De facto, na época em que a família O’Neill aí se instalou, a zona era ainda muito pedregosa, e uma velha fotografia de Eugene mostra-o sentado numa grande pedra nas proximidades da casa. A profunda impressão que o muro e o terreno pedregoso causaram ao rapaz reemergiria anos mais tarde, quando o dramaturgo comprou uma propriedade em Ridgefield, no Connecticut, onde havia um muro semelhante ao do quintal traseiro da vivenda Monte Cristo. O’Neill escreveu Desejo Sob os Ulmeiros em Ridgefield, e, por essa altura, os muros tinham passado a simbolizar para ele a vida frugal e árdua dos agricultores da Nova Inglaterra. “Aqui… pedras amontoadas no chão… pedras sobre pedras… a fazer muros de pedra”, diz um dos filhos em

Desejo Sob os Ulmeiros. E o velho Cabot exprime a mesma ideia quando afirma: “Pedras.

Apanhei-as, fiz com elas muros. Podes contar os anos da minha vida nesses muros, cada dia uma pedra, monte abaixo e monte acima, a vedar os campos que eram meus…”43

42 Eugene O’Neill apud Louis Sheaffer, O’Neill: Son and Playwright: Volume I, New York, Cooper

Square Press, 2002, p. 61.

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2. Herança clássica

Limiar

Somos todos gregos.

PERCY BYSSHE SHELLEY

“A águia está sempre no futuro.” Este passo de Píndaro, tão amado por George Steiner, aplica-se aos grandes textos que nos foram legados pelos antigos, nomeadamente às tragédias clássicas, textos que contêm ainda a gramática do que somos, obras cuja enérgeia se tem revelado, através dos séculos, assombrosamente inextinguível. A máxima pindariana não afirma apenas o conteúdo de uma das definições que Italo Calvino forneceu de clássico – “Um clássico é um livro que nunca acaba de dizer o que tem a dizer”44 –, mas diz-nos que provavelmente nunca chegaremos a saber o que tem para dizer. “Ninguém – afirma George Steiner, numa entrevista em que faz o balanço de todo o seu percurso – compreendeu uma palavra de Ésquilo, de Sófocles, de Eurípides.”45 A obra está sempre em excesso, vai continuamente adiante de nós, abrindo caminho para o nosso devir. Os antigos são, afinal, vindouros. Uma forma de captarmos o voo da águia, ou de lhe seguirmos, por um instante, a trajetória, é estudar as transfigurações e metamorfoses com que assoma e nos visita, segundo as ignotas leis de uma qualquer onda mnémica.46 George Steiner empreendeu esse trabalho em Antígonas, obra monumental condenada a um envelhecimento precoce, uma vez que a história das apropriações do arquétipo de Antígona se assemelha a um novelo vivo, que não cessa de crescer e se adensar. Nesse livro para sempre incompleto, tentou Steiner percecionar as formas em que a Antígona de Sófocles se desdobra e progride, concluindo: “O mito da Antígona espia-nos e segreda-nos que é o alfabeto da nossa nova experiência, que esta última será espontânea

44

Italo Calvino, Porquê Ler os Clássicos?, trad. José Colaço Barreiros, Lisboa, Teorema, 2009, p. 11.

45 G. Steiner/R. Jahanbegloo, Quatro Entrevistas com George Steiner, op. cit., p. 110.

46 O conceito pertence a Aby Warburg e encontramo-lo tematizado numa obra do ensaísta italiano

Roberto Calasso. Vide Roberto Calasso, A Literatura e os Deuses, trad. Clara Rowland, Lisboa, Gótica, 2003, pp. 29-48.

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e imediata e mais fácil de viver dada a presença da mitologia, presença latente, vaso de prata onde se vazarão o pensamento e a vida.”47

Salvaguardadas, evidentemente, todas as distâncias, este nosso segundo capítulo configura um muito parcelar e provisório ato de observação do voo de uma águia – o

Hipólito, de Eurípides – sobre um território inóspito: Desejo Sob os Ulmeiros, texto

dramático que se inscreve na paisagem da tradição mítico-religiosa do puritanismo, que, do século XVII em diante, se enraizou nessa árida Jerusalém chamada Nova Inglaterra, e cuja importância no estabelecimento da ideia americana não pode ser menosprezada, como demonstrou Alexis de Tocqueville em A Democracia na América.48 Poucas paisagens se nos afigurariam tão diversas do panorama ático quanto esta, no Connecticut ou no Maine de Oitocentos… Em todo o caso, estamos em crer que, mais do que de peças contemporâneas como They Knew What They Wanted de Sidney Howard ou Birthright de T.C. Murray – textos em que alguns biógrafos e críticos encontraram paralelos potencialmente incómodos49 –, é, em grande medida, do ancestral arsenal grego – do Hipólito, mas também do mito de Édipo e da Medeia euripidiana – que o dramaturgo norte-americano de 36 anos extrai a explosiva perigosidade que atravessa Desejo Sob os Ulmeiros.

47 G. Steiner/R. Jahanbegloo, Quatro Entrevistas com George Steiner, op. cit., pp. 111-112.

48 Transcrevemos apenas um passo da obra de Tocqueville, embora toda a primeira parte do Livro I (Leis

e Costumes) se revista de interesse para compreender a história, a natureza e o alcance ideológico da

tradição puritana nos Estados Unidos da América, pano de fundo de Desejo Sob os Ulmeiros: “[Os puritanos] furtavam-se às doçuras da pátria [Inglaterra] obedecendo a uma necessidade puramente intelectual; expondo-se às misérias inevitáveis do exílio, queriam fazer triunfar uma ideia. Os emigrantes ou, como eles mesmos se chamavam tão apropriadamente, os peregrinos (pilgrims), pertenciam àquela seita de Inglaterra que a austeridade de princípios fizera receber o nome de puritana. O puritanismo não era apenas uma doutrina religiosa; ele também se confundia em vários pontos com as teorias democráticas e republicanas mais absolutas. Daí lhe vieram seus mais perigosos adversários. Perseguidos pelo governo da mãe-pátria, feridos no rigor de seus princípios pelo andamento quotidiano da sociedade no seio da qual viviam, os puritanos buscaram uma terra tão bárbara e tão abandonada pelo mundo para que nela ainda pudessem viver à sua maneira e orar a Deus em liberdade.” Alexis de Tocqueville, A Democracia na

América: Leis e Costumes (Livro I), trad. Eduardo Brandão, São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 41.

49

Se Louis Sheaffer aventava a possibilidade de Desejo ser um “plágio inconsciente” de They Knew What

They Wanted, Travis Bogard define Birthright como uma obra de uma “centralidade formativa” na

composição da peça de O’Neill. L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 126. T. Bogard, Contour

in Time, op. cit., disponível em www: <URL: http://www.eoneill.com/library/contour/triumvirate1/desire.

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Esta extorsão lembra-nos um poema em que Manuel António Pina se refere à literatura como uma “arte escura de ladrões que roubam a ladrões”.50 Talvez O’Neill se tenha revelado mais original quando menos o foi. Ou então é à palavra ‘original’ que precisamos de devolver a sua aceção primeira: relativo às origens. Neste caso, origens do teatro (mas também origens da América e do seu puritano ideário), porque Desejo

Sob os Ulmeiros – obra que “estabelece O’Neill como dramaturgo de verdadeiro génio e

representa o auge do seu primeiro período de composição”51 – é altamente devedor das tragédias clássicas. Este capítulo visa o levantamento dessa dívida soberana – uma dívida que, como se procurará demonstrar, tem em Hipólito, Fedra e Teseu os principais credores.

2.1. Uma tragédia por escrever

Ao desejar possuir o mundo, a América perdeu a alma.

EUGENE O’NEILL

No final do segundo volume da biografia que nos ofereceu de Eugene O’Neill, Louis Sheaffer introduz um pequeno episódio, aparentemente banal ou ocioso. Trata-se de um daqueles fait-divers que, sob determinada luz, adquirem contornos de oráculo. O dramaturgo fora, uma vez mais, assistir à representação de The Iceman Cometh [1946], peça escrita no trágico ano de 1939, mas estreada apenas no pós-guerra, em Nova Iorque, corria o ano de 1946. Foi considerada por Harold Bloom como uma das duas obras-primas de O’Neill52 e, em Contour in Time, Travis Bogard classificou-a como “provavelmente a mais ‘grega’ das suas peças, construída em torno de um coro central”.53 Entre a assistência, encontrava-se um casal grego: a célebre atriz Katina

50 Manuel António Pina, “Emet”, in Poesia, Saudade da Prosa: Uma Antologia Pessoal, Lisboa, Assírio

& Alvim, 2011, p. 72.

51

Margaret Loftus Ranald, “From Trial to Triumph: The Early Plays”, in Michael Manheim (ed.), The

Cambridge Companion To Eugene O’Neill, Cambridge, Cambridge University Press, 1998, p. 65.

52

Na ótica, canónica, do crítico norte-americano, a segunda obra-prima de O’Neill é Longa Jornada para

a Noite. Vide Harold Bloom, “Introduction”, in Eugene O’Neill’s “Long Day’s Journey Into Night”,

Philadephia, Chelsea House Publishers, 1987, p. 2.

53 T. Bogard, Contour in Time, op. cit., disponível em www: < http://www.eoneill.com/library/contour/

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Paxinou54 e o seu marido, o encenador e também ator Alexis Minotis, recém-chegados de Atenas. O biógrafo faz constar que, durante o serão, O’Neill não parou de se contorcer no seu lugar, tartamudeando imprecações contra o encenador do espetáculo, Eddie Dowling. No final, o casal grego soube granjear o apreço do dramaturgo, solidarizando-se com O’Neill e somando ao desgosto deste o seu próprio lamento. Escreve Sheaffer que, no estabelecimento de uma tal empatia, O’Neill contou que se fizera dramaturgo ao devorar os clássicos gregos, após o que Katina Paxinou e Alexis Minotis lembraram que, quando haviam tomado parte na montagem de Desejo Sob os

Ulmeiros, um crítico ateniense qualificara O’Neill como “o primeiro dramaturgo depois

de Sófocles a possuir o sentido clássico de tragédia”.55

Seja qual for o grau de acerto contido num tal encómio, pode imaginar-se o efeito destas palavras no dramaturgo, mesmo tratando-se já de um autor consagrado por inúmeros Pulitzer e pelo cobiçado Prémio Nobel (1936). O’Neill não acusava um défice de reconhecimento ou aplauso, mas antes uma repetida falta de atenção da crítica em relação ao que entendia ser o núcleo sensível de todo o seu projeto dramático. Em 1925, escreve ao crítico e investigador Arthur Hobson Quinn:

Sou mais negligenciado precisamente no ponto em que mais me empenhei – como um poeta que tem trabalhado sobre a oralidade para desenvolver ritmos de uma beleza original onde aparentemente não há beleza […] e ver a nobreza transfiguradora da tragédia – tão próximo do sentido grego quanto possível – naquelas que parecem ser as mais vis e ignóbeis existências.56

Nesta mesma carta, interessantemente, O’Neill expressa os termos da afinidade da sua demanda poético-teatral com a tragédia, tal como foi consagrada por Ésquilo, Sófocles e Eurípides, e com a peculiar Weltanschauung que a informa, nomeadamente a noção de uma desesperada impotência humana face aos deuses.

Estou permanente e intensamente consciente da Força que está por detrás de tudo – o Destino, Deus, o nosso passado biológico a engendrar o nosso presente, o que lhe quisermos chamar: Mistério, certamente – e da eterna tragédia do Homem, que resulta do seu glorioso combate

54

Galardoada poucos anos antes com o Óscar de Melhor Atriz Secundária pela sua participação em Por

Quem os Sinos Dobram, de Sam Wood, Katina Paxinou integraria, em 1947, o elenco da adaptação

cinematográfica de O Luto vai bem com Electra, realizada por Dudley Nichols.

55 Apud L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 591.

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autodestrutivo para se fazer expressar na Força, em vez de, como um animal, ser um incidente infinitesimal da Sua expressão.57

Esta confissão pessoal – ou declaração programática – foi escrita em Abril de 1925, escasso meio ano após a estreia de Desejo Sob os Ulmeiros, uma peça que Travis Bogard não hesitou em qualificar como “a primeira tragédia de relevo a ser escrita na América”.58 Note-se que este complemento circunstancial de lugar – “na América” – é tão importante quanto o rótulo “tragédia”, tendo em conta que o desígnio de O’Neill não passa apenas pela reabilitação da antiga forma trágica praticada na Atenas do século V a.C., mas também pela expressão do conteúdo trágico americano. Já em 1922, reagira intempestivamente ao ser confrontado com a objeção de que a tragédia era estranha à índole americana:

Suponhamos que um dia, subitamente, seríamos capazes de ver com inteira clareza o verdadeiro valor de todo o nosso triunfante e atroador materialismo; que seríamos capazes de ver os custos e o resultado em termos de verdades eternas! Que tragédia colossal e absolutamente americana não seria… A tragédia não é natural ao nosso país? Mas nós somos uma tragédia, a tragédia mais pavorosa jamais escrita ou por escrever!59

Desejo Sob os Ulmeiros é o anúncio dessa “tragédia por escrever”. Inscrita no

cenário da Nova Inglaterra de 1850, e projetada no horizonte da febril corrida ao ouro da Califórnia e dos seus sonhos de um veloz enriquecimento, a peça “prefigura – como nos diz Margaret Loftus Ranald, uma das mais destacadas autoridades na obra de Eugene O’Neill – O Luto vai bem com Electra [Mourning Becomes Electra, 1931] e a

57 Idem, ibidem. Dada a relevância deste passo, transcrevemos o original inglês: “I’m always acutely

conscious of the Force behind – Fate, God, our biological past creating our present, whatever one calls it: Mystery, certainly – and of the one eternal tragedy of Man in his glorious, self-destructive struggle to make the Force express him instead of being, as an animal is, an infinitesimal incident in its expression.”

58 T. Bogard, Contour in Time, op. cit. 59

L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 441. Num ensaio em que se detém sobre os esforços de Maxwell Anderson, Eugene O’Neill e Arthur Miller por reconstituir a tragédia no quadro do teatro moderno norte-americano, Brenda Murphy chama a nossa atenção para uma ironia histórica: “É uma das ironias da história do teatro americano que, não se considerando, de uma forma geral, a visão trágica como característica da visão americana da vida, as peças mais significativas do repertório clássico americano sejam trágicas na sua visão, mesmo quando não exemplificam todas as convenções associadas ao género.” B. Murphy, “Tragedy in the Modern American Theatre”, op. cit., p. 503.

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totalidade da sua saga inacabada ‘A Tale of Possessors, Self-Dispossessed’, demonstrando a natureza obstinada e ávida do Grande Mito Americano”.60 Desejo Sob

os Ulmeiros é isso mesmo: a história de gente voraz que acaba de mãos vazias. Ou,

como o próprio O’Neill registou numa carta, “uma tragédia de gente possessiva – o patético desejo do homem de construir o seu paraíso na terra, satisfazendo o seu sentido de poder mediante a posse de terra, gente, dinheiro.”61 Não por acaso, a obra de O’Neill suscitou recentemente o interesse de um politólogo e historiador político: John Patrick Diggins, autor de Eugene O’Neill’s America: Desire Under Democracy. No capítulo que dedica especialmente à peça de 1924, Diggins discorre sobre a problemática da propriedade privada e da democracia moderna, e correlaciona-a com a “luxúria da posse” que define as personagens de O’Neill, concluindo: “O teatro torna-se o lugar da perpétua questão americana: quem possui o quê, quando, como e porquê.”62

Curiosamente, ao revelar a face negra do moderno american dream, Eugene O’Neill investiga e apropria-se das tragédias clássicas e dos velhos mitos que lhes subjazem. Os seus mais devotos leitores nem sempre coincidem na perceção das analogias e correspondências: Louis Sheaffer menciona o Hipólito de Eurípides, como faz, aliás, Edgar F. Racey, um dos primeiros a abordar a estrutura trágica de Desejo Sob

os Ulmeiros;63 por seu turno, Stephen A. Black, numa abordagem vincadamente psicanalítica, considera que “os temas edipianos não poderiam ser mais explícitos”,64 acrescentando ainda que o infanticídio produz um deslocamento do centro dramático e simbólico da peça de O’Neill, fazendo emergir o obscuro arquétipo da Medeia; Margaret Loftus Ranald descreve o relacionamento entre Eben e Abbie como “uma união edipiana, com tonalidades fedrianas”;65 Brenda Murphy inverte os termos desta correlação de forças, descrevendo Desejo como uma peça “primeiramente baseada no mito de Hipólito e Fedra”, mas também alusiva aos arquétipos de Édipo e Medeia…66 A nosso ver, um tal desencontro não implica que estejamos perante hipóteses mutuamente

60 M. L. Ranald, “From Trial to Triumph: The Early Plays”, op. cit., p. 66. 61

In T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 194.

62

J. P. Diggins, Eugene O’Neill’s America, op. cit., p. 97.

63

Vide Edgar F. Racey Jr., “Myth as Tragic Structure in Desire Under the Elms”, in John Gassner (ed.),

O’Neill: A Collection of Critical Essays, New Jersey, Prentice-Hall, 1964, pp. 57-61.

64 S. A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy, op. cit., p. 308. 65 M. L. Ranald, “From Trial to Triumph: The Early Plays”, op. cit., p. 67. 66 B. Murphy, “Tragedy in the Modern American Theatre”, op. cit., p. 496.

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exclusivas, mas que O’Neill adota na composição de Desejo Sob os Ulmeiros o método do bricolage que, segundo Claude Levi-Strauss, define os próprios mitos,67 operando a partir de sobras e fragmentos, e dando provas de uma intuitiva agilidade na gestão do seu arquivo mítico. Uma destreza bem diversa do constrangimento que Travis Bogard detetou na sintaxe simbólica da peça anterior, Bound East for Cardiff, e da trilogia posterior O Luto vai bem com Electra.

Embora subscrevamos, com Bogard, a tese de que as magnéticas ressonâncias trágicas contidas no enredo e nas personagens de Desejo não decorrem de uma “imitação detalhada” e de que O’Neill não segue uma “receita”, tendemos, todavia, a divergir no ponto em que afirma que “nem o Hipólito nem a Medeia são uma fonte precisa da história de O’Neill”.68 Tudo dependerá efetivamente do que se entenda por ‘fonte’, mas, se a aproximação à Medeia se revela, em determinado ponto, problemática, o parentesco com o Hipólito está longe de ser da ordem da referência indireta ou da sugestão. Aquela que tem sido cotada como “a mais sofocliana das peças de Eurípides”69 é uma fonte – nascente, origem, matriz –, e isso em nada diminui os méritos de O’Neill. Como se tentará demonstrar, o Hipólito está não apenas fisicamente presente na estrutura do enredo e, em parte, no desenho das personagens, mas também

espiritualmente, na secreta força propulsora que orienta o drama.

2.2. Núpcias de morte

NORMAN BATES: A boy’s best friend is his mother. ALFRED HITCHCOCK, Psycho

Uma autoridade em psicanálise como Stephen A. Black menciona os longos anos em que Eugene O’Neill pareceu “odiar o pai tanto quanto amá-lo”. Além disso, informa-nos que “o acontecimento mais importante” da juventude de O’Neill foi um golpe de contornos edipianos: a descoberta, por volta dos catorze anos, de que a mãe se tornara viciada em morfina na sequência do seu parto:

67 Vide Claude Lévi-Strauss, O Pensamento Selvagem, Campinas SP, Papirus, 2005, pp. 32 e ss. 68 T. Bogard, Contour in Time, op. cit.

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Foi uma descoberta semelhante à descoberta de um Édipo que é celebrado em duas peças de Sófocles; numa delas, Sófocles imaginou o processo de descoberta, e na outra, as consequências da descoberta. O jovem Eugene não descobriu que matou o pai e desposou e gerou filhos com a mãe, mas ficou a saber que o nascimento do seu eu de quase cinco quilos provocou na sua mãe sofrimento e depressão prolongados, em virtude dos quais lhe foi prescrita morfina.70

No que toca a Desejo Sob os Ulmeiros, gostaríamos de começar por apreciar a perspetiva edipiana, mas diversamente do que fazem os praticantes da modalidade psicanalítica, que a adotam para encastrar o próprio Eugene O’Neill no molde de Édipo. Parece-nos ser chegada a hora de deixar para trás uma hermenêutica centrada no autor e na sua experiência – o nosso propósito não consiste em entrar na mente de O’Neill e aí nos instalarmos como se estivéssemos em casa –, privilegiando antes o texto dramático na sua irrecusável imanência ou autonomia. Ora, no Desejo Sob os Ulmeiros, o padrão edipiano insinua-se sub-repticiamente logo na primeira cena, quando Eben convoca os irmãos para a ceia, fazendo soar ruidosamente uma sineta. De imediato ficamos a saber que é ele quem se ocupa da cozinha, quem prepara as refeições aos dois irmãos, quem os chama para a mesa. “A ceia está pronta”, “a ceia está a esfriar” [I Parte, Cena 1] – chamamentos e advertências que, apesar de infetados pelo rancor, esboçam contornos maternais, sobretudo no cenário oitocentista da Nova Inglaterra. A mãe morreu, e Eben manifesta menos a intenção de ocupar o seu lugar, substituindo-a funcionalmente na esfera doméstica, do que a vontade de com ela se identificar, ou melhor, o desejo de

nela se identificar a si mesmo – um anseio de fusão e, ipso facto, de recomposição da

mãe falecida. Assumir os seus afazeres, o seu espinhoso quotidiano, é uma forma de Eben a conhecer – termo que, tanto no Português como no original inglês (to know), possui uma aceção bíblica peculiar (ter relações sexuais com),71 ressonância que não está, de modo algum, ausente de um contexto em que as personagens usam e abusam da

70

Stephen A. Black, “Celebrant of Loss: Eugene O’Neill 1888-1953”, in Michael Manheim (ed.), The

Cambridge Companion To Eugene O’Neill, Cambridge, Cambridge University Press, 1998, p. 6.

71 “Nas línguas semíticas (e nos LXX), o verbo ‘conhecer’ é usado em sentido especial, indicando união

sexual. Esse sentido, que não existe no grego profano, foi, sob influência da Bíblia, adotado por diversas línguas indo-germânicas, sendo conservado até hoje em traduções modernas da Bíblia”. In A. Van Den Born (org.), Dicionário Enciclopédico da Bíblia, Petrópolis, Vozes, 1992, p. 288.

Referências

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