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Segundo o artigo 6º da Constituição Federal, o direito à alimentação constitui um direito social (BRASIL, 1988).

Nessa lógica, Ribeiro, Gusmão e Custódio (2018, p. 105) denominam a referida previsão constitucional como o direito à alimentação adequada e o definem como

[...] a garantia de acesso a alimentos em quantidade e qualidade condizentes com as características biológicas e culturais de cada indivíduo, não se limitando à oferta de valores nutricionais mínimos, abrangendo também a necessidade de se reduzir continuamente os riscos proporcionados por contaminantes físicos, químicos e biológicos.

Do mesmo modo, o artigo 2º da Lei n. 11.346/2006 evidencia que o direito à alimentação adequada, diretamente vinculado à dignidade da pessoa humana, visa garantir a “segurança alimentar e nutricional” do indivíduo (BRASIL, 2006).

Isso posto, cabe acentuar que, de acordo com o artigo 6º, inciso I, do ​Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 1990), “a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos” constitui um direito básico do consumidor.

Esse dispositivo faz parte de um sistema pautado nos princípios da confiança e da segurança que, com o intuito de proteger o consumidor, impõe a todos os envolvidos no mercado de consumo o dever de assegurar a qualidade dos produtos e dos serviços (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2007).

Assim sendo, o direito a uma alimentação segura e saudável não se limita a mera oferta de alimentos, é necessário também assegurar a qualidade desses produtos, de modo que o consumidor tenha o seu direito básico de proteção à saúde e à segurança respeitado.

Ocorre que, como já foi mencionado, o relatório do PARA demonstrou que, em um universo de 12.051 amostras de 25 alimentos de origem vegetal, em que pese 9.680 (80,3%) tenham sido apontadas como satisfatórias, somente 5.062 (42,0%) estavam livres de resíduos de agrotóxicos, haja vista que as 4.618 amostras restantes (38,3%) apresentaram resíduos em quantidades iguais ou menores ao limite máximo de resíduos, sendo que apenas em um alimento foram encontrados diversos tipos de agrotóxicos, como, por exemplo, o pimentão que contava com 101 espécies (ANVISA, 2016).

Apesar da escassez de estudos que avaliem a ingestão de alimentos contaminados a longo prazo e a múltipla exposição que o consumidor está submetido (LOPES; ALBUQUERQUE, 2018), tendo em vista que ele não consome apenas um alimento, mas diversos ao longo de um único dia, restou claro que existem evidências científicas suficientes para demonstrar que o emprego de agrotóxicos constitui prática perigosa, pois é capaz de provocar malefícios à saúde humana.

Nessa perspectiva, o dispositivo 8º do Código Consumerista afirma que os produtos e os serviços inseridos no mercado de consumo não devem acarretar riscos à saúde ou à segurança dos consumidores, sendo que o desatendimento deste mandamento configura o defeito ou, como também é chamado, “o vício de qualidade por insegurança” (BRASIL, 1990; BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2007, p. 114).

Frente a essa lógica, ​o artigo 12, ​§ 1°, do CDC (BRASIL, 1990) define o que seria um produto defeituoso

o produto é defeituoso ​quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - sua apresentação;

II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi colocado em circulação.

Dessa maneira, faz-se necessário esclarecer o que seria segurança, uma vez que inexiste bem ou serviço integralmente seguro, mas há aqueles que demandam a atenção do legislador, pois extrapolam o limite da normalidade, bem como da antecipação dos riscos (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2007).

Tendo isso em vista, Benjamin, Marques e Bessa (2007) classificam um produto ou serviço em três categorias: periculosidade inerente, periculosidade exagerada e periculosidade adquirida.

No caso da periculosidade inerente, os bens de consumo possuem naturalmente um risco embutido que os torna capaz de provocar acidentes (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2007). Entretanto, por se tratar de algo intrínseco, a periculosidade é “normal e previsível, [...], ou seja, está em sintonia com as expectativas legítimas dos consumidores, um exemplo seria uma faca de cozinha (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2007, p. 117).

A periculosidade adquirida, por sua vez, é observada quando um produto ou serviço apresenta riscos em virtude de algum defeito decorrente da sua fabricação, concepção ou comercialização, de modo que, por não ser algo natural do bem de consumo, neste caso, a periculosidade é imprevisível para o consumidor, sendo pouco útil qualquer advertência, pois esta não eliminaria a capacidade de provocar danos (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2007).

Acerca desse ponto, vale destacar que, no campo da proteção à saúde e à segurança do consumidor, aborda-se a ideia de expectativas legítimas de um produto ou serviço que são verificadas “quando, confrontadas com o estágio técnico e as condições econômicas da época, mostram-se plausíveis, justificadas e reais” (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2007, p. 116). A partir do momento que esse parâmetro não é observado, a periculosidade deixa de ser inerente e se torna adquirida.

Já a periculosidade exagerada seria uma espécie da periculosidade inerente, mas, diferente da segunda, o seu potencial para provocar danos é tão devastador que nem mesmo a disponibilização de informação adequada ao consumidor seria suficiente para reduzir os riscos, sendo que em virtude “da desproporção entre custos e benefícios sociais” esse tipo de produto não poderia ser inserido no mercado de consumo, “é o caso de um brinquedo que apresenta grandes possibilidades de sufocação da criança” (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2007, p. 119).

Uma breve análise das três espécies de periculosidade evidencia que os alimentos com agrotóxicos seriam exemplos de bens de consumo de periculosidade adquirida, uma vez que, teoricamente, não deveriam desencadear sérias consequências à saúde humana, mas isso ocorre em virtude da sua produção acrescida de substâncias químicas que o tornam um produto defeituoso.

Por outro lado, seria possível também relacionar os alimentos acrescidos de agrotóxicos com a periculosidade exagerada, visto que, considerando que os custos que decorrem do potencial danoso do produto não compensam os benefícios, bem como que qualquer informação mostra-se irrelevante para abrandar os riscos, esses alimentos nem mesmo deveriam ser inseridos no mercado de consumo.

De qualquer forma, resta claro que o alimento com agrotóxico não constitui um bem de consumo seguro. Ora, se, em tese, os cidadãos deveriam desfrutar de uma alimentação adequada, a qual está vinculada à ingestão de frutas, verduras e hortaliças, porém, diariamente, consomem produtos capazes de desencadear diversas consequências negativas a sua saúde a longo prazo, há a configuração de um produto com defeito e por conseguinte, um nítido desrespeito ao direito a uma alimentação adequada que perpassa não somente a dignidade da pessoa humana, mas também o direito à proteção da saúde e da segurança do consumidor.

Neste capítulo, já foi demonstrado que o modelo agrícola no qual o Brasil está inserido tem como base o emprego massivo de agrotóxicos, agora, cabe perceber de que forma esse desrespeito à legislação consumerista é perpetuado, uma vez que aquele que deveria proteger o consumidor acaba sendo o maior contribuinte para a conservação do ciclo vicioso.

3 A ATUAÇÃO ESTATAL FRENTE AOS AGROTÓXICOS

É evidente que o progresso tecnológico trouxe benefícios ao facilitar diversos procedimentos cotidianos, mas, há que se lembrar que esse desenvolvimento também está acompanhado de malefícios que são denominados de riscos (FERREIRA, 2011).

Esses riscos, também chamados de incertezas fabricadas, isto é, incertezas imensuráveis que são acentuadas pelo desenvolvimento tecnológico e pelas rápidas respostas sociais, são caracterizados por serem atemporais, invisíveis e transnacionais, sendo um aspecto inerente à sociedade de risco e que precisa ser administrado (BECK, 2006; BECK, 2011).

Por esse motivo, Beck (2011) afirma que é necessário considerar a incalculabilidade e o potencial da ameaça no debate sobre a atuação no presente e no futuro. Contudo, torna-se difícil concretizar esse mecanismo se os riscos não são reconhecidos socialmente, haja vista que, enquanto “bens de rejeição”, os riscos têm a sua existência negada até que haja inequívoca prova em contrário (BECK, 2011, p. 41).

Ocorre que, em razão das suas características, se os riscos não forem debatidos, mais cedo ou mais tarde, eles alcançarão até mesmo aqueles que os produziram ou com eles obtiveram retorno econômico, é o que Beck (2011) denomina de efeito bumerangue.

Como exemplo do efeito bumerangue, é possível citar o aumento do emprego de fertilizantes e de insumos químicos entre os anos de 1951 e 1983 na Alemanha Ocidental, o qual, além de ser responsável pelo aumento da produtividade, provocou a redução da diversidade da flora e da fauna, com a inclusão de diversas espécies nas listas de ameaça de extinção, o que afetou diretamente a própria produção agrícola e evidenciou uma contradição: o progresso tecnológico é impulsionado pelos interesses econômicos, mas os danos que dele decorrem são capazes de dizimar tudo que gera o lucro, bem como aquele que lucra (BECK, 2011).

Soma-se a esse contexto o paradigma da tecnociência, caracterizado, sobretudo, pela alteração da ordem entre investigação científica e aplicação técnica, uma vez que a pesquisa passa a ser realizada com finalidades, geralmente econômicas, previamente estabelecidas (PARDO, 2015). Esse novo paradigma influencia o Direito e as decisões políticas que já estão fragilizados pela incerteza que decorre da ciência, a qual deixou de ser uma base segura para se tornar uma fonte de probabilidades (PARDO, 2015).

São nessas condições que a questão dos agrotóxicos empregados nos alimentos deve ser analisada. Inseridos na agricultura com amplo apoio do Estado nas décadas de 60 e 70, os agrotóxicos e sua viabilidade, recorrentemente, são tema de debates (PELAEZ; TERRA; SILVA, 2010; LAZZARI; SOUZA, 2017; SANTILLI, 2009).

Como cediço, a exposição aos agrotóxicos pode desencadear efeitos à saúde, os quais são classificados em agudos, ou seja, aquelas consequências que aparecem rapidamente, e crônicos, os quais apenas são detectados após exposições prolongadas à pequenas quantidades de agrotóxicos (INCA, 2019).

Quanto aos efeitos crônicos, embora esse aspecto não seja analisado tão profundamente quanto deveria ser (LOPES; ALBUQUERQUE, 2018), existem diversas evidências que apontam para a possibilidade dos agrotóxicos desencadearem sérios danos à saúde humana.

Nesse sentido, destaca-se que o INCA (2019), com base na classificação realizada pela ANVISA, afirma que o glifosato e o 2,4-D, os dois principais agrotóxicos comercializados no Brasil (BRASIL, 2018), são carcinogênicos. Apesar disso, esses agrotóxicos não são analisados pelo PARA, pois, segundo a ANVISA (2016), por exigirem método específico de análise, o trabalho laboratorial seria sobrecarregado.

De igual modo, existem estudos que demonstram que a exposição a um nível baixo de acefato, quarto agrotóxico mais comercializado no Brasil (BRASIL, 2018), pode provocar consequências ao organismo humano. Inclusive, a própria ANVISA (2009) já reconheceu que o acefato, enquanto organofosforado, possui capacidade para desencadear distúrbios cognitivos e neuropsiquiátricos, bem como que as crianças podem ser mais vulneráveis, sendo que a exposição no período de desenvolvimento neurocomportamental é capaz de provocar alterações definitivas. Ainda assim, o acefato, proibido na União Europeia desde 2003 (BOMBARDI, 2017), continua com o registro ativo no Brasil.

Por constituir verdadeiro defeito do produto e por conseguinte, uma violação à proteção do consumidor, a utilização dos agrotóxicos deveria ser repensada.

Em que pese o Direito tenha sido impactado pela sua nova relação com a ciência, o que, somado à influência científica-técnica-econômica pode tornar a atuação estatal mais dificultosa (PARDO, 2015), é necessário reconhecer que o consumo de alimentos com agrotóxicos pelo ser humano constitui um risco, o qual, por todas as características elencadas, deve ser cuidadosamente gerido.

Em uma sociedade de risco e de consumo, é inevitável se expor aos riscos, mas não cabe ao Estado se omitir do seu dever perante o consumidor ou pior, estimular uma prática totalmente contrária à legislação, mas sim estabelecer alternativas que garantam a segurança e a saúde de um indivíduo duplamente vulnerável: o consumidor.

3.1 O COMPROMISSO DO ESTADO PARA COM O CONSUMIDOR

O Direito do Consumidor constitui uma “disciplina transversal entre o direito privado e o direito público” que, mediante uma legislação protetiva e “subjetivamente especial”, tem como intuito salvaguardar determinado sujeito de direito que se encontra exposto aos “riscos do progresso” (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2007, p. 23-24).

Sob a perspectiva sistemática, é possível afirmar que o Direito do Consumidor é um reflexo da Constituição Federal, uma vez que há expressa disposição sobre a defesa do consumidor nos artigos 5º, XXXII, e 170, V (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2007). Sendo que, por ser uma garantia individual, é vedada qualquer proposta de emenda que tenha a abolição da defesa do consumidor como propósito, nos termos do artigo, 60, ​§ 4º, IV, da Carta Magna​ ​(BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2007).

Inclusive, o artigo 5º, XXXII, da Constituição Federal prevê um importante mandamento, qual seja, “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (BRASIL, 1988). Nessa perspectiva, Benjamin, Marques e Bessa (2007, p. 25) explicam que promover significa:

[...] assegurar afirmativamente que o Estado-juiz, que o Estado-Executivo e o Estado-Legislativo realizem positivamente a defesa, a tutela dos interesses destes consumidores. É um Direito fundamental (Direito humano de nova geração, social e econômico) a prestação protetiva do Estado, a uma atuação positiva do Estado, por todos os seus poderes: Judiciário, Executivo, Legislativo. É Direito subjetivo público geral, não só de proteção contra as atuações do Estado (Direito de liberdade ou Direitos civis, Direito fundamental de primeira geração, em alemão ​Abwehrrechte​), mas de atuação positiva (protetiva, tutelar, afirmativa, de promoção) do Estado em favor dos consumidores (Direito a alguma coisa, Direito prestacional, Direito econômico e social, Direito fundamental de nova geração, em alemão Rechte auf

positive Handlungen​).

Tendo isso em vista, o CDC, em seu artigo 4º, estabelece a Política Nacional das Relações de Consumo que pode ser compreendida como “um programa de metas e objetivos que devem ser obedecidos” (BESSA; FAIAD, 2010, p. 53), sendo o respeito à dignidade, à

melhoria da qualidade de vida do consumidor, bem como à proteção à saúde e à segurança alguns dos seus propósitos (BRASIL, 1990).

Esse dispositivo elenca cinco princípios que devem ser observados: vulnerabilidade, defesa do consumidor pelo Estado, boa-fé objetiva, equilíbrio nas relações de consumo e ainda, a confiança e o combate ao abuso (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2007).

Especificamente no inciso II do dispositivo supramencionado, encontra-se o princípio da defesa do consumidor pelo Estado, o qual exige que a atuação estatal proteja o consumidor por iniciativa direta, mediante incentivo à criação e desenvolvimento de associações representativas, por meio da sua própria presença no mercado de consumo e por fim, pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho ​(BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2007; BRASIL, 1990), o que evidencia que o compromisso do Estado com a defesa do consumidor constitui uma “obrigação legal expressa” (BESSA; FAIAD, 2010, p. 55).

Como já mencionado a proteção à vida, à saúde e à segurança constitui um direito previsto no artigo 6º, I, do CDC. Para Benjamin, Marques e Bessa (2007, p. 55), constitui “o mais básico e mais importante dos direitos do consumidor”, considerando, sobretudo, que, na sociedade de riscos, os produtos e serviços podem ser excessivamente danosos.

No capítulo segundo, demonstrou-se de que forma os agrotóxicos podem causar malefícios à saúde humana, de modo que, um alimento com agrotóxico pode ser considerado um produto defeituoso, pois está em desacordo com a expectativa legítima do consumidor e possui aptidão para promover acidentes de consumo, isto é, atinge a condição físico-psíquica do indivíduo (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2007).

Se o alimento acrescido de agrotóxico tem capacidade de provocar danos à saúde e o Estado possui o dever de assegurar o padrão de segurança dos produtos inseridos no mercado de consumo, a atuação estatal deveria ser no sentido de promover alternativas às substâncias químicas próprias do atual modelo agrícola a fim de que o direito à saúde e à segurança do consumidor fosse, de fato, assegurado.

Todavia, diversos eventos têm demonstrado que o Estado age de forma totalmente oposta, visto que ele não só se omite do seu dever de defesa do consumidor, como também opera ativamente no incentivo do emprego de substâncias químicas que, frisa-se, comprovadamente, são capazes de prejudicar a saúde do consumidor.

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