• Nenhum resultado encontrado

Os impactos à saúde decorrentes do emprego de agrotóxicos nos alimentos e a contribuição estatal para a perpetuação do desrespeito à proteção consumerista

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Os impactos à saúde decorrentes do emprego de agrotóxicos nos alimentos e a contribuição estatal para a perpetuação do desrespeito à proteção consumerista"

Copied!
97
0
0

Texto

(1)

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

TAYNÁ TOMAZ DE SOUZA

OS IMPACTOS À SAÚDE DECORRENTES DO EMPREGO DE AGROTÓXICOS NOS ALIMENTOS E A CONTRIBUIÇÃO ESTATAL PARA A PERPETUAÇÃO DO

DESRESPEITO À PROTEÇÃO CONSUMERISTA

Florianópolis 2019

(2)

OS IMPACTOS À SAÚDE DECORRENTES DO EMPREGO DE AGROTÓXICOS NOS ALIMENTOS E A CONTRIBUIÇÃO ESTATAL PARA A PERPETUAÇÃO DO

DESRESPEITO À PROTEÇÃO CONSUMERISTA

Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharela em Direito.

Orientadora: Professora Dra. Carolina Medeiros Bahia.

Florianópolis 2019

(3)
(4)
(5)

Aos meus pais, Milene e Alexandre, agradeço todo o suporte e amor. Nada disso seria possível sem vocês.

Às minhas amigas de longa data, Maria Clara, Even e Larissa, pelo auxílio imprescindível, seja ele emocional ou acadêmico, por sempre estarem comigo e acreditarem nos meus sonhos.

À Nathália e à Vanessa, por tornarem o caminho da graduação, especialmente na reta final, muito mais bonito e repleto de amor. Serei eternamente grata pela amizade de vocês.

Ao Chris, por todo o carinho, atenção, paciência e amor. O seu apoio foi fundamental para a realização deste trabalho.

À Luise, por ter me apresentado os excelentes agrônomos Luiz Carlos Mior e Paulo Sergio Tagliari, aos quais também agradeço pela atenção e pelas valiosas informações.

À Marina, minha querida chefe, pela compreensão, bem como por ser a minha inspiração diária de dedicação e excelência profissional.

À minha orientadora, Carolina Bahia, por aceitar me auxiliar na elaboração desta monografia, pela atenção despendida, pelo conhecimento compartilhado e sobretudo, por ser uma docente incrível, sendo, desde o início da graduação, um verdadeiro exemplo para mim.

Aos membros da banca, Heidi Michalski e Bruno Teixeira, bem como ao Luiz Fernando, enquanto suplente, por, gentilmente, aceitarem o meu convite.

(6)

“Às vezes você precisa se manter firme às suas convicções. Você pode não agradar todo mundo. Não se reprima só porque está com medo de alguém criticá-lo. É provável que você ganhe alguns inimigos,

mas muitos outros vão respeitá-lo por defender aquilo em que acredita.” Haemin Sunim

(7)

Este trabalho tem como finalidade demonstrar que o alimento com agrotóxico não está de acordo com a legislação consumerista, bem como que o Estado contribui para a perpetuação desse desrespeito à proteção do consumidor. Nessa perspectiva, no primeiro capítulo, apresenta-se o cenário de incerteza que decorre da sociedade de risco no qual os sistemas jurídico e político estão inseridos. Em virtude disso, evidencia-se que o consumidor está submetido a uma posição de dupla vulnerabilidade e portanto, sujeito aos mais diversos riscos. Em seguida, aborda-se as evidências científicas que apontam para os malefícios à saúde humana provocados pelos alimentos acrescidos de agrotóxicos, o que, em razão da sua periculosidade, atinge a saúde e a segurança do consumidor e por conseguinte, pode ser caracterizado como um defeito do produto. No terceiro capítulo, demonstra-se que a atuação do Estado se encontra em desacordo com os seus deveres previstos tanto na Constituição Federal como no Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista que ele incentiva a violação dos Direitos básicos previstos neste último diploma legal. E, por fim, explora-se quais seriam as possíveis medidas que, de fato, atendam aos preceitos da legislação consumerista.

Palavras-chave: ​Sociedade de risco. Direito do Consumidor. Alimento com

(8)

This work aims to prove that food with pesticides is not in accordance with the consumer rights, as well that the government contributes to the perpetuation of this disrespect to consumer protection. From this perspective, the first chapter shows the background of uncertainty linked to the risk society where the legal and political systems are inserted. As a result, it is evident that the consumer is in a position of double vulnerability. Then, the scientific evidences that prove the damages to human health by food with pesticides are expose. The evidences enable to characterize the food with pesticides as a defective product. The third chapter indicates how the government action disagrees with the duty to protect the consumer, because it encourages the violation of the consumer rights. And finally, it explores what are the possible alternatives that respect the law.

Keywords: Risk society. Consumer rights. Food with pesticide. Defective product.

(9)

Tabela 1- Produtos mais exportados em 2018………... 43

Tabela 2- Produtos mais exportados em 2019………...………… 44

Tabela 3- Área plantada de determinados cultivos………..….. 45

Tabela 4- Comercialização de agrotóxicos no Brasil (em kg)... 46

Tabela 5- Agrotóxicos mais comercializados no Brasil………. 47

Tabela 6- Amostras por alimento (unidades)... 50

Tabela 7- Quantidade de agrotóxicos por amostra de alimento……….. 51

(10)

Quadro 1- Classificação dos agrotóxicos de acordo com a praga e o grupo químico…... 39 Quadro 2- Comparação entre limite máximo de resíduos (em mg/kg)... 49

(11)

ABA Associação Brasileira de Agroecologia ABRASCO Associação Brasileira de Saúde Coletiva AGROFIT Sistema de Agrotóxicos Fitossanitários ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária

CDC Código de Defesa do Consumidor

COFINS Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária

EPAGRI Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina ESFA Autoridade Europeia de Segurança Alimentar (EFSA)

FAO Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura

FCCIAT Fórum Catarinense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos FIOCRUZ Fundação Oswaldo Cruz

IARC Agência Internacional de Pesquisa em Câncer ICMS Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços IMA Instituto do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina INCA Instituto Nacional de Câncer

LMR Limite máximo de resíduos

PARA Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos PNARA Política Nacional de Redução de Agrotóxicos

PIS/PASEP Programa de Integração Social e o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público

(12)

INTRODUÇÃO………. 12

1 AS IMPLICAÇÕES DA SOCIEDADE DE RISCO: DOS SISTEMAS JURÍDICO E POLÍTICO AO CONSUMIDOR………. 14

1.1 A SOCIEDADE DE RISCO……….. 15

1.1.1 A concepção de risco………... 18

1.1.2 Irresponsabilidade organizada………... 22 1.1.3 A ligação entre a ciência, a técnica e as decisões políticas………. 24

1.2 O DIREITO DIANTE DE UM CONTEXTO DE INCERTEZA………... 27 1.2.1. A segurança enquanto alicerce do sistema jurídico e a sua relação com a ciência………... 28

1.2.2 A nova relação estabelecida entre o Direito e a ciência: o mergulho na incerteza………. 29

1.3 A DUPLA VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR………. 32

2 OS MALEFÍCIOS DECORRENTES DOS AGROTÓXICOS………... 36

2.1 AGROTÓXICOS: DEFINIÇÃO E POSSÍVEIS DENOMINAÇÕES……….. 37

2.2 A INSERÇÃO DOS AGROTÓXICOS NA AGRICULTURA………. 40

2.3 DIMENSÃO DO USO DE AGROTÓXICOS NA AGRICULTURA BRASILEIRA….. 42

2.4 EVIDÊNCIAS DOS PREJUÍZOS À SAÚDE HUMANA……….... 48

(13)

2.4.2.2 Acefato………... 57 2.5 CARACTERIZAÇÃO DO DEFEITO DO PRODUTO……….... 59

3 A ATUAÇÃO ESTATAL FRENTE AOS AGROTÓXICOS………... 63

3.1 O COMPROMISSO DO ESTADO PARA COM O CONSUMIDOR……….. 65 3.2 O INCENTIVO ESTATAL AO EMPREGO DE AGROTÓXICOS NA

AGRICULTURA………. 67

3.2.1 Liberação indiscriminada de agrotóxicos………... 68 3.2.2 Benefícios fiscais……….... 72 3.2.3 Projeto de Lei n. 6.299/2002: Pacote do Veneno………. 74

3.3 NOVAS PERSPECTIVAS PARA O TEMA……….. 78

CONCLUSÃO……….... 83 REFERÊNCIAS………... 87

(14)

INTRODUÇÃO

Este estudo, apresentado como Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, tem como objetivo geral averiguar se o Estado contribui para a perpetuação do desrespeito à saúde e à segurança do consumidor ao permitir, e até mesmo incentivar que este ingira alimentos acrescidos de agrotóxicos.

Para isso, sob a ótica da teoria da sociedade de risco de Ulrich Beck, serão explorados os seguintes objetivos específicos: fazer uma revisão bibliográfica demonstrando que o contexto da sociedade de risco está diretamente relacionada à incerteza, o que afeta diretamente o cumprimento do papel do Direito e a atuação do Estado; levantar dados para evidenciar que os agrotóxicos desencadeiam diversos malefícios à saúde humana e que portanto, podem ser considerados produtos defeituosos; aplicar a legislação e argumentos de livros aos resultados extraídos dos dados para demonstrar que o Estado age em desacordo com o ordenamento jurídico e contribui para a perpetuação do desrespeito à saúde e à segurança do consumidor; a partir da demonstração anterior, propor o incentivo à alternativas ao agrotóxico de forma que o próprio Estado seja responsável pela implementação de um sistema agrícola menos dependente dos produtos químicos.

A escolha do tema se justifica pela urgência de discutir algo que está cotidianamente na mesa do consumidor, mas que ainda não recebe a devida atenção. Considerando o contexto da sociedade de risco e de consumo, sempre é tempo de observar quais são os malefícios de produtos inseridos no mercado de consumo, de modo que seja possível refletir sobre alternativa menos gravosas ao indivíduo vulnerável.

Dessa forma, o problema central perpassa pela caracterização do alimento acrescido de agrotóxico como um produto com defeito e pela colaboração do Estado para que um ciclo de desrespeito ao consumidor seja perpetuado.

Nessa perspectiva, por meio da pesquisa bibliográfica e hermenêutica, bem como através da análise de dados, adotando o método dedutivo, buscar-se-á estabelecer como hipótese deste estudo que, ao fomentar o emprego de agrotóxicos na agricultura, o Estado caminha no sentido diametralmente oposto ao seu dever de proteção ao consumidor.

Para comprová-la, estruturalmente, decidiu-se pela divisão em três capítulos.

Assim, o primeiro capítulo visa abordar o contexto da sociedade de risco, os seus impactos ao sistema jurídico ao longo dos anos, a relação entre a ciência, o Direito e, por

(15)

conseguinte, à atuação estatal e ainda, em meio a tudo isso, a posição de dupla vulnerabilidade em que o consumidor figura.

O segundo capítulo tem como finalidade explorar especificamente o alimento com agrotóxico. Para isso, inicia-se pela definição do agrotóxico, aborda-se a sua inserção na agricultura, bem como a dimensão da sua utilização no Brasil. Em seguida, as evidências que apontam para os efeitos negativos à saúde humana vinculados ao consumo a longo prazo são demonstradas, especialmente no que diz respeito ao glifosato e ao acefato, produtos químicos massivamente empregados na agricultura brasileira para, então, finalmente, constatar que o alimento acrescido de agrotóxico, não está de acordo com o Direito à alimentação adequada, que está diretamente relacionada à saúde e à segurança do consumidor.

Por sua vez, o terceiro capítulo aponta que o Estado tem o dever de proteger o consumidor e, portanto, que, em tese, deveria garantir a qualidade e a segurança dos produtos inseridos no mercado de consumo. Contudo, demonstrará que, diante da massiva autorização de registros de agrotóxicos, dos benefícios fiscais e ainda, de um projeto de lei bastante controverso, age em total desconformidade com os preceitos básicos da legislação consumerista.

Ainda assim, os resultados da pesquisa demonstrarão que, a despeito de todos os entraves, existem outros rumos a serem trilhados, os quais são capazes de aliar os interesses da agricultura com os direitos do consumidor.

(16)

1 AS IMPLICAÇÕES DA SOCIEDADE DE RISCO: DOS SISTEMAS JURÍDICO E POLÍTICO AO CONSUMIDOR

Considerando que o Direito se relaciona com as ações do Estado e que as decisões das 1 instâncias políticas afetam diretamente os consumidores, compreender as circunstâncias que cercam esses elementos mostra-se imprescindível para buscar um modo de gerir os riscos que envolvem os agrotóxicos.

Sendo assim, para entender o cenário atual, é necessário explorar a ideia de sociedade de risco, desenvolvida por Ulrich Beck, que visa demonstrar o sistema de produção de riscos no qual os seres humanos estão inseridos, cujas características principais são a atemporalidade, a invisibilidade e a inexistência de limites territoriais (BECK, 2011).

Nesse contexto, a ciência ocupa lugar de destaque, pois, além de ser responsável pelo desenvolvimento tecnológico e por conseguinte, pela satisfação das necessidades humanas, ela está vinculada aos riscos que impactam a atuação do Direito e consequentemente, do próprio Estado (PARDO, 2015).

Entretanto, nem sempre foi assim. A relação entre o Direito e ciência, bem como entre esta última e as instâncias políticas, mudou ao longo dos séculos.

Se a ciência era base e uma espécie de influência para o Direito no auge da produção científica, hoje, o conhecimento científico não só deixou essa posição, como se tornou a sua maior fonte de dúvida (PARDO, 2015). De igual modo, a formação de um novo paradigma, qual seja, a tecnociência, tornou as decisões políticas fortemente influenciáveis pelos caminhos trilhados pela pesquisa científica (PARDO, 2015).

Diante desse cenário, o Direito, mergulhado na incerteza, torna-se tópico de debates, vez que a sua atuação fundamentada em uma estrutura tradicional se mostra acuada frente à complexidade dos riscos desenvolvidos cotidianamente e da ausência de respostas científicas seguras (PARDO, 2015).

Por sua vez, as deliberações políticas responsáveis pela configuração da sociedade deixam de se concentrar no sistema político e passam a integrar um sistema científico-técnico-econômico (BECK, 2011).

1 Neste trabalho, o termo será compreendido como o conjunto de normas e instituições que regulam as relações

(17)

É evidente que, em que pese o cenário pareça não ser favorável, os sistemas jurídico e político devem continuar cumprindo os seus papéis, por isso, diversos autores discutem de que forma isso poderia ser feito.

O fato é que enquanto os meios de aprimorar a atuação do Direito e consequentemente a do Estado frente aos desafios da sociedade de risco são debatidos, os indivíduos encaram os riscos, muitas vezes, sem, ao menos, conhecê-los.

Nessa perspectiva, o consumidor, que se mostra duplamente vulnerável, frente à sociedade de consumo e à de risco, todos os dias, ingere diversos agrotóxicos que prejudicam a sua saúde, o que, diante do respaldo científico e da legislação consumerista, não pode ser ignorado pelo Estado.

Assim, este primeiro capítulo visa apresentar a teoria da sociedade de risco, aprofundar a sua relação com a ciência e a técnica, bem como indicar de que forma os sistemas político e jurídico são afetados pelo contexto decorrente e por fim, evidenciar a posição de dupla vulnerabilidade na qual o consumidor está inserido.

1.1 A SOCIEDADE DE RISCO

O progresso tecnológico não consiste apenas em benefícios anunciados pela sociedade industrial, pois não se resume ao crescimento econômico, ao desenvolvimento e ao bem-estar humano, mas abrange também as regressões, as destruições e sobretudo, os riscos (FERREIRA, 2011).

Nessa perspectiva, segundo a teoria da sociedade de risco, hoje, a coletividade vive no que pode ser chamado de segunda modernidade, modernidade avançada ou até mesmo sociedade de risco. Esse período decorre do desenvolvimento industrial, bem como das inovações técnicas e científicas responsáveis por uma série de consequências ao ser humano e ao meio em que ele está inserido (BAHIA, 2012).

Ulrich Beck (2011), idealizador do termo “sociedade de risco”, no prefácio da sua obra publicada em 1986, explica que, apesar dos aspectos do passado ainda existentes, as suas reflexões visam apresentar o futuro que já se evidenciava no seu presente. A fim de tornar mais claro o objetivo, é possível comparar a perspectiva da referida teoria com uma pessoa que observa o contexto social do início do século XIX e constata, a despeito dos traços da era agrícola feudal, elementos que revelam a iminência da fase industrial (BECK, 2011).

(18)

Enquanto, no século XIX, a modernização se colocou de forma oposta ao mundo tradicional e à natureza ainda não totalmente conhecida e controlável, na virada para o século XXI, a modernização não possui um lado contrário, pois se encontra em meio às premissas da sociedade industrial (BECK, 2011). Do mesmo modo, se no século XIX os privilégios decorrentes dos grupos sociais e as figuras religiosas foram perdendo a influência, nos séculos XX e XXI, é o conhecimento científico e tecnológico oriundo da sociedade industrial clássica que passa a perder o seu prestígio (BECK, 2011).

Essas distinções estão relacionadas às ideias de modernização simples e modernização reflexiva. A primeira se caracteriza pela existência de perigos oriundos dos deuses ou da natureza, já a segunda está relacionada aos riscos que decorrem de uma construção científica e social, sendo que, nessa circunstância, a ciência constitui a causa, mas também a única capaz de solucionar esses riscos (BECK, 2011).

Nesse sentido, Beck (1997, p. 12) esclarece que a modernização reflexiva

significa a possibilidade de uma (auto)destruição criativa para toda uma era: aquela da sociedade industrial. O “sujeito” dessa destruição criativa não é a revolução, não é a crise, mas a vitória da modernização ocidental.

Ou seja, o próprio dinamismo industrial alterou diversos aspectos da sociedade, como as formações de classe, os setores empresariais e as formas do progresso técnico-econômico, de modo a transformar a sua configuração (BECK, 1997). Não houve um evento ou um marco histórico, mas apenas um tipo de modernização capaz de excluir e modificar outro, sendo isso denominado de modernização reflexiva (BECK, 1997).

É interessante perceber que o conceito de modernização reflexiva não está relacionado à reflexão, mas sim à autoconfrontação, uma vez que a transição da sociedade industrial para a de risco acontece de modo compulsivo no seio do próprio “dinamismo autônomo da modernização” (BECK, 1997, p. 16). Sendo assim, BECK (1997, p. 16) explica que a modernização reflexiva representa a “auto confrontação com os efeitos da sociedade de risco que não podem ser tratados e assimilados no sistema da sociedade industrial” ​(sic​).

Nessa lógica, o adjetivo “reflexiva”, na perspectiva mais restrita, quer dizer que a sociedade é, ao mesmo tempo, tema e problema para ela mesma (BECK, 1997).

Com a sociedade de risco, os conflitos de distribuição dos bens da vida, como o dinheiro, característicos da sociedade industrial, são superados pelos conflitos decorrentes da

(19)

distribuição das consequências negativas que decorrem da produção desses bens (BECK, 1997).

De modo sintético, Beck ​(1997, p. 15) ​define a sociedade de risco como

uma fase no desenvolvimento da sociedade moderna, em que os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições para o controle e a proteção da sociedade industrial.

O problema é que esses riscos, além de não serem perceptíveis pelo sistema sensorial humano e superarem a própria imaginação do indivíduo, não são suscetíveis de determinação pela ciência, sendo assim, o significado do perigo se transforma em uma “construção cognitiva e social” (BECK, 1997, p. 17).

Apesar da utilização do termo “perigo”, é importante perceber que existe distinção entre os conceitos de risco e perigo. Nessa perspectiva, Serrano (2006) explica que as referidas palavras constituem uma categoria diferencial, isto é, a definição de um termo depende do outro. Para elucidar, ele apresenta o seguinte exemplo: “uma inundação é um perigo, porém, aquele que constrói sua casa no leito de um rio expõe-se a um risco. Um furacão é um perigo, mas quem provoca o aquecimento global se (e nos) expõe a um risco. ” (SERRANO, 2006, p. 58).

Consoante Beck (2006, p. 6), o risco “pressupõe decisões que tentam fazer das consequências imprevisíveis das decisões civilizacionais decisões previsíveis e controláveis” Assim, conclui-se que, como ressaltado por Bahia (2012), diferente dos perigos, os riscos decorrem das escolhas humanas.

Esses riscos constituem justamente o novo paradigma da sociedade. Na modernidade tardia , questiona-se como eles podem ser evitados, reduzidos ou redistribuídos, de modo que2 o progresso tecnológico não seja afetado e tampouco as fronteiras do que é “ecológica, medicinal, psicológica ou socialmente aceitável” (BECK, 2011, p. 24).

Evidentemente, a resposta dessas perguntas depende da compreensão de todos os aspectos que caracterizam os riscos.

(20)

1.1.1 A concepção de risco

Certamente, os riscos constituem um elemento inerente ao desenvolvimento industrial. Entretanto, aqueles apontados por Ulrich Beck possuem características que os distanciam da sociedade industrial clássica e demonstram a configuração do que o sociólogo alemão denomina de sociedade de risco (BECK, 2011).

A classe do risco “é pós-tradicional e, em certo sentido, pós-racional, pelo menos no sentido de não ser mais instrumentalmente racional” (BECK, 1997, p. 20). Ainda assim, é possível afirmar que o risco possui origem no “triunfo da ordem instrumentalmente racional”, pois, após a normatização da produção industrial que extrapola as fronteiras da segurança, bem como do modo tangível dos riscos, é que se tornou possível visualizar como as questões de riscos suprimem as questões de ordem, as quais são caracterizadas pela sua clareza e pela possibilidade de tomar decisões, o que não é visto nos riscos, uma vez que eles são sempre probabilidades, característica que dificulta uma deliberação integralmente consciente (BECK, 1997, p. 20).

Beck (2011) elucida que, apesar de ser algo vinculado ao progresso da indústria, o risco não nasceu com ela, na verdade, trata-se de um fenômeno já perceptível na época em que os europeus saíram para desbravar novos espaços. Todavia, enquanto os riscos assumidos por Cristóvão Colombo eram pessoais e possuíam uma conotação de ousadia, os riscos enfrentados hoje, como o acúmulo de lixo nuclear, representam uma ameaça global capaz de afetar todos os seres humanos, a fauna e a flora (BECK, 2011).

De igual modo, as florestas são destruídas há muito tempo, em um primeiro momento pela constituição de pastos e depois pela exploração da madeira, porém, o desmatamento visto hoje atinge um nível global, “como consequência implícita da industrialização”, sendo que países com diversas florestas podem ser afetados sem, ao menos, possuir uma gama de indústrias altamente poluidoras, pois pagam pela poluição gerada por outras nações (BECK, 2011, p. 26).

Nesse sentido, é evidente que, em razão do acúmulo de excrementos pelas ruas, uma cidade medieval também produzia diversas ameaças, porém, elas não podem ser igualadas aos riscos atuais, uma vez que diferente destes, eram facilmente percebidas pelos sentidos humanos (BECK, 2011). Os chamados novos riscos, como as contaminações nucleares e as

(21)

substâncias tóxicas presentes nos alimentos, são capazes de fugir à percepção até mesmo dos afetados e somente apresentarem os seus efeitos nas gerações posteriores (BECK, 2011).

A forma mais sofisticada das forças produtivas, cujo resultado pode chegar à “produtos” como a radioatividade, gera riscos que, além de, geralmente, serem invisíveis, podem ser irreversíveis e suscetíveis de interpretações causais que, por meio do conhecimento, são capazes de alterá-los, diminuí-los ou aumentá-los, o que representa um importante instrumento sociopolítico (BECK, 2011).

Conforme Beck (2011), esses riscos, do mesmo modo que as riquezas, enquanto bens de consumo tangíveis, são distribuídos na sociedade. Porém, diferente das primeiras, aquilo que lesa a saúde e o meio ambiente, ainda que seja evidente aos sentidos humanos, geralmente, exigirá a confirmação de um especialista (BECK, 2011).

A dependência pela palavra de uma autoridade que possibilite a aceitação cultural de determinada questão está atrelada ao fato dos riscos serem ilimitadamente reprodutíveis, tendo em vista que eles se reproduzem com as perspectivas a partir da qual cada um analisa as decisões que são tomadas na sociedade (BECK, 1997). Assim, à medida que os riscos se multiplicam, o horizonte se torna mais tenebroso, uma vez que os riscos mostram o que não deve ser realizado, mas, por outro lado, não apresentam o que precisa ser evitado (BECK, 1997).

Além disso, esses riscos não desaparecem após a constatação dos seus efeitos, porque neles existe um “componente futuro”, o qual está relacionado a uma prolongação no amanhã dos danos já previsíveis e “numa perda geral de confiança ou num suposto amplificador do risco” (BECK, 2011, p. 39).

Desse modo, os riscos estão vinculados à estragos que, embora não tenham se materializado, são iminentes e portanto, já podem ser considerados reais no presente, tal fato pode ser exemplificado por meio do seguinte exemplo (BECK, 2011, p. 39-40):

o comitê que emite o laudo [ambiental] refere-se ao fato de que as altas concentrações de nitrato decorrentes da fertilização com nitrogênio até o momento infiltrou-se pouco ou sequer chegou a ser infiltrar nas camadas profundas dos grandes aquíferos subterrâneos dos quais extraímos nossa água potável. Elas, em grande medida, decompõem-se no solo. Todavia, não se sabe ainda como isto ocorre e por quanto tempo ainda ocorrerá. Muitas razões indicam que não se deve, sem mais reservas, projetar no futuro a continuidade do efeito infiltrante das camadas protetoras do subsolo. Teme-se que, após alguns anos ou décadas, as atuais eluviações de nitrato, com um retardamento correspondente à vazão, terão alcançado mesmo os lençóis freáticos mais profundos. Em outras palavras: a bomba-relógio está armada.

(22)

Esse atributo do risco torna-o, simultaneamente, real e irreal, visto que, se por um lado muitas destruições já podem ser consideradas reais, como o desmatamento florestal e a poluição dos rios, por outro, existem as “ameaças projetadas no futuro” que quando se concretizam revelam-se estragos de tamanha magnitude que qualquer atitude com o intuito de contê-los se torna impraticável (BECK, 2011, p. 40).

À vista disso, de acordo com Beck (2011, p. 40), no debate sobre o futuro, é necessário observar a existência de uma “variável projetada”, isto é, uma “causa projetada da atuação (pessoal e política) presente”, cuja importância aumenta em conformidade com a sua incalculabilidade e com o seu potencial de ameaça, os quais são considerados essenciais para planejar a atuação no presente.

Logicamente, essa concepção do teor dos riscos pressupõe que eles sejam reconhecidos socialmente (BECK, 2011). Porém, não é o que ocorre, uma vez que, enquanto “bens de rejeição”, os riscos têm a sua existência negada até que haja prova em contrário, o que está relacionado à própria legitimação dos riscos, tendo em vista que se entende que justamente por não ser previsto, eles, que foram produzidos com boa intenção, podem ser admitidos e legitimados (BECK, 2011, p. 41).

Sendo imperceptíveis e inexistentes até que se prove o oposto, de acordo com Ferreira (2011), os riscos dificilmente são passíveis de controle, de modo que, quando efetivamente se tornam danos visíveis, são capazes de ultrapassar limites temporais e territoriais. O desastre atômico ocorrido na Ucrânia no ano de 1986 é um exemplo disso, haja vista que, naquele episódio, embora a explosão do reator tenha acontecido na Central Nuclear de Chernobyl, no norte da Ucrânia, as consequências, que persistem até hoje, alcançaram outros países, como Suécia, Letônia, Polônia, Alemanha, Inglaterra e França, tendo atingido, aproximadamente, um total de quinze milhões de pessoas (FERREIRA, 2011).

Apesar do caráter transfronteiriço dos riscos, eles não são distribuídos de modo uniforme, pelo contrário, são repartidos desigualmente e se desdobram de formas diferentes a depender do contexto em que estão inseridos (BECK, 2006). Por exemplo, na denominada periferia do planeta, os riscos não resultam de um processo interno, mas sim de decisões externas, geralmente oriundas dos países do centro (BECK, 2006).

Beck (2006, p. 5) também denomina esses riscos de “incertezas fabricadas”, ou seja, incertezas imensuráveis que são acentuadas pelo desenvolvimento tecnológico e pelas “respostas sociais aceleradas”.

(23)

Aliás, os riscos pressupõem decisões que tentam transformar os efeitos imprevisíveis e desmedidos em deliberações passíveis de controle e previsibilidade, tal fato pode ser visualizado quando alguém afirma que o “o risco de câncer em fumantes está em um certo nível, e o risco de catástrofe em uma usina nuclear está em certo nível”, pois demonstra que as consequências maléficas de cada situação citada são autorizadas por decisões que soam como calculáveis, do mesmo modo que a possibilidade da pessoa adoecer ou do acidente nuclear se concretizar (BECK, 2006, p. 6).

Entretanto, na sociedade de risco, as decisões abarcam efeitos com potencial para afetar o planeta inteiro, o que contradiz e prejudica a concretização do controle prometido ao público, há um nítido colapso entre as ideias de certeza e racionalidade (BECK, 2006). Assim, “não são as mudanças climáticas, os desastres ecológicos, ameaças de terrorismo internacional, o mal da vaca louca etc que criam a originalidade da sociedade de risco”, mas sim a própria percepção de que os seres humanos estão inseridos em um planeta interligado que está descontrolado (BECK, 2006, p. 6-7).

Ademais, como os riscos tendem à globalização, isto é, independentemente do local em que foram produzidos, podem alcançar os mais diversos países, não há como afirmar que a sociedade de risco se coaduna integralmente com a sociedade de classes, pois todos estão sujeitos aos efeitos das ameaças relacionadas ao desenvolvimento industrial (BECK, 2011).

A partir desse aspecto, Beck (2011, p. 44) desenvolve a ideia de efeito bumerangue:

contido na globalização, e ainda assim claramente distinto dela, há um padrão de distribuição dos riscos no qual se encontra um material politicamente explosivo: cedo ou tarde, eles alcançam inclusive aqueles que os produziram ou que lucraram com eles. Em sua disseminação, os riscos apresentam socialmente um efeito bumerangue: nem os ricos e poderosos estão seguros diante deles. Os anteriormente “latentes efeitos colaterais” rebatem também sobre os centros de sua produção. Os atores da modernização acabam, inevitável e bastante concretamente, entrando na ciranda dos perigos que eles próprios desencadeiam e com os quais lucram.

Como exemplo do efeito bumerangue, Beck (2011) cita o aumento do emprego de fertilizantes e de insumos químicos entre os anos de 1951 e 1983 na Alemanha Ocidental, o qual, além de ser responsável pela expansão da produtividade, provocou a redução da diversidade da flora e da fauna, bem como a inclusão de diversas espécies nas listas de ameaça de extinção, fatos que afetam diretamente a própria produção agrícola.

(24)

Logo, há uma contradição, haja vista que, ao mesmo tempo que o processo de industrialização é impulsionado pelos interesses econômicos, os seus danos são capazes de eliminar tudo aquilo que gera o lucro e aquele que lucra (BECK, 2011). Nota-se que o ser humano está sujeito às “insuficiências da racionalidade econômica”, as quais estão direcionadas aos resultados de curto prazo e ao acúmulo de dinheiro sem se importar com as consequências ao meio ambiente e por conseguinte, à humanidade (FERREIRA, 2011, p. 22-23).

Apesar da complexidade, em conflitos que envolvem esses riscos transnacionais, invisíveis, atemporais, reais e irreais, busca-se determinar um responsável, o que não se mostra fácil, uma vez que, normalmente, há uma batalha entre a ideia de que a responsabilidade não cabe à ninguém e a teoria de que alguém precisa ser responsabilizado (BECK, 2006).

1.1.2 Irresponsabilidade organizada

De acordo com Beck (2011, p. 36-37), cada interessado busca uma perspectiva para se defender das definições de risco que ameaçam a sua atividade, “alcance, urgência e existência de riscos oscilam com a diversidade de valores e interesses”. Por conseguinte, o nexo causal pode ser resultado de uma imensa diversidade de interpretações, já que é possível associar tudo com tudo enquanto se tem como modelo a “modernização como causa e o dano como efeito colateral” (BECK, 2011, p. 37).

Quando o efeito é reconhecido como um resultado da industrialização, transforma-se em um problema que requer respostas sistêmicas e de longo prazo, mas também desperta possibilidades infinitas de causas que se relacionam com companhias, equipes econômicas, científicas, entre outros profissionais que ficam expostos à opinião pública (BECK, 2011). Com a crítica, mesmo quando ela é refutada, há perda nas vendas e da própria confiança do consumidor, por isso, nesse momento, entram em cena os “bombeiros argumentativos”, aos quais cabe a função de, “com um forte jato de contrainterpretação”, salvar o que for possível e apresentar outras explicações, bem como outros culpados (BECK, 2011, p. 38).

Outrossim, o sistema da produção industrial dificulta o isolamento dos fatores responsáveis pelos impactos, quer dizer, a interdependência entre os agentes da economia, do Direito, da política e da agricultura refletem a inexistência de motivo específico e

(25)

responsabilidade isolável (BECK, 2011). Nessa lógica, Beck (2011, p. 38-39) questiona se os responsáveis pela poluição do solo são os agricultores ou as autoridades competentes, entre cientistas e políticos, que nem, ao menos, limitam o uso de venenos e, logo em seguida, elucida que é a “altamente diferenciada divisão do trabalho” que provoca uma cumplicidade capaz de gerar uma irresponsabilidade organizada.

Portanto, se todos constituem causa e efeito, eles são uma “não causa”, visto que as origens das consequências se dissolvem em uma variação de agentes e fatores (BECK, 2011, p. 39). Nota-se que esse sistema permite que as atividades continuem sendo executadas sem que os indivíduos por trás delas tenham que responder pessoalmente pelos possíveis efeitos (BECK, 2011).

Por essas razões, Beck (2006) afirma que a sociedade se transformou em um laboratório desprovido de um responsável pelas repercussões das experiências, tendo em vista que os políticos afirmam que apenas regulamentam o mercado e não possuem poder de comando, os especialistas sustentam que desenvolvem as inovações tecnológicas, mas não definem como elas serão utilizadas e por sua vez, os empresários alegam que somente oferecem aquilo que é demandado pelos consumidores.

Assim, diante dessa dissolução das causas e por conseguinte, da dificuldade para imputar a responsabilidade pelos resultados danosos, evidencia-se o que Beck denomina de irresponsabilidade organizada, fenômeno que pode ser exemplificado por meio da comparação entre o lucro obtido pelas companhias de biotecnologia dos Estados Unidos e o valor investido em pesquisas capazes de avaliar os riscos decorrentes da atividade, tendo em vista que, enquanto o rendimento anual de 1.300 organizações voltadas para a biotecnologia alcança o montante de 13 bilhões de dólares, o Departamento de Agricultura Norte-Americano aloca apenas 1% da verba para estudos (RIFKIN, 1999).

Logo, observa-se que a irresponsabilidade organizada está relacionada ao vínculo estabelecido entre a ciência, a técnica e a indústria (FERREIRA, 2011), sendo o caso da indústria biotecnológica norte-americana também um importante exemplo para constatar e até mesmo, ilustrar que essa relação tem o poder de limitar, bem como influenciar as decisões políticas e consequentemente, o funcionamento do Direito.

(26)

1.1.3 A ligação entre a ciência, a técnica e as decisões políticas

Para abordar a conexão entre esses elementos, é interessante compreender a distinção entre ciência e tecnologia . 3

Consoante Agazzi (1997, tradução minha), a ciência pode ser compreendida como um conhecimento objetivo da realidade, já a tecnologia como a aplicação desse conhecimento na prática com o intuito de facilitar a produção da vida material.

É a pesquisa científica que suscita dúvidas às instituições políticas, mas também é ela que delimita as opções que nortearão a deliberação, tendo em vista que, além de acionar as instituições competentes para discutir sobre, por exemplo, um novo produto, é a ciência que determina qual é o espaço decisório, às vezes, limitado ao dilema de apenas aceitar ou recusar uma inovação tecnológica (PARDO, 2015).

Diante disso, Pardo (2015) destaca que a atividade científica que hoje influi nas decisões não é a mesma do século passado. Para distinguir, faz-se necessário realizar uma comparação entre o que pode ser denominado de paradigma Galileu, isto é, a ciência característica da época em que Galileu Galilei e outros grandes cientistas viveram, e a pesquisa científica constatada a partir do século XX e ainda presente no século XXI (PARDO, 2015).

Três elementos descrevem o cenário da ciência antes do século XX, são eles: o próprio ambiente em que Galileu trabalhava, pois ele poderia ser assemelhado a uma oficina, na qual o cientista, muitas vezes, construía os seus instrumentos e justamente por isso, possuía pleno conhecimento dos seus meios de trabalho; outro importante aspecto diz respeito à total liberdade do cientista que, geralmente, exercia um trabalho individual, de modo a estabelecer os seus próprios objetivos de pesquisa; ainda, considerando que Galileu não conseguia comercializar as suas invenções com facilidade, havia uma clara separação entre a investigação científica e a técnica (PARDO, 2015).

Esse último traço mostra-se muito relevante, pois ele configura uma importante distinção entre os paradigmas ora analisados. À época de Galileu não havia uma proteção às invenções, sendo assim, principalmente por esse motivo, não existia uma ligação imediata entre conhecimento científico e a técnica (PARDO, 2015). Logo, a atividade científica não era

(27)

guiada pela aplicação das descobertas ou por razões econômicas, mas sim pelo desejo de compreender e dominar a natureza (PARDO, 2015).

No transcorrer do século XX, há uma mudança de paradigma e o conhecimento científico passa a ser identificado por outros aspectos: primeiro, o cientista deixa de construir os seus próprios meios de pesquisa e passa a necessitar de instrumentos sofisticados que demandam grandes investimentos; segundo, o pesquisador não atua mais pautado somente no seu próprio arbítrio, pois integra equipes que estão incorporadas a algum tipo de organização que, por sua vez, é a responsável pelo planejamento das linhas de investigação; por fim, há a inversão da ordem entre ciência e técnica, primeiro são analisadas as possibilidades de aplicação e depois, define-se qual pesquisa deve ser desenvolvida (PARDO, 2015).

Quanto à alteração na sequência entre investigação científica e aplicação técnica, Pardo (2015) afirma que, embora o aproveitamento econômico e a utilidade militar se estabeleçam como os principais motores da ciência, ainda persiste o desenvolvimento de uma pesquisa movida pelo desejo individual de cientistas focados na ampliação do conhecimento ou em outras finalidades altruístas, como a cura de uma doença.

Entretanto, os instrumentos necessários para o avanço da investigação não caminham com os propósitos altruístas mencionados, pois eles exigem investimentos avantajados, por isso, é comum observar a concentração da pesquisa nas mãos de poucos, como é o caso da indústria farmacêutica, formada por grandes multinacionais, que detém quase o monopólio da exploração do conhecimento sobre medicamentos (PARDO, 2015).

Esse novo paradigma delineado, denominado de tecnociência, tem o seu início no final da Segunda Guerra Mundial, momento em que, devido à experiência com o uso da tecnologia dotada de fins destrutivos, a comunidade científica acordou manter distante do poder militar os conhecimentos que poderiam ser utilizados com objetivos bélicos (PARDO, 2015). Todavia, a administração militar dos Estados Unidos, descontente com o consenso da comunidade científica, estruturou a sua própria organização para desenvolver as suas investigações (PARDO, 2015).

Outro período relevante para a tecnociência se deu nos anos oitenta, também nos Estados Unidos, quando o financiamento privado superou o valor investido pelos órgãos públicos em pesquisa, o que foi repetido nos demais países ocidentais mais tarde (PARDO, 2015). Esse financiamento privado se expandiu e adentrou as universidades, o que culminou na parceria entre indústria e academia na busca pelo conhecimento, fato que, de certo modo,

(28)

restringiu a liberdade de investigação, uma vez que a pesquisa passou a se orientar por objetivos predeterminados (PARDO, 2015).

Como “a capacidade prévia de decisão” está nas mãos da pesquisa científica, é possível afirmar que aqueles que controlam a linha de investigação detém o poder de limitar sobre o que as instâncias políticas podem decidir (PARDO, 2015, p. 100). Sendo assim, Pardo (2015) sustenta que a sociedade é configurada não pelos órgãos públicos, mas por organizações que estabelecem quais caminhos serão investigados e quais serão ignorados, o que será aplicado e como os consumidores serão influenciados para obter aquilo que é desenvolvido pela indústria.

Nesse mesmo sentido, Beck (2011) defende que, ​considerando que os riscos da segunda modernidade alteram a definição, o lugar e os meios da política, somente algumas decisões são introduzidas no sistema político e por conseguinte, submetidas aos ditames de uma democracia, enquanto outras se esquivam desse tipo de controle e passam a ser cedidas às companhias e à pesquisa. Assim sendo, a organização da sociedade se pauta em dois pilares: deliberações provenientes da democracia político-parlamentar e decisões de ordem apolítica e não democrática (BECK, 2011).

Essa forma de organização é caracterizada pela perda de relevância do parlamento enquanto local de construção da vontade racional, bem como pela “cientificização das decisões políticas” que passam a se basear em laudos científicos, os quais, muitas vezes, estão vinculados aos interesses privados de grupos influentes (BECK, 2011).

Desse modo, o poder de configuração da sociedade é transferido do sistema político para um sistema da modernização científico-técnico-econômica, há uma mistura de papéis, por meio do qual, “o político torna-se apolítico e o apolítico, político” (BECK, 2011, p. 279). Enquanto as entidades políticas tornam-se meras gerenciadoras de um processo que não foi delineado por elas, as deliberações da economia e da ciência são dotadas de um caráter político, ainda que os agentes envolvidos não possuam qualquer legitimação (BECK, 2011). Logo, as decisões que impactam a sociedade passam a não possuir um lugar originário, pois se caracterizam por serem mudas e anônimas (BECK, 2011).

Nessa perspectiva, o fomento ao crescimento da economia e à liberdade científica se mostram as justificativas basilares para o distanciamento do poder decisório do sistema político-democrático e a aproximação de uma ordem não política, mas econômica e técnico-científica (BECK, 2011).

(29)

À vista disso, e considerando os exemplos das indústrias biotecnológica e farmacêutica, resta evidente que o vínculo entre a ciência, a técnica e a indústria é extremamente relevante para a manutenção da sociedade de risco, dado que é por meio dessa conexão que são determinadas decisões relacionadas aos impactos produzidos pela própria sociedade.

Longe de menosprezar a relevância do conhecimento científico para o desenvolvimento humano, ante ao quadro exposto, constata-se que é necessário reconhecer esse paradigma tecnocientífico que apresenta uma nova forma de ciência que não só influi nas decisões políticas, como também as dificulta diante da dúvida, da falta ou da morosidade para apresentar uma informação.

Assim, a incerteza gerada dificulta, além da deliberação política, o próprio Direito, fato que revela outras perspectivas da ciência e torna o horizonte ainda mais obscuro.

1.2 O DIREITO DIANTE DE UM CONTEXTO DE INCERTEZA

Como exposto, a concentração da pesquisa em determinados grupos, a perda da liberdade do cientista e a inversão da ordem entre ciência e técnica são os fatores que caracterizam um novo paradigma: a tecnociência. Ela não somente influencia as decisões políticas, como também delimita as alternativas que comporão a deliberação (PARDO, 2015).

Embora política e Direito não se confundam, salvo em regimes autocráticos, há uma nítida vinculação entre os dois, uma vez que, diante da coexistência, um influi no outro (CASTRO, 2017).

Assim como o Direito acontece dentro de um projeto político definido, aqueles que determinam o que ele é, não só intelectualmente, mas também na prática, intervêm no funcionamento da sociedade e na atuação do próprio Estado (CASTRO, 2017).

Desse modo, o conhecimento científico também impacta o Direito, enquanto conjunto de normas e instituições responsáveis pela regulação das relações sociais, o que revela um outro aspecto da ciência.

Em razão da prosperidade e da certeza que emanava do desenvolvimento das pesquisas, a ciência, por muito tempo, representou uma importante base e ponto de referência para o Direito (PARDO, 2015).

(30)

Sendo assim, o sistema jurídico foi construído e pautado no princípio da segurança, o que pareceu suficiente até a formação de um outro tipo de sociedade: a de risco (PARDO, 2015).

Com a extinção da verdade científica absoluta, o desenfreado desenvolvimento tecnológico, bem como todos os diversos fatores que caracterizam a sociedade de risco, formou-se um novo contexto e por conseguinte, uma nova relação entre a ciência e o Direito, cujas características dificultam a operação do sistema jurídico.

1.2.1. A segurança enquanto alicerce do sistema jurídico e a sua relação com a ciência

O Leviatã, termo usado por Thomas Hobbes em sua obra homônima, constitui a representação da segurança do Estado (PARDO, 2015). A partir da inauguração da ideia que acompanha a figura do Leviatã, foi estabelecida uma lógica pautada na certeza que resultou na formação de um sistema político-jurídico baseado no princípio da segurança jurídica, cujo teor está relacionado à certeza em tudo aquilo que serve de mecanismo para a perpetuação do sistema (PARDO, 2015).

Nos últimos três séculos, o Direito se pautou na segurança das suas leis, dos contratos, dos procedimentos e das resoluções da Administração Pública, isto é, fundou-se na certeza (PARDO, 2015). Essa segurança jurídica não tem sido apenas um pilar do Direito, mas também um importante elemento para o desenvolvimento das atividades econômicas, visto que os empresários, os trabalhadores e os consumidores demandam segurança jurídica para firmar as suas relações (PARDO, 2015).

Consoante Pardo (2015), essa necessidade de obter segurança está diretamente relacionada à ciência, principalmente aos avanços dos séculos XVIII e XIX, período de diversas descobertas importantes, tendo em vista que os avanços científicos exerceram influência sobre vários juristas, inclusive, sobre aqueles responsáveis pelo início da construção do sistema jurídico que ainda sobrevive.

Assim, as leis reguladoras da sociedade passam a ter como modelo as leis da natureza que eram enunciadas de forma matemática pela ciência, sendo elas o alicerce da ordem jurídica, pois representavam a certeza e a segurança, valores essenciais à época (PARDO, 2015). Entretanto, a partir do primeiro terço do século XX, inicia-se o desmantelamento da

(31)

segurança oriunda do conhecimento científico, haja vista que a certeza passou a ceder lugar às probabilidades (PARDO, 2015).

Segundo Pardo (2015), o fato da certeza deixar de ser um dos propósitos da ciência pode ter decorrido de duas razões: a ciência percebeu que muitas das suas verdades não são tão absolutas, por isso, buscou se distanciar de afirmações categóricas; o conhecimento científico passou a ser subordinado à técnica, sendo guiado pelos critérios de utilidade e rentabilidade e não mais pela mera investigação, formando-se o que já se denominou de tecnociência.

Diante dessa mudança, o Direito não só perdeu a ciência enquanto referência de garantia como também a viu se transformar na principal fonte de incertezas, o que se mostra totalmente incompatível, uma vez que cabe ao Direito decidir, gerar, resolver e conservar certezas (PARDO, 2015).

1.2.2 A nova relação estabelecida entre o Direito e a ciência: o mergulho na incerteza

Ao mesmo tempo em que a ciência deixa de representar a certeza e constituir uma base para as decisões do Direito, o desenvolvimento tecnológico vem acompanhado de uma série de riscos (PARDO, 2015).

Desse modo, observa-se que o ordenamento jurídico articulado para gerar qualquer resposta por meio dos seus mecanismos cuidadosamente planejados e inseridos em um sistema pautado na segurança jurídica se mostra acuado pela onda de riscos formada na segunda modernidade, pois, ao tentar impor a sua estrutura, é engolido pela complexidade da incerteza (PARDO, 2015).

De forma paradoxal, a ciência produz as incertezas, visto que é ela que possibilita a expansão da tecnologia, e não as soluciona, mas sim disponibiliza probabilidades ou requer um longo lapso temporal para oferecer algum tipo de resultado que apresente o mínimo de segurança e seja capaz de exterminar a situação de incerteza (PARDO, 2015). Contudo, como o Direito possui um prazo não prorrogável para regular as questões, não pode aguardar uma possível solução (PARDO, 2015).

Diante disso, consoante Pardo (2015, p. 16), sendo compelida a regular essas situações desprovidas de certeza,

(32)

essa ordem jurídica tão segura, esse Leviatã tão arrogante, começa a mostrar seu desconcerto com as incertezas que o cercam e que provêm também, paradoxalmente, dos domínios que foram considerados mais firmes e inquestionáveis: os domínios da ciência.

Porém, ainda que inserido em um contexto de incerteza, o Direito possui o dever de decidir, o que faz sob a pressão de duas condições: a velocidade com que o desenvolvimento tecnológico cria novas situações de incerteza e o sistema jurídico “engessado” que possui dificuldade de operar naquilo que corresponde ao oposto do seu fundamento, qual seja, a segurança jurídica (PARDO, 2015).

O fato do Direito ser desafiado a regular circunstâncias fáticas cobertas pela incerteza científica decorre da nova relação firmada entre ciência e Direito, a qual, por sua vez, está vinculada, principalmente, a três pontos (PARDO, 2015).

O primeiro diz respeito à sociedade de risco que é caracterizada, sobretudo, por estar “envolta em um denso tecido tecnológico” e enfrentar os riscos criados por ela mesma (PARDO, 2015, p. 48).

O segundo se refere ao que pode ser denominado de “linha reflexiva da investigação científica e sua aplicação tecnológica” que tem como objetivos o conhecimento e o controle das condições necessárias para a conservação da vida humana, o que o torna “o próprio ser humano objeto de intervenção tecnológica” (PARDO, 2015, p. 48-49).

Por fim, o terceiro ponto corresponde ao conhecimento dos fenômenos naturais que antes eram imperceptíveis e imprevisíveis, mas que, por agora serem conhecidos, demandam intervenção humana para controlá-los ou evitá-los (PARDO, 2015). Nesse sentido, a alimentação representa um exemplo claro, uma vez que, se anteriormente era algo que dependia da natureza, hoje, evidencia-se a sua dependência da indústria, cuja configuração ocorre por meio de decisões humanas (PARDO, 2015).

Isso posto, Pardo (2015) salienta que o Direito não está no lado oposto do progresso científico e que tampouco se ignora os resultados positivos dele decorrente. Na verdade, esse progresso e todos os benefícios que dele derivam foram incentivados por todo o aparato estatal nos últimos dois séculos (PARDO, 2015). E agora, o que se verifica é que o desenvolvimento científico e tecnológico ampliou o espaço da decisão e intervenção do ser humano, o que implica na participação do Direito, visto que, onde há responsabilidade humana, existe demanda da interferência jurídica (PARDO, 2015).

(33)

Considerando o cenário descrito, o debate acerca da atuação do Direito frente à incerteza tem sido bastante desenvolvido.

Segundo Lemos (2006) a saída pode estar na preservação do antigo instrumental aliada à criação de um novo paradigma jurídico. O autor alerta que, por mais que possa parecer estranho, a própria física realizou algo semelhante ao classificar o estudo em dois aspectos, quais sejam, a macrofísica e a microfísica (LEMOS, 2006).

Dessa forma, no Direito, poder-se-ia pensar na existência, de forma simultânea e paralela, de dois planos: o macrodireito (incumbido de regular as relações tradicionais por meio das bases clássicas) e o microdireito (responsável pelas relações inerentes à hipermodernidade mediante novos paradigmas racionais) (LEMOS, 2006).

Por outro lado, Silva (2004) sugere a aplicação do princípio da precaução como uma forma de concretizar uma espécie de segurança suplementar que provoca o questionamento do desenvolvimento das atividades inerentes à sociedade atual.

De maneira oposta, Pardo (2015) reprova o princípio da precaução quando este não é aplicado em conjunto com as normas estabelecidas, mas como principal fundamento de uma decisão, pois, segundo o autor, essa utilização, ao suspender o sistema jurídico, representa verdadeiro estado de exceção.

Além disso, para Pardo (2015), o princípio da precaução é a demonstração mais evidente da orientação científica adotada pelo Direito, uma vez que o sistema jurídico consolidado perde espaço para os ditames científicos e tecnológicos, os quais se tornam responsáveis pelos rumos a serem escolhidos.

Desse modo, é sugerida uma linguagem própria do Direito que seja pautada nas probabilidades e não na certeza científica, de modo que seja possível “resolver as questões que o próprio Direito tem na sua frente e que não poderiam ficar envolvidas em uma situação de incerteza instável e permanente” (PARDO, 2015, p. 197). Sendo assim, a decisão seria baseada em presunções legais que possuem como finalidade a “proteção de um sujeito, um bem jurídico ou uma posição determinada que poderia ver-se desfavorecida ou debilitada pela situação de incerteza”, há uma aspiração pela equidade (PARDO, 2015, p. 198). Essas presunções podem ser baseadas em uma autoridade científica específica escolhida pelo legislador, de modo a evitar a incerteza que poderia derivar da comunidade científica em geral (PARDO, 2015).

(34)

Beck (2011), ao analisar para além do ordenamento jurídico, considerando a insuficiência do sistema político e a ingerência do conhecimento científico, sugere uma maior participação nas decisões vinculadas ao progresso de modo que as questões se tornem acessíveis ao público e se submetam à responsabilidade parlamentar, o que seria possível por meio da subpolítica.

O termo subpolítica significa “moldar a sociedade de baixo para cima”, sendo ela caracterizada pela participação dos mais diversos grupos, entre cidadãos, movimentos sociais e outros, na organização da sociedade, fato que impacta diretamente a política convencional (BECK, 1997, p. 35).

Portanto, a subpolítica, diferente da política, possibilitaria a participação de atores externos ao mundo político no planejamento social, sendo que, além dos agentes coletivos e sociais, os próprios indivíduos poderiam competir pelo “poder de conformação emergente do político” (BECK, 1997, p. 34), o que impactaria positivamente o Direito.

Independentemente do caminho a ser seguido, a questão em comum entre os mais diversos autores é que o Direito precisa regular as situações inseridas em um contexto de incerteza, uma vez que a sua posição vincula as instâncias políticas, as quais, por sua vez, tomam decisões que afetam a vida das pessoas.

O quadro se torna ainda mais gravoso quando os sujeitos das relações que se estabelecem na sociedade de risco são naturalmente vulneráveis, como é o caso dos consumidores.

1.3 A DUPLA VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR

Como exposto, na sociedade de risco, o Direito se encontra refém de uma orientação científica que não lhe garante segurança como outrora, mas tão somente imprecisão, o que dificulta a sua atuação, porém, ao mesmo tempo, não pode ser razão para incapacitá-lo de regular temas inadiáveis, bem como de salvaguardar os direitos dos indivíduos (PARDO, 2015).

Essa nova concepção do Direito está vinculada à sociedade de risco que, por sua vez, está ligada à sociedade de consumo, todos esses elementos são importantes, pois demonstram o quanto o consumidor está exposto às consequências do modelo social no qual está inserido.

(35)

À vista disso, Benjamin, Marques e Bessa (2007) esclarecem que as transformações na maneira de produzir e comercializar inseridas nas três revoluções industriais estão diretamente relacionadas à formação da sociedade de consumo e à posição de vulnerabilidade na qual o consumidor foi submetido.

Enquanto cisão inicial do Direito, a primeira revolução, conhecida pelo carvão e pelo aço, trouxe a massificação, a industrialização e consequentemente, a despersonalização da produção, bem como, em virtude do progresso do transporte, a distribuição de bens de consumo (BENJAMIN, MARQUES E BESSA, 2007).

Na segunda revolução, em virtude do taylorismo e do fordismo , houve a ampliação 4 da produção e da distribuição, além da massificação das contratações por meio dos contratos de adesão, o que potencializou a despersonalização da produção e da relação contratual (BENJAMIN, MARQUES E BESSA, 2007).

Por fim, a terceira revolução, identificada pela informatização e pela globalização da economia, representou a segunda cisão, pois revelou a incapacidade do Direito de atribuir soluções às questões, sendo percebida como uma verdadeira crise de legitimação que agravou a posição de vulnerabilidade do consumidor (BENJAMIN, MARQUES E BESSA, 2007).

Essa sociedade de consumo formada ao longo das três revoluções mescla-se à sociedade de risco, uma vez que o surgimento dos riscos se vincula à produção em massa (BAGGIO, 2010).

Nesse sentido, Marques (1998, p. 49) destaca que, na sociedade de massa, em virtude do sistema de produção e de distribuição em larga escala, por razões de economia e praticidade, o comércio se tornou despersonalizado e a forma de contratação passou a ser padronizada.

A despersonalização e a massificação estão diretamente relacionadas aos riscos que o consumidor está exposto e por conseguinte, ao agravamento da sua vulnerabilidade. Nessa perspectiva, o caso do Ford Pinto se mostra um importante exemplo para ilustrar de que forma os interesses do mercado podem se sobrepor aos direitos do consumidor.

4​Ribeiro (2015, p. 66) explica que o taylorismo é caracterizado pela “gerência científica do trabalho” e “pelos

métodos de experimentação do trabalho, regras e maneiras padrões de executar o trabalho”, sendo essas regras “obtidas pela melhor equação possível entre tempo e movimento”. O fordismo, por sua vez, também possuía o controle do processo de trabalho como base e intensificou a ideia de Taylor com a inserção da esteira rolante, o objetivo não se limitava ao domínio do trabalho, mas abrangia também a adesão dos trabalhadores.

(36)

O Ford Pinto foi lançado na década de 70 nos Estados Unidos e tinha como característica principal o grande espaço interno, mas, ainda assim, conseguir ser compacto (BASSO, 2019). Ocorre que, para ser mais espaçoso, o seu tanque de combustível foi inserido na parte traseira do carro, de modo que a colisão nessa parte do automóvel se tornou capaz de provocar a explosão imediata (BASSO, 2019).

Mais tarde, descobriu-se que a Ford detinha conhecimento dos riscos, pois já havia analisado os custos com possíveis indenizações de vítimas das explosões com os automóveis, sendo que, como os estudos apontaram que seria mais barato indenizar os consumidores do que evitar mediante um ajuste em todos os carros, a Ford preferiu se abster de qualquer correção (BASSO, 2019).

Como se não bastasse o exposto, diante das relações massificadas e naturalmente desequilibradas, o indivíduo se torna um objeto passível de manipulação (BAGGIO, 2010). Sendo assim, os riscos são integrados ao próprio funcionamento da sociedade, pois, além de estarem relacionados à ciência e à tecnologia, estão presentes nas decisões resultantes do processo de escolha dos bens de consumo (BAGGIO, 2010).

Nessa lógica, Baggio (2010) esclarece que o vínculo entre o consumo e os riscos pode ser verificado no momento da tomada de decisão pelo consumidor, haja vista que a escolha de qual produto ou serviço adquirir é fortemente influenciada, sobretudo, pela publicidade.

Ainda a respeito desse aspecto, é interessante salientar que, segundo Bauman (2008), essa sociedade de consumidores estimula determinado estilo de vida, logicamente ligada a uma estratégia de consumismo, e ignora todas as demais alternativas. Há a adoção de um modelo que incentiva a procura por um tipo de mercado específico pelos indivíduos que, na tentativa de obterem a cobiçada inclusão aos círculos sociais, desejam o que é posto como necessário para a sua sobrevivência (BAUMAN, 2008).

Esse condicionamento pode ser feito de forma explícita, isto é, por meio do reforço dos interesses intitulados como objetivos da própria nação ou de modo oblíquo, método característico da sociedade de consumidores, mediante o estímulo de “certos padrões comportamentais, assim como pela adoção de determinados modelos de solução de problemas” que garantem a manutenção do sistema (BAUMAN, 2008, p. 90).

Assim, o poder da influência vinculado aos padrões estimulados pode fazer com que o consumidor não compreenda ou até mesmo não consiga visualizar as possíveis consequências de determinado produto ou serviço, fato que se mostra bastante gravoso, tendo em vista, que,

(37)

como explica Baggio (2010), muitas vezes, os riscos da atividade empresarial são transferidos ao consumidor quando não há informações suficientes sobre aquilo que é ofertado, o serviço não é prestado de forma adequada ou quando o produto não preenche as expectativas do consumidor.

Frutas, verduras e hortaliças são exemplos de produtos desprovidos de informação adequada, bem como daquele que não atinge a expectativa do consumidor, uma vez que, por serem produzidos com agrotóxicos, ao invés de constituírem importantes elementos de uma alimentação saudável, podem provocar malefícios à saúde, conforme pesquisas já constataram.

De igual modo, os alimentos acrescidos de agrotóxicos fazem parte de um modelo agrícola adotado em detrimento de um mercado menos dependente dessas substâncias químicas, o que se coaduna com aquilo exposto por Bauman (2008), uma vez que existe um padrão que é fomentado e encarado como a única solução para o problema das pragas que atingem a agricultura, ou seja, há uma verdadeira política de consumo focada na obrigatoriedade de emprego de agrotóxicos nos alimentos que impede o desenvolvimento de um outro tipo de mercado que, embora exista, ainda é muito incipiente, como será melhor abordado adiante.

Frente ao exposto, denota-se que o consumidor, naturalmente em desvantagem na relação de consumo, seja em razão do aspecto técnico, econômico ou jurídico, encontra-se também vulnerável aos riscos relacionados aos produtos e serviços expostos no mercado, isto é, em uma sociedade de risco e de consumo, o consumidor é sujeito duplamente vulnerável, o que, apesar de ser preocupante, ainda é relegado a um segundo plano pelo Estado.

Por mais que o risco zero não seja algo alcançável e que “a única certeza na sociedade de risco seja a incerteza” (LOPEZ, 2010, p. 1.225), o Estado, seja por meio do sistema jurídico ou do sistema político, não pode se furtar da proteção conferida pela legislação brasileira ao consumidor que se vê obrigado a consumir, diariamente, um produto essencial, mas que é capaz de atentar contra a sua saúde: o alimento (acrescido de agrotóxico).

Tendo isso em vista, o capítulo seguinte demonstrará de que forma os agrotóxicos foram inseridos na agricultura, qual é a dimensão, em números, do seu emprego no Brasil e por fim, as consequências negativas que podem decorrer do seu consumo a longo prazo, de modo que seja possível visualizar concretamente a vulnerabilidade que o consumidor está exposto.

(38)

2 OS MALEFÍCIOS DECORRENTES DOS AGROTÓXICOS

Como evidenciado no capítulo anterior, a formação da sociedade de risco mudou a concepção dos riscos, pois esses passaram a ser atemporais, invisíveis e desprovidos de limites territoriais (BECK, 2011). Tal mudança impactou o Direito e consequentemente, a atuação do Estado, de modo que a ciência, incapaz de atribuir respostas precisas às dúvidas inerentes ao modelo social, ofuscou os mecanismos de decisão tradicionais e implementou um sistema científico-técnico-econômico (BECK, 2011; PARDO, 2015).

O consumidor, parte dessa sociedade de riscos e também de consumo, encara os riscos, muitas vezes, sem conhecê-los, enquanto as autoridades competentes, mergulhadas em discussões intermináveis, não alcançam um denominador comum e uma resposta capaz de garantir o mínimo de proteção aos direitos básicos do consumidor, sendo o emprego de agrotóxicos nos alimentos um claro exemplo desse perigoso ciclo.

Desde a década de 60, com a Revolução Verde que surgiu acompanhada de promessas de modernização do campo, elevação da produção e eliminação da fome, o sistema agrícola brasileiro está pautado na utilização de agrotóxicos (LAZZARI; SOUZA, 2017; SANTILLI, 2009).

Entre os anos de 2007 e 2014, a comercialização de agrotóxicos no Brasil saltou de 623.353.689 quilogramas para 1.552.998.056 quilogramas, sendo o glifosato o agrotóxico mais comercializado (BRASIL, 2018).

Apesar disso, não é possível confirmar que existe uma larga produção de alimentos voltados ao mercado interno, um dos objetivos da Revolução Verde, o que está relacionado ao próprio modelo de agricultura que privilegia as monoculturas, sobretudo da soja, em detrimento de alimentos para a população (BOMBARDI, 2017).

Ademais, a modernização do campo e por conseguinte, o emprego massivo de substâncias químicas resultou no consumo de alimentos com resíduos de agrotóxicos, como demonstrou o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) desenvolvido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), sendo que das 12.051 amostras somente 5.062, isto é, 42% estavam livres de agrotóxicos (ANVISA, 2016).

Perante o exposto, a despeito das dificuldades e incertezas científicas, após visualizar o contexto no qual a sociedade brasileira está inserida, faz-se necessário analisar de que forma

Referências

Documentos relacionados

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

No entanto, maiores lucros com publicidade e um crescimento no uso da plataforma em smartphones e tablets não serão suficientes para o mercado se a maior rede social do mundo

Desta forma, foram criadas as seguintes hipóteses de investigação: H1 – O compromisso organizacional e o engagement são diferentes para as categorias dos militares dos

utilizada, pois no trabalho de Diacenco (2010) foi utilizada a Teoria da Deformação Cisalhante de Alta Order (HSDT) e, neste trabalho utilizou-se a Teoria da

Desta forma, conforme Winnicott (2000), o bebê é sensível a estas projeções inicias através da linguagem não verbal expressa nas condutas de suas mães: a forma de a

Neste estudo foram estipulados os seguintes objec- tivos: (a) identifi car as dimensões do desenvolvimento vocacional (convicção vocacional, cooperação vocacio- nal,

de lôbo-guará (Chrysocyon brachyurus), a partir do cérebro e da glândula submaxilar em face das ino- culações em camundongos, cobaios e coelho e, também, pela presença