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Parte II – Estudo Empírico

Capítulo 4 – Contextualização do Estudo

4.1. Caracterização do meio

A população que integra este estudo faz parte de uma comunidade, o tão conhecido “Tarrafal” – inserido no Bairro São João de Deus, no Porto. Este bairro localiza-se no extremo norte da freguesia de Campanhã, a mais extensa em área e a segunda mais populosa com cerca de 45 000 residentes (dados de 1996).

Imagem 1 – Azulejo com o nome do bairro

Em termos geográficos Campanhã encontra-se delimitada, a norte pelo concelho da Maia, a sul pelo Rio Douro, a poente pelas freguesias de Paranhos e Bonfim e a nascente pelo concelho de Gondomar.

Cerca de um quinto da habitação social, existente no concelho do Porto, foi edificada nesta freguesia, principalmente no decurso dos anos sessenta e setenta, entre os quais se destaca o bairro de São João de Deus, sendo esta freguesia considerada como “parente pobre” da cidade. Na verdade, e de acordo com o Estudo da Incidência da Pobreza nos bairros de habitação social, realizado em 1999, pela Câmara Municipal do Porto, as freguesias onde a pobreza atingia valores mais elevados eram as da Foz do Douro, Aldoar e Campanhã, com taxas de incidência que rondam os 50% (cf. Pimenta, 2001:22-74).

É o bairro de habitação social mais antigo (1944), dos nove existentes na freguesia de Campanhã, sendo também um dos que apresenta maior densidade populacional (cf. Pimenta et al, 2001:16). Em 2001, podemos encontrar num testemunho dado por um grupo de estudiosos da etnia cigana, que o agregado populacional que constituía o Bairro S. João de Deus era muito heterogéneo e multiétnico, contando com “cerca de 5000 pessoas, sendo a etnia cigana, a mais numerosa (delas), com cerca de 3500 pessoas” (cf. Sousa, 2001:41). A sua edificação resultou de sucessivas intervenções construtivas que, obedecendo a filosofias de construção e políticas de realojamento

diversas, contribuíram para a diversidade, actualmente visível, ao nível da sua estrutura habitacional.

Habitações unifamiliares constituem o núcleo habitacional mais antigo (bairro velho), tendo sido edificadas em 1944, de acordo com a filosofia que presidiu à construção de casas de habitação social, durante o Estado Novo, para alojar populações de baixo rendimento económico, provenientes de zonas degradadas da cidade do Porto. Estas casas,

ocupam uma pequena parte da área total do bairro – Ruas 1, 2, 3, 4, 5, 6 – aquela que, dada a configuração e distribuição das habitações, apresenta menor concentração populacional, revelando um melhor estado de conservação.

Imagem 2 – Habitação unifamiliar

As construções em bloco, predominantes em número e área ocupada, foram construídas por fases: 1956, 1965, 1968, 1976, 1991,e 1994, de acordo com duas tipologias distintas de habitação social.

Imagem 3 – Blocos de habitação

Em 1956 ocorreu a transferência de responsabilidades, ao nível das políticas de habitação social, para o poder camarário. Desta forma, foram construídos os três primeiros blocos 1, 2, e 3, de 3 ou 4 pisos, sem áreas verdes, nem acessos privados, devido à necessidade de rentabilizar custos de construção, através da maximização do número de população alojada, a qual, na sua maioria, correspondia a famílias ciganas provenientes da localidade próxima do bairro –

Areosa, onde estas se encontravam vivendo em barracas de pedra e tendas, em terreno cedido por uma entidade particular.

Estas famílias tiveram de ser realojadas, neste bairro, devido à desapropriação do terreno em que se encontravam instaladas, para possibilitar a construção da Avenida Fernão de Magalhães (cf. Meireles e Rodrigues, 1991:20-64).

A fixação destas famílias, naquela zona, encontra-se relacionada com a proximidade de vias de comunicação que ligam o Porto aos principais centros urbanos do norte do país, bem como a Espanha, pela Galiza, facto que facilitava o acesso aos lugares de concentração de unidades industriais dos ramos têxtil, vestuário e calçado, produtos estes que permitiam ser adquiridos, pelos ciganos, e se destinam ao comércio ambulante e aos mercados de escoamento dos mesmos, dada a importância das feiras na economia de alguns concelhos da região norte.

Existe ainda, no bairro, uma estrada de 1895, que abre a possibilidade de comunicação com as diversas zonas da cidade e outra artéria, tipo travessa, muito estreita e praticamente desconhecida, que une o bairro ao exterior e que é muito utilizada por traficantes de droga e toxicodependentes vulgarmente conhecida pela “Via do Calvário”.

Imagem 4 – “Via do Calvário”

As comunicações, entre o bairro e as restantes zonas da cidade, fazem-se através de transporte público rodoviário.

Numa das entradas do bairro deparamo-nos com uma linha de comboio activa, sem qualquer protecção, um largo e um muro onde se podem ver crianças e adolescentes a deambular, sem estarem a desenvolver nenhuma actividade

concreta a não ser incomodarem os transeuntes, uma grande parte deles toxicodependentes que ali se dirigem para ter acesso a estupefacientes que ali se comercializam.

Imagem 5 – Linha de comboio activa

As fases subsequentes de construção, até 1976, mantiveram a mesma tipologia de construção, o modelo característico da generalidade dos programas de habitação social então postos em prática pela Câmara Municipal do Porto e destinavam-se, prioritariamente, a famílias desalojadas das “ilhas”, proporcionando o acolhimento, mas seguindo padrões de baixa qualidade, inseridos num sistema provisório de ocupação, por parte de realojados (cf. Meireles e Rodrigues, 1991:43-54).

De acordo com versões de alguns moradores, o bairro seria ainda utilizado pela autarquia no quadro das medidas de repressão e controle social accionadas relativamente aos moradores dos bairros degradados ou de habitação social, sendo apresentado como o local para onde eram coercivamente transferidos aqueles que apresentavam comportamentos socialmente reprovados. Daí terão resultado as designações do bairro vulgarmente conhecidas como o ”Tarrafal do Porto”, sendo o bloco H conhecido como o “bloco dos condenados”, no qual, segundo diversas versões, seriam alojados de forma compulsiva e a título primitivo os moradores que, nos bairros sociais de onde provinham, tinham infringido as normas que regulam o funcionamento dos vários bairros camarários da cidade.

Os edifícios construídos na década de 90, denominados “rosto novo” revelavam já algumas preocupações com a qualidade dos acabamentos e materiais e com o recurso a aspectos arquitectónicos favorecedores de maior

privacidade. Cada apartamento já dispunha então de uma varanda própria, contrariamente ao que acontecia com os anteriores em que as varandas eram exteriores, servindo de acesso comum às habitações dos prédios, tal como os corredores e escadas exteriores.

Em resultado dos sucessivos processos de realojamento e fixação, coexistem actualmente, neste bairro, três grandes grupos populacionais: um grupo formado por um conjunto populacional de origem nacional, não referenciado etnicamente que corresponde ao grupo mais numeroso, distribuído entre o “bloco velho” e a área dos blocos de habitação; outro grupo de população cigana que, embora também possua nacionalidade portuguesa, é sobretudo identificado pela sua origem étnica e encontra-se maioritariamente concentrada na zona nordeste do bairro, nomeadamente nos blocos 1, 2 e 3; e por último um grupo de população, de origem africana, na sua maioria cabo-verdiana, a qual corresponde ao grupo menos numeroso e mais recente, em grande parte concentrado nos blocos habitacionais denominados “rosto novo” (cf. Meireles e Rodrigues, 1991:25-74).

O primeiro grupo é normalmente identificado pelos outros dois por recurso a designações como “portugueses” ou “senhores”.

Ao longo das várias ampliações este bairro acolheu uma população cada vez mais heterogénea de recursos económicos e culturais escassos. Tal contribuiu para a formação de guetos provocando estigmas sociais difíceis de transpor para aqueles que lá coabitam. Tal depreende-se facilmente quando se faz uma visita, sendo fácil constatarmos os motivos que o definem como o bairro mais problemático da cidade do Porto.

Dado o seu estado de degradação, a Câmara Municipal do Porto considerou prioritário a reabilitação urbana deste bairro. O plano de intervenção “arrancou” em Abril de 2002 e segundo o Vereador do Urbanismo Dr. Paulo Morais, “a requalificação/reabilitação do bairro passa pela (…) demolição de alguns blocos de casas, a diminuição da densidade demográfica e a construção de novas vias de comunicação e equipamentos colectivos (…); existindo ainda a possibilidade de (…) mudar o nome do Bairro” (cf. Pinto, 2002:43). Desde o

ano de 2004 está a ser alvo de intervenção, no âmbito do Projecto de Desenvolvimento Integrado Urban II, aprovado pela Comissão Europeia. O objectivo desta intervenção, não é apenas melhorar o aspecto do bairro, mas também torná-lo mais aberto e proporcionar à população residente, a tão desejada e esperada qualidade de vida.

Imagem 6 – Demolição de um bloco habitacional

Seria lógico dizermos que após o processo de reconversão tivéssemos um bairro com melhor aspecto, no entanto ao visitarmos o bairro de São João de Deus, continuamos a depararmo-nos com uma realidade indigna para um país civilizado.

Apesar de uma parte das habitações já ter sido demolida, as que se encontram, ainda de pé, estão completamente degradadas, ao ponto de nas entradas existir uma linha de tijolos que parece indicar que ali já não devia morar ninguém.

As escadas encontram-se sujas e sem iluminação, as portas partidas, sem janelas em muitas habitações. As paredes sem tintas com pedaços de cal a caírem onde se vislumbram marcas de armas outrora utilizadas.

Imagem 9 – Paredes degradadas

Salpicadas de “graffitis” e inscrições insultuosas à polícia. As caixas do correio são inexistentes, sendo visível apenas uma estrutura em madeira oca completamente vandalizada. Tudo isto confere ao local um aspecto demasiado assustador que não parece pertencer à nossa realidade.

Imagem 10 – Exemplo de graffitis Imagem 11 – Insultos escritos à polícia

Os jardins são montes de entulho, bocados de betão partido, carros esmurrados (quase uma sucata), seringas e pratas no chão. O ar que se respira não cheira a flores, mas sim a água estagnada e esgotos que correm nas ruas, atravessando o bairro, devido à falta de saneamento. Também não existem espaços verdes e o lixo aglomera-se nas ruas.

Podemos ainda encontrar animais como, porcos, galinhas, ovelhas e cavalos a passear pelo bairro, morando em conjunto com as pessoas, dentro das casas, situação que nos causou alguma estranheza quando realizámos, “in loco” a recolha de elementos para a concretização deste estudo.

Imagem 14 – Animais à solta

Como não bastasse o cenário que atrás foi descrito, as crianças e jovens têm ainda que coexistir com inúmeros toxicodependentes, num estado muito degradante, que passam o dia a deambular pelas ruas tentando arranjar mais um comprador para o dealer X ou Y (os capinadores), para que estes lhes dêem, como recompensa pelo seu trabalho mais uma dose e, como há muito desistiram de viver, moram em barracas de zinco que eles próprios construíram em certas zonas do bairro, para não terem de se deslocar. A tudo isto só nos resta atribuir a classificação de cenário “aterrador”.