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Em terras onde nasce o rio Trilogia Oiticica, há riquezas que valem ser inventariadas. A trajetória artística de Mariana Muniz coleciona encontros que, de certa forma, resumem boa parte do histórico da dança de sua geração.

Anos 1960 e 1970, formação em danças clássicas que se inicia em Recife e se completa no Rio de Janeiro, na então Escola de Danças Clássicas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro21. Balé clássico, dança espanhola, ritmoplastia, jazz,

história da dança, história da arte, didática, coreografia, o neoclássico de George Balanchine e dança moderna. A multiplicidade artística se mantém como característica de sua formação de base e se amalgama às diferentes paisagens onde o corpo de Muniz imerge ao longo da vida: o solo argiloso de Caruaru, a aridez de Itabaiana, a sinuosidade do Rio de Janeiro e a concretude de São Paulo se integrarão, nos anos seguintes, à frieza de uma Paris de poucos olhares amigos e uma Nova York incandescente.

Na mesma escola onde se formou, começa sua experiência como docente, ofício que leva integrado à sua prática artística até os dias de hoje. Lá conhece Klauss Vianna, que a convida a integrar o Teatro do Movimento de Klauss e Angel Vianna22, Muniz absorve a disposição para vivenciar o movimento, o

pensamento sobre ele e o sentido de se fazer arte em diálogo constante com a vida, além da constante busca de um autoconhecimento gerado nas experimentações e na pesquisa artística. A proposição do casal de uma prática pedagógica e cênica que deve ser vivenciada no corpo passa a se refletir dali em diante no ethos de Mariana Muniz.

21 Atualmente nomeada Escola de Dança, Artes e Técnicas do Theatro Municipal Maria Olenewa,

que faz parte da Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro, é a mais antiga escola de dança do país. Ao longo de sua existência, vem sendo responsável pela formação de importantes nomes brasileiros que atuam no balé como bailarinos, coreógrafos ou maîtres no Brasil e no exterior.

22 Klauss e Angel Vianna fundam o Grupo Teatro do Movimento em 1976 no Rio de Janeiro, com

o objetivo de diluir as fronteiras entre dança e teatro. Propõem a noção de bailarino pensante e atuante: aquele que, por meio de um processo de criação, escolha dizer com o corpo o que tem a transmitir.

A década de 1970 se encerra com Muniz dançando no Grupo Coringa23, onde

fundamenta seu sentido pessoal de dança contemporânea na mistura de linguagens e técnicas, a liberdade de exploração e de pesquisa de movimentos e o caráter de contestação de algumas de suas criações. É a coreógrafa Graciela Figueiroa quem a introduz ao Tai ji Quan - sistema tradicional chinês que integra condicionamento físico, mental e artes marciais – a primeira das técnicas orientais que integrarão o cabedal de práticas holísticas de Muniz. As técnicas de Martha Graham e Merce Cunningham24, praticadas em aulas durante

temporada vivida em Nova York no ano de 1980, ampliam suas possibilidades de repertório corporal didático e criativo. O mesmo acontece em viagem a Paris, cinco anos depois, por ocasião de um estágio na companhia de Maguy Marin25,

um dos grandes nomes da dança contemporânea francesa.

A mudança para São Paulo vem por mais uma parceria com Klauss Vianna, que a convidou para integrar o Grupo Experimental do Balé da Cidade de São Paulo, do qual era então diretor. Na mesma época, passa a dar aulas de balé na Escola de Dança Ruth Rachou e, na sequência, integra o elenco da peça teatral Nosso Senhor da Lama, dirigida por Stéphane Dosse, que unia artistas da dança e do teatro. Por influência de Dosse, Muniz passa a investir mais na prática teatral, o que a leva a trabalhar com os diretores Antônio Abujamra, Roberto Lage, Naum

23 Grupo Coringa, criado por Graciela Figueroa em 1977 no Rio de Janeiro, era composto por

bailarinos com formação diversificada, atores, mímicos, acrobatas, músicos e artistas de outras áreas. A partir de propostas interdisciplinares na arte, o grupo buscava maneiras de criar que pudessem ser a síntese entre arte e vida diária.

24 Martha Graham (1894 – 1991) foi uma das principais representantes da dança moderna nos

Estados Unidos no século XX. Sua pedagogia, baseada em princípios como contração e relaxamento, o ciclo respiratório e as espirais da coluna, formou dançarinos e professores atuantes em todo o mundo. Para conhecer mais: http://www.marthagraham.org/

Em parceria com o compositor John Cage, Merce Cunningham (1919-2009) esteve à frente da vanguarda norte-americana no século XX. Aluno e bailarino da companhia de Martha Graham, criou sua própria escola, método e companhia, onde propunha a dança como um movimento orgânico, em sintonia com o acaso, em oposição a um encadeamento lógico de movimentos, como era vista a coreografia até o início do século XX. Para conhecer mais:

http://www.mercecunningham.org

25 Maguy Marin (1951) foi aluna e bailarina de Maurice Béjart na Escola Mudra e no Ballet du

XXe siècle, respectivamente. Influenciada por Pina Bausch, suas coreografias integram a chamada Nova Dança Francesa. Para conhecer mais: http://ramdamcda.org/bio/maguy-marin

Alves de Souza, Jorge Takla e Ulysses Cruz26 nos anos seguintes. Um curto

estágio na companhia de Maguy Marin em Paris em 1985 faz Mariana Muniz intuir que o ambiente competitivo entre bailarinos europeus não se justificaria em sua trajetória pessoal. Ela passa então a participar de uma sequência de espetáculos teatrais produzidos em São Paulo e apresentados em diversas cidades brasileiras. Sua participação lhe rende prêmios como intérprete e coreógrafa na quase totalidade desses espetáculos. Em 1989, Muniz estreia o também premiado Paidiá, primeiro solo de criação própria, inspirado na tradição pernambucana do maracatu e fundamentado na mescla entre dança contemporânea e teatro. Este formato de espetáculo passa a ser recorrente em sua carreira, sempre em parceria com outros criadores (figurinistas, músicos, iluminadores) e criando uma composição própria entre coreografias autorais combinadas com textos curtos de diversos autores que a inspiram.

O fim da década de 1980 marca o início da parceria entre Mariana Muniz e Maria Lucia Lee, pesquisadora das artes do corpo chinesas. Técnicas como Tai Ji Quan 108 Movimentos, Tai Ji Espada, Lian Gong em 18 Terapias e Qi Gong dos Símbolos passaram a integrar as práticas corporais de Muniz. Nos anos 1990, Muniz trabalha com os diretores Ilo Krugli, Ulysses Cruz, Samir Yazbek e Gabriel Vilela27 e começa seu relacionamento na vida e na arte com o arquiteto e

fotógrafo Cláudio Gimenez, com quem passa a criar todos os trabalhos de autoria própria. Muniz e Gimenez fundam a Cia. Mariana Muniz de Teatro e Dança em 2007, que ocupa o Espaço Ghut, sua sede em parceria com Maria Lucia Lee próxima à Avenida Paulista. Mariana e Cláudio passam pelo curso de formação profissional em Eutonia28, terapia somática que expande o olhar

integrado entre corpo, mente e espírito que Muniz cultivava desde sua vivência com Klauss e Angel Vianna. A pedagogia da Eutonia passa a permear não

26 Antônio Abujamra, Roberto Lage, Naum Alves de Souza e Jorge Takla são renomados

diretores teatrais. Para conhecer mais sobre suas carreiras individuais:

http://enciclopedia.itaucultural.org.br

27 Ilo Krugli, diretor, fundador do Teatro Ventoforte. Samir Yazbek, dramaturgo e diretor teatral.

Gabriel Vilela, diretor teatral. Para conhecer mais sobre suas carreiras individuais:

http://enciclopedia.itaucultural.org.br

28 Eutonia: abordagem de educação somática criada pela alemã Gerda Alexander. Promove a

somente as aulas ministradas pela artista, mas sobretudo a prática de treinamento mantida com os bailarinos da companhia.

Mariana tem participação ativa na política cultural da cidade de São Paulo, integrando o Movimento Mobilização Dança que, entre outras conquistas, conseguiu a criação e aprovação da lei no. 14.071/2005, que institui o Programa Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo. Espelhado na criação do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo (lei no. 13.279/02), o programa compromete-se a destinar recursos para pesquisa, produção, circulação e manutenção de companhias estabelecidas na cidade há pelo menos três anos, trabalhando pela difusão, reflexão e formação de novos públicos e criadores em dança contemporânea. Ao ser contemplada pela segunda edição do Fomento à Dança em 2007, a Cia. Mariana Muniz inicia sua pesquisa a partir da obra de Hélio Oiticica. Seu resultado artístico é a Trilogia

Oiticica, formada pelos espetáculos Parangolés (2008), Penetráveis (2010) e Nucleares na Rua (2011). A influência de Oiticica marca a relação de Muniz com

o espaço urbano e a criação coletiva com outros intérpretes em suas obras autorais.

Todos esses encontros se somam no corpo e na criação de Muniz. Os espetáculos de sua autoria possuem um caráter pessoal e expõem a inter- relação entre teatro, diferentes técnicas da dança e práticas somáticas, aliada ao trabalho constante de pesquisa e observação de si e do mundo. Seu amplo universo pessoal unido ao legado artístico de Hélio Oiticica torna o mapa que seguimos aqui amplamente detalhado e ramificado. Um sobrevoo panorâmico nas regiões inventadas pelo artista plástico se faz necessário para a compreensão das proposições de Trilogia Oiticica.