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Para que, afinal, se dança? Dançamos para que os corações se unam. Ah, é difícil, não é? Em todo caso, é para isso que dançamos.

Kazuo Ohno, em Treino e(m) poema (2016)

A preparação do corpo para o encontro com o Outro. O olhar para dentro de si que permite um estado de fluidez que é, ao mesmo tempo, perder-se, encontrar- se, encontrar o outro e reinventar (a cena, a si próprio, o estar “com”). Na desconstrução de identidades, são muitas as barreiras que nos paralisam, algumas vindas de outros corpos dançantes, outras dos espectadores, outras

30 O filósofo Michel Foucault em seu escrito “Tecnologias de si” (1982) analisa os conceitos

desenvolvidos na sociedade ocidental do “cuidado de si”. Ficamos aqui com um pequeno recorte, mas vale a leitura para um aprofundamento no tema.

tantas oferecidas pelo espaço. O outro bailarino vem com proposições que interferem nas suas, que desestabilizam o que seu cérebro projetou de belo na construção virtual do movimento no espaço, interrompe o fluxo de sua musculatura para pontuar com sua própria energia o que extravasa de você; o coreógrafo cola seu desejo à sua movimentação, sugere outros ritmos e texturas, altera direções, recorta e cola a sua criação de acordo com a visão dele; o espaço oferece cheiros, texturas, temperaturas muitas vezes inóspitas: chão irregular, iluminação que cega, vento que entra pelo figurino, alterações desestabilizadoras do construído em ensaio. “Dedico minha vida a compreender meu próprio corpo e a ampliar meu repertório de uso... para vir o Outro e desestabilizá-lo? ”, talvez se pergunte o bailarino. Esta é a condição contraditória do criar: a criação é com o Outro e para o Outro. O corpo é instrumento para que surjam os microcosmos: tempo-espaço de compartilhamento entre seres.

No contato entre corpos que dançam, o filósofo José Gil sugere que haja uma “fusão” dupla: entre a consciência e o corpo, e entre dois corpos. Uma junção que não determina uma perda de qualidades singulares dos corpos, já que cada um só recebe ou emite energia “senão o que melhor lhe convém do outro (que facilita e intensifica o fluxo da sua própria energia) ” (GIL, 2001, p.142). Singularidades se mantém, mas perdas e ganhos são contabilizados nessa troca de energias. Não basta a negociação – cedo aqui para colocar minha vontade ali – mas os momentos de criação coletiva acontecem também (e principalmente, a meu ver) no escuro das ideias, onde os inconscientes se encostam e deixam brotar juntos algo que nem um nem outro intencionara. Outra vez, o perder-se para se encontrar de outra forma: falo do encontro de corpos vibráteis, corpos que habitam a oscilação entre ser e não ser, corpos inacabados, imperfeitos, em constante mutação, permeáveis. “O corpo vibrátil é o corpo do “entrelaçamento”” (FABIÃO, 2010, p.322).

Permeabilidade requer coragem. É mais cômodo nos entrincheirarmos em certezas construídas a partir de pequenos achados: sequências aprendidas e repetidas, posturas que “garantem” certas leituras que o público “precisa” ter. Amplio meu olhar interno e ganho consciência de alguns processos corporais e neles me fio, fechando muitas vezes os olhos diante do outro que dança comigo – não por desrespeitá-lo, mas por receio de perder as conquistas internas que

tanto me custaram tempo e esforço. Jogar-se em um processo colaborativo com parceiros de diferentes históricos e idades para criarmos no espaço urbano, é nos equilibrarmos em uma falésia, sabendo que a queda é certa: o solo é arenoso e escorre com o tempo; caímos juntos num terreno criado por nós, às cegas, à medida que caímos.

Mariana Muniz reflete sobre o medo do Outro no processo de criação de Trilogia

Oiticica. Ela percebe hoje que a permeabilidade para o espaço urbano poderia

ter sido amplificada, que havia um potencial de criação na relação direta com os espaços públicos por onde passaram que acabou dando lugar para coreografias cada vez mais fechadas à medida em que eram repetidas.

Mesmo com todo o trabalho anterior de preparação e de relação com a temática, investigação, leituras e tudo, é mais complexo ficar aberto para o momento, dá muito medo. Então à medida que ele foi mudando, eu fui fechando mais, fui coreografando mais fechadamente [sic] – vai pra cá, vai pra lá, constrói aqui - independente do que o espaço está pedindo naquele momento. Porque o que acontecia quando fazia a experiência de soltar, é que esvaziava muito a intenção, a tensão espacial, o contato, ficava cada um mais na sua viagem, sem conexão. Então era muito inquietante, muito difícil de lidar com aquele vazio. A própria espacialidade da rua gera isso (MARIANA..., 2017).

E como proteger-se do medo paralisante frente ao outro? Como não tensionar os músculos ao tocar no lixo largado no chão das ruas, ao deparar-se com o olhar alterado de uma pessoa em condição de rua que sente seu espaço invadido pela proposição artística? Muniz se recorda de um ensinamento chinês que diz: quando estiver diante de muita gente, trabalhe o estar profundamente sozinho; e quando estiver sozinho, trabalhe o estar profundamente envolvido, conectado com tudo o que está ao redor. Seu recurso para momentos de enfrentamento do medo é “trazer o coração para a barriga”:

Porque se o coração dispara e você fica sem controle (por causa do rim, do medo), seu gestual e sua maneira de estar em cena vão refletir uma profunda desconexão com aquilo que você quer comunicar, você vai ficar perturbado, confuso. E daí você vai transmitir só isso e não aquilo que você se propôs, estudou tanto, batalhou tanto. Para aquilo aparecer límpido, você tem que descansar em você, não deixar que a ansiedade do coração (a palpitação) e o medo te dominem. Tem que esconder isso, esconder no bom sentido, fazer a energia do coração

descer lá para a barriga e se assentar onde você sabe o que é melhor para você, onde seu cérebro intuitivo está trabalhando (MARIANA..., 2017).

Lembro-me com isso de uma passagem do bailarino japonês Kazuo Ohno, em que ele fala da necessidade de cultivar um olhar para dentro de si que nos faça lembrar que nossa vida é a alma irmã do cosmos, para encontrarmos a voz secreta do corpo que mitigue nossas dores:

Se vivermos assim, como alma gêmea do cosmos, aceitando isso, aqui dentro teremos uma força que completa a vida, com o estômago, o intestino, o intestino que produz sangue e ossos, que, ao passar pelos santuários do sangue, faz uma combination de forças com várias partes do corpo. Mas este mundo de hoje usa mais a cabeça. Ao se achar o tal, a ambição se infla, se passa a derrubar os outros, concordam? Quando menos se espera, é guerra. Eu também fui à guerra. Não é bom usar demais a cabeça. Para cuidar bem da vida... dentro da barriga, o intestino, o estômago, eles são o centro. Melhor cuidar bem deles, então (OHNO, 2016, p. 64).

E é justamente com uma citação de Kazuo Ohno que Muniz justifica a necessidade do trabalho intenso sobre o próprio corpo para a superação do medo do Outro, em que ele dizia que, de tanto pensar, ficava com a mente vazia. Descrevo aqui as exatas palavras do mestre:

Eu penso, de manhã até a noite. Penso, repenso e, no fim, fico com a mente vazia. É por isso que falo para jogarem tudo fora e ficarem com a mente vazia – a mente vazia em meio a um amontoado de coisas inúteis, depois de pensar e pensar e pensar. No fundo da mente vazia, o que nos sustenta é o que pensamos, pensamos e repensamos – isso se cristaliza, acaba nela se transformando. O que se pensou torna-se a mente vazia. Esse é meu pensamento. Mas querer atingir a mente vazia partindo do nada é o mesmo que construir castelos no ar (OHNO, 2016, p.62).

Ao reler essa frase de Ohno, me lembrei de outras conversas que tive com Mariana ao longo desta pesquisa, sobretudo de uma anotação em seu diário de bordo datada de 28 de setembro de 2015. Após a finalização de uma oficina de Eutonia que realizava, um dos participantes traz a palavra “vazio” como um estágio que se atinge ao longo da prática somática, onde parece ser possível

acessar todos os movimentos de uma improvisação; local em que se encontram todos os movimentos “renovados, vivificados pelo olhar desde esse lugar chamado VAZIO” (MUNIZ, ANEXO I, p. 23) Muniz encerra a sua escrita sentindo- se identificada com a colocação, já que sente em si um espaço que define como “fonte da juventude” que pode ser atingida depois de um tempo de prática, que pode ser curto ou longo, a depender do dia e do ritmo de trabalho. Os vazios plenos - espaços vagabundos, cheios de descobertas e possibilidades31 - que

Hélio Oiticica encontra vagando pelas ruas do Rio de Janeiro, Mariana Muniz encontra dentro de si, na busca constante pela conexão entre o Eu e o Outro, entre interno e externo, atravessando o espaço interno para transgredi-lo e alcançar o que está dentro do outro.

O alcance desses vazios plenos dentro de si mesmo é fugaz, não se dá sempre nem de qualquer maneira; o contato com o outro é essencial para que ele aconteça, é nos microcosmos construídos entre o Eu e o Outro em que eles se tornam possíveis. O Outro nos lembra de que o ambiente está em constante mutação e nos obriga a buscar recursos para além de nossos costumes gestuais, nos força a constantemente reconstruir um real flutuante. “É evidente que, na ordem da percepção, só percebo o que é permitido por meu dispositivo sensorial, com as lacunas ligadas à minha história e à minha ‘função simbólica’. É aí que o diálogo com outra pessoa se torna interessante” (GODARD apud KUYPERS, 2010, p.7).

Criar é manter-se na busca pelos vazios plenos. Se durante o processo de

Trilogia Oiticica as coreografias eram mais controladas, menos livres à interação

com o corpo do outro e com o ambiente, foi esta longa jornada ao lado de outros bailarinos que possibilitou um estado mais “à vontade” com esta busca pelo vazio, experiência vivida por Mariana agora, em seu solo mais recente, Fados e

outros afins. Para ilustrar esta nova percepção, ela descreve (MARIANA...,2017)

a experiência das primeiras três apresentações da temporada, que se mostraram completamente diferentes na relação com o público, apesar de serem o mesmo espetáculo fechado. Ela compreende que a qualidade de relação com os espectadores foi o que mudou de uma noite para outra. Sem haver julgamento

de valor entre uma e outra experiência, foi a relação com cada público que variou. Os microcosmos criados em cada noite possibilitaram leituras diferenciadas do material de trabalho. A artista diz sentir-se como um canal, estar em estado de “projeto para”, como ela define. Um estado de vulnerabilidade, onde diferentes atravessamentos ocorrem, “um nada onde tudo pode se passar” (MARIANA...,2017), um extrapolamento de si mesmo. Olhando para a experiência vivida com o coletivo nas ruas de São Paulo durante a Trilogia

Oiticica, Mariana entende que foi o contato com os bailarinos e com o espaço

urbano que a permitiu chegar agora neste estado de porosidade para a construção de microcosmos:

A gente trabalha para isso, para ter essa percepção desse extrapolamento, dessas outras dimensões que a gente toca, onde o jogo se dá. E a rua é o extrapolamento desse extrapolamento. Por isso é muito difícil. Se na cena, quando você está mais conectado, você sente que você é uma coisa só para o outro – uma coisa, que eu digo, é um nada onde tudo pode se passar – na rua, você tem que ir radicalmente nisso, é muito radical isso. Eu sinto que na rua, com meus trabalhos, eu raramente cheguei nisso aí. Muito raro, tive vislumbres disso. Na hora que a gente fez a filmagem [do vídeo A dança no espaço urbano, em 2015] eu senti muito esse potencial. Engraçado, né? Depois de tudo feito e eu sozinha, sem o grupo... porque não pense que eu não senti falta (MARIANA...,2017).

A criação artística é, como a vida, um longo processo de transformação, um acúmulo de investimento de tempo, dedicação e disciplina. É um constante fazer e refazer, pesquisando, contemplando, planejando, tentando, falhando, intuindo, discutindo, elaborando, esboçando, repetindo: um conjunto de ações progressivas no momento presente. O recolhido e aprendido no passado passa a fazer parte da modelagem do agora; o futuro está contido nas intenções do que se concretiza, no prolongamento do verbo - ...ndo. Obras de arte não se encerram em si quando arte e vida são imbricados como neste caso. O que se faz num ponto da linha do tempo, se repete mais adiante para se (re)visitar, para (re)elaborar questionamentos, para (re)significar símbolos. Tudo só se justifica no momento presente, por isso a busca pelo vazio pleno no encontro com o Outro: em tempos de liquidez nas relações, é a concretude do encontro que nos fará vislumbrar quem somos e o que podemos ser.