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Faz poucos dias, enquanto conversava com os espectadores de Entre Vãos ao final de uma das apresentações, alguém me disse: “Essa ideia do dramaturgo de misturar realidade e ficção, traçando um caminho entre a vida íntima da personagem e o espaço público e usando a Sé como cenário do ato final é genial” Ao que respondi: “Mas isso não é uma solução apresentada pelo dramaturgo, somente. Isso já estava no primeiro projeto do espetáculo, escrito em 2014 e também aparece em outros espetáculos dirigidos por Luiz Fernando Marques (o

Lubi, nosso diretor). Usar a Sé foi uma solução para um problema burocrático. E a experiência da caminhada não aconteceria dessa forma sem uma condução precisa da trilha sonora criada por Carlos Zimbher...”

E segui enumerando a longa lista de “responsáveis” por cada detalhe que faz da experiência o que ela é. De fato, não há um só nome na nossa ficha técnica que seja “O” responsável por esta ou aquela solução ou escolha estética. Entre Vãos é uma feliz junção de saberes e invenções de dezenas de artistas que materializaram um desejo que tínhamos na A Digna, desde 2014, de construir um espetáculo pulverizado.

Os procedimentos aplicados na construção do espetáculo também são uma junção de saberes e invenções. Muito do que será descrito aqui não apenas se assemelha como espelha e se inspira em exercícios e experimentos aplicados por outros artistas em outros processos. Traçar a genealogia de cada parte do processo nos faria descer por um redemoinho de informações que nos levaria a outras paragens. Para aproveitarmos a paisagem do curso do leito de Entre

Vãos, proponho a você, leitor, os sabores da experiência vivida por mim, como

atriz criadora desse processo.

Desde a sensibilização corporal do elenco à construção de cada cena, um dos pontos centrais do projeto é a relação com os espaços onde cada história acontece. Porém, antes de nos entregarmos à relação com as “moradias” das personagens, fomos nós - elenco, direção e dramaturgo39 - para uma sala de

ensaio “neutra”, que não seria uma das locações de Entre Vãos, para criar códigos comuns que aparecessem para o público ao seguir cada uma das personagens.

O jogo entre espaços interno e externo – que aparece na estrutura geral do espetáculo, que propõe tanto a vivência do íntimo da casa da personagem como a efervescência das ruas e do metrô da cidade – também aparece espelhado na

39 Apesar de estarem descritos aqui os procedimentos de construção de personagem e de cena,

ressalto a presença de Victor Nóvoa como dramaturgo em boa parte dos encontros desse período de preparação. As nove versões do texto, escritas ao longo do processo de construção do espetáculo, estiveram embebidas dessa experiência e, por esse motivo, as palavras usadas em cena se moldam confortavelmente à relação corpo-espaço materializada pelos atores e pelas locações. Acredito que a incorporação do texto por mim, como atriz, se deu de forma orgânica, em parte, pelo fato do texto ter sido desenvolvido dessa maneira.

construção dos corpos das personagens. Nosso objetivo era a construção de um universo interno da personagem bastante plural, que pairasse sobre o momento do encontro entre ator e espectadores. Algo análogo aos movimentos da vida: carregamos conosco toda nossa bagagem histórica, cultural, emocional e intelectual em todos os encontros e situações que vivemos e é a partir delas que reagimos, sentimos, tomamos decisões. Como estamos propondo um ENCONTRO entre ator e espectador, é crucial que o ator não se atenha a demonstrar sua personagem realizando um certo número de palavras e ações ensaiadas; ao contrário, é a subjetividade de cada espectador que escolherá quais olhares, palavras ou ações comporão a história que se descortina para ele. A criação deste universo interno se assemelha à ideia de ator invisível desenvolvida por Yoshi Oida (2007), que afirma que o árduo treinamento do ator não tem por objetivo exibir habilidades desenvolvidas para o público, mas permitir ao ator atingir a capacidade de “sumir em cena”, deixando que o público siga as imagens indicadas por ele em vez de admirar seus dotes artísticos.

Podemos dizer que nossa criação em Entre Vãos se vale de alguns recursos naturalistas, por resultar em personagens que possuem os registros de movimento e fala cotidianos; no entanto, concordo com Vsévolod Meyerhold (2012) quando afirma que os atores do teatro naturalista exprimem figuras acabadas e definidas, sem levar em consideração que o espectador também pode (e deve) interpretar aquilo que não será mostrado ou dito. Meyerhold afirma que o teatro naturalista rompe com a capacidade do espectador de completar o desenho e sonhar, essenciais para a experiência estética. E cita Schopenhauer para afirmar que

Despertar a fantasia “é a condição imprescindível da ação estética e, por conseguinte, lei fundamental das Belas-Artes. Daí segue que a obra de arte não deve dar tudo às nossas sensações, mas apenas o tanto quanto for necessário para direcionar a fantasia no caminho certo, deixando a ela a palavra final” (MEYERHOLD, 2012, p. 45-46).

Em Entre Vãos, a corporeidade dos atores é um dos principais elementos de transformação do ambiente numa aura propícia à fantasia de que fala o mestre russo. Estão, em um mesmo ambiente, espectadores e atores, numa fluência de

diálogo muito próxima a de qualquer encontro social, como uma visita à casa de um conhecido. A movimentação das personagens, seu ritmo de fala e seus silêncios, as ações realizadas em conjunto entre plateia e personagem, para além do conteúdo de sua fala (composta pelo texto previamente escrito e partes livremente improvisadas), são os canais de corporificação desse universo interno da personagem.

As anotações da imagem acima citam dois polos, definidos pela direção do espetáculo como extremos entre os quais cada personagem transita em sua trama pessoal. No caso de minha personagem, a Anjo de Corredor, a construção se deu entre a lembrança e o esquecimento, por se tratar de uma pessoa em

Fig. 14: Diário de bordo de Helena Cardoso para o processo de criação de Entre Vãos. Foto de autoria própria.

processo de demência. O trânsito entre os polos, os inúmeros caminhos que podem ser desenhados entre eles, é minha matéria da experimentação neste processo; experimentação que não se resumiu ao período de ensaios, já que a interação dos espectadores – suas reações, questionamentos, posturas -, se apresenta diferente a cada sessão. Utilizo as ferramentas construídas – posturas, olhares, tempos, sotaque, texto decorado, ações com muitos dos objetos da casa – raramente em uma mesma sequência e nunca com a total certeza de seu efeito sob o público. O universo interno da personagem nada mais é que um largo conjunto de micromovimentos reais e virtuais, em consonância com a ideia de “corpo da consciência” do filósofo José Gil (2001)40:

as pequenas percepções de espaço e tempo, e de movimentos afetivos e cinestésicos do corpo.

Para que este universo continue se expandindo a cada apresentação, devo manter viva a qualidade mais essencial para esse espetáculo: a escuta

relacional, um estado de abertura genuína à contribuição do espectador.

Alcançada esta qualidade de escuta, passa a ser possível que a história seja contada a partir do encontro entre espectadores e personagens, e não pela execução de uma sequência lógica de convenções teatrais. Quando, na anotação da figura, me pergunto sobre a relação com um “espaço que não está em função das minhas ações”, me refiro justamente a este estado em que muitas coisas não podem ser previstas pela concepção do espetáculo, justamente pelo grau de relação direta entre espectador e personagem. Para além de colecionar diferentes tônus, olhares, movimentações e emoções, devo estar pronta para que a reação dada aos espectadores caiba dentro daquele universo pessoal, para que o pacto de “realidade inventada” construído entre nós não seja quebrado.

O foco do treinamento da escuta relacional proposto pelos diretores Luiz Fernando Marques e Paulo Arcuri - advindo de experiências anteriores dos dois artistas – está na conquista de um estado de porosidade que permita que os

micromovimentos da personagem apareçam a partir da relação entre atores,

entre ator e espaço e entre ator e público. O treinamento consistiu na execução

de jogos teatrais que proporcionassem a improvisação de cenas a partir de um tema comum e a aplicação de dispositivos pessoais e relacionais. Os dispositivos podem ser descritos como características de cada jogador, que devem aparecer a partir da relação entre eles, sem que situações sejam forçadas para demonstrá-las. Os jogos possuíam diferentes formatos, mas ofereço aqui um exemplo de dinâmica-base de todos; neste caso, com três jogadores:

Tema (comum a todos os jogadores): CONSTRUÇÃO

Jogador A:

- Dispositivo pessoal: Sou reacionário.

- Dispositivo relacional: Fazer o jogador B me contar um segredo.

Jogador B:

- Dispositivo pessoal: Sou indeciso.

- Dispositivo relacional: Sempre concordo com o jogador C.

Jogador C:

- Dispositivo pessoal: Sou libertário.

- Dispositivo relacional: Tomar o jogador A pelo B.

Um jogador desconhece os dispositivos dos outros. Estabelece-se o tempo limite de trinta minutos para que a cena aconteça. A proposta central do uso do tema e dos dispositivos é permitir que a escuta relacional aconteça; que a interação seja fluida entre os jogadores e o espaço que ocupam. É comum que os atores entrem nessa dinâmica como em outros jogos de improviso, onde os participantes propõem constantemente ações e situações, além de aceitar todas as iniciativas dos outros. Esta estratégia não costuma funcionar nesse tipo de jogo, pois a proposição constante acaba se impondo como uma “tagarelice” – e nosso objetivo é a escuta, não a fala. Deve-se reagir, não agir. Um feixe de luz, um som vindo pela janela, o barulho da respiração do outro, a cor da roupa do outro jogador... detalhes como esses passam a ser percebidos ao deixarmos a

proposição constante de lado. E é desses detalhes que a relação começa a se estabelecer.

O tema pode surgir nem tanto como o assunto da cena, mas como o espírito dela; as diferentes facetas da palavra-tema podem surgir em momentos diferentes da improvisação. Construção, o tema sugerido em nosso exemplo, pode aparecer em ações (Ex.: o empilhamento das bolsas que estão na sala de ensaio), em ideias (Ex.: construir uma relação a dois), em citações (Ex.: cantar a música Construção de Chico Buarque). Sejam quais forem as ideias, elas devem surgir a partir do encontro entre aquelas pessoas naquele determinado tempo e espaço; o foco está na materialidade do encontro, não numa ideia de personagem ou de situação gerada antes dos três começarem, de fato, a se relacionar em jogo.

Quanto aos dispositivos, eles devem ser tratados como características que se deixam mostrar a partir das situações criadas na improvisação. Novamente, a comparação com a vida cotidiana nos cabe bem: uma pessoa reacionária não demonstra suas preferências políticas a todo o momento; são comentários, olhares, pequenos gestos que surgem em relação a outras pessoas que demonstram sua tendência contrária à liberdade de pensamento ou ação dos outros. Estando o jogador aberto à escuta dos outros e do espaço, também outras características aparecerão a partir dos vínculos criados entre os três na dinâmica, fazendo surgir um sujeito complexo, cheio de desejos, medos e contradições – como somos todos os humanos. Para que os dispositivos relacionais apareçam, deve-se estar atento ao possível desencadeamento de ações que levem os envolvidos a chegarem à realização das atividades propostas. Pode-se até “plantar” um assunto que propicie reações que permitam que, no decorrer da cena, o dispositivo “brote”. Entrar no jogo determinado à realização do dispositivo é a tendência que convém evitar, pois tratá-lo como um objetivo a ser cumprido é correr o risco de se tornar obsessivo na cena, impedindo que outras associações e imagens surjam entre os jogadores; ou seja, impossibilitar a escuta. Ao invés, pode-se “encaçapar” - perceber que o dispositivo se encaixa num certo contexto alcançado – numa conversa ou ação gerada pelo encontro.

O estado que se quer alcançar ao entrar em jogo é o de porosidade ativa: estou aberto a receber o que vem do outro e do encontro com ele, do espaço que ocupamos e de todos os estímulos que essa situação reúne; dentro do meu estado de alerta, eu “trabalho” internamente, observando momentos em que os dispositivos possam aparecer. Em suma, é abrir-me para a relação com o Outro, ao mesmo tempo em que construo uma ponte para que as características que carrego em meu interior possam se exteriorizar.

Esta ponte entre os mundos interior e exterior é o elemento chave do estar em cena em Entre Vãos. Num momento futuro, espetáculo pronto, tudo o que exteriorizo no encontro com o público são micromovimentos. Estamos muito próximos, personagem e espectadores, reunidos numa sala de estar, conversando. Os olhares, gestos e movimentos são pequenos e cotidianos, a

Fig. 15: Diário de bordo de Helena Cardoso para o processo de criação de Entre Vãos. Foto de autoria própria.

voz não é projetada como de cima de um palco. Toda a experimentação do período de ensaios se materializa nessas pequenas sutilezas que surgem para construir, diante dos olhos da plateia, a personagem e sua própria realidade. Os

micromovimentos que contam essa história não são apenas físicos, como diria

Steve Paxton: “O movimento é uma superfície física cobrindo tempos inteiros de vida e experiências totalmente incognoscíveis” (PAXTON apud GIL, 2001, p.142). O movimento real se prolonga em movimentos virtuais, construindo um universo de significados concebíveis. Ao longo da cena, a personagem conta para o público pequenos casos que aconteceram em sua vida. Os movimentos virtuais que se desenvolvem em minha consciência à medida que eu conto essas histórias, de alguma maneira, se tornam reais para os espectadores, como extensões possíveis dos pequenos olhares e gestos executados no espaço. O movimento imaginado coletivamente tem a potência de transformar-se em realidade para todos que participam de sua construção. Sobre esta construção coletiva entre elementos ficcionais e reais, trataremos no dia que está por vir.