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O caos que submerge águas silenciosas : laços poéticos entre a cidade e o artista da cena

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE ARTES

HELENA CARDOSO LIXA

O CAOS QUE SUBMERGE ÁGUAS SILENCIOSAS – LAÇOS POÉTICOS ENTRE A CIDADE E O ARTISTA DA CENA

CAMPINAS 2017

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O CAOS QUE SUBMERGE ÁGUAS SILENCIOSAS – LAÇOS POÉTICOS ENTRE A CIDADE E O ARTISTA DA CENA

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Artes da Cena na Área de Concentração Teatro, Dança e Performance

ORIENTADORA: SILVIA MARIA GERALDI

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA

ALUNA HELENA CARDOSO LIXA E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. SILVIA MARIA GERALDI.

CAMPINAS 2017

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HELENA CARDOSO LIXA

ORIENTADORA: PROFA. DRA. SILVIA MARIA GERALDI

MEMBROS:

1. PROFA. DRA. SILVIA MARIA GERALDI 2. PROF. DR. VINÍCIUS TORRES MACHADO

3. PROFA. DRA. ANA MARIA RODRIGUEZ COSTAS

Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica da aluno(a).

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Esta é uma jornada coletiva. Tenho a sorte de navegar por esses e outros rios sempre muito bem acompanhada e plena de amor. As palavras dessa página não comportam toda a gratidão que carrego comigo.

À professora doutora Silvia Maria Geraldi, minha orientadora, pelo cuidado com que me amparou por todos os meandros do caminho.

À Mariana Muniz, pela generosidade com que se abriu a este projeto e pela inspiradora trajetória.

Ao Victor Nóvoa, companheiro de vida e de criação, que me ilumina nas tormentas e sempre abre caminhos belos e amplos para irmos juntos.

À Ana Vitória Bella, por estar junto sempre, na vida e na poesia.

A todos os parceiros de criação dos espetáculos da A Digna, da direção ao transporte, da produção ao design. Só materializamos nossos desejos com a força plena de nossas mãos dadas.

A todos os artistas que criaram Parangolés, Penetráveis e Nucleares na rua, pela tradução em dança da genialidade de Hélio Oiticica.

À Vertente Design, que me ajuda a dar forma à travessia pelas páginas desse diário.

Aos colegas do grupo de pesquisa Prática como pesquisa do Instituto de Artes da UNICAMP, pelos momentos de partilha.

Às professoras doutoras Ana Terra e Ana Cristina Colla, pela leitura atenta que me permitiu retraçar rotas no meio do desbravamento.

À minha família e amigos, pela força de seguir caminhando.

Aos tantos companheiros de resistência artística espalhados por São Paulo, Brasil e mundo, sigamos juntos com a força do fazer coletivo nessas e outras paragens.

À cidade de São Paulo, por ser esse caleidoscópio que me maravilha diariamente.

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RESUMO

Utilizando-se de diários de bordo, entrevistas e memórias das artistas Mariana Muniz e Helena Cardoso, a pesquisa refaz alguns caminhos da construção das obras Trilogia Oiticica ("Parangolés", "Nucleares" e "Penetráveis") da Cia Mariana Muniz de Teatro e Dança; e Entre Vãos, do coletivo teatral A Digna, para identificar quais são as relações éticas e estéticas travadas com a cidade de São Paulo, surgidas em ambos os processos. Por analisar trabalhos que se relacionam diretamente com a capital paulistana, o foco da pesquisa é apontar as proposições de reflexão e reestruturação surgidas em seu envolvimento artístico com a cidade, em três âmbitos: na relação das criadoras com sua própria produção; nos diálogos entre artistas e espectadores; e nas relações cidade-cidadão estabelecidas tanto pelas artistas quanto pelo público.

PALAVRAS-CHAVE: artes da cena; corpo-cidade; artista-espectador; Trilogia Oiticica; Entre Vãos

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Making use of journals, interviews and memories of two artists, Mariana Muniz and Helena Cardoso, the research retraces the creative processes of the Oiticica Trilogy (‘Parangolés’, ‘Nucleares’ e ‘Penetráveis’) by Mariana Muniz Theatre and Dance Company and Entre Vãos, by A Digna Theatre Company, to identify the ethical and aesthetic relations with the city of São Paulo proposed by both productions. As these performances are strictly linked to the daily life of the city, the focus of this research is to highlight the inquiries arisen in their artistic involvement with São Paulo, in three scopes: in the relationship of both artists with their own productions; in their dialogue with the audience; and in the city-citizen relations established by artists and spectators.

KEYWORDS: performing arts; body-city; performer-audience; Oiticica Trilogy; Entre Vãos

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Introdução: Para ler antes de navegar...10

Capítulo 1: Rios submersos no caos...18

Dia 1: Adentrando São Paulo-terreno...18

Dia 2: Mananciais de resistência...21

Dia 3: Apropriação da topografia...23

Dia 4: Composição geoquímica das águas...26

Dia 5: Micropartículas...28

Dia 6: Viagem ao centro – micromovimentos...31

Dia 7: Ficções insulares – microcosmos...35

Dia 8: Entre-meios – microlabirintos urbanos...40

Capítulo 2: A Trilogia Oiticica...45

Dia 9: Carta geográfica...45

Dia 10: Norte cartográfico - Panorama Hélio Oiticica...49

Dia 11: Mergulhos internos, ancorar (-se)...49

Dia 12: Medo, barragem de microcosmos...56

Dia 13: Campos de desconstrução...62

Capítulo 3: Entre Vãos...69

Dia 14: Escavar concreto, jorrar vida...69

Dia 15: Uma ponte entre o dentro e o fora...78

Dia 16: Ilhas de memória...86

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Capítulo 4: Rede hidrográfica...106

Dia 19: A infiltração, o mofo, a rachadura...106

Dia 20: Tentativas de impermeabilização...113

Dia 21: Ruídos do silêncio aparente...116

Referências...121

Apêndices...124

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Introdução: Para ler antes de navegar

Estas páginas são um diário de bordo ficcional, fruto de meu fazer artístico, observação e tentativa de compreensão de duas experiências artísticas que se dispõem a dialogar com as idiossincrasias da cidade de São Paulo. Todo o conteúdo destas páginas foi formulado em consonância com a criação de sua forma, que não está presente nesta versão por exigências acadêmicas. Como acredito que forma e conteúdo são indissociáveis tanto na obra de arte quanto numa obra de reflexão sobre um fazer artístico, sugiro ao leitor que faça a leitura no formato disponibilizado em meu site.1

De tantas obras cênicas produzidas em atrito com o cotidiano paulistano, escolhi duas a partir de critérios subjetivos, os quais descrevo a seguir.

Trilogia Oiticica, conjunto de três espetáculos da Cia. Mariana Muniz de Teatro

e Dança (Parangolés, Penetráveis e Nucleares na rua)2, marca a carreira de

quatro décadas da atriz e bailarina Mariana Muniz como um momento de criação coletiva (em contraste aos habituais solos da artista) e de experimentação com o espaço urbano e o público passante. Parangolés (2008) foi inspirado nas obras de Hélio Oiticica que levavam o mesmo nome, vestimentas (capas, estandartes, bandeiras) que ganhavam vida a partir da movimentação do corpo dançante que as vestiam. A criação de Penetráveis (2010) também parte da série de obras do artista com o mesmo nome e explora a autonomia das formas constituintes do espaço urbano, materializadas em objetos como tábuas de madeira e tijolos. Já

Nucleares na Rua (2011)3 dá enfoque às dinâmicas corporais pautadas pelo

samba em justaposição com as ruas da cidade como um espaço de criação de novas maneiras de estar no mundo. Mariana sempre foi, para mim, referência de um corpo cênico híbrido entre dança e teatro e oferecer minha reflexão

1 A versão defendida e aprovada encontra-se na íntegra em http://adigna.com/assets/o_caos_que_submerge_aguas_silenciosas.pdf

2 As fichas técnicas dos espetáculos da Trilogia Oiticica se encontram no apêndice.

3 Em 2009, a companhia criou o espetáculo Nucleares, concebido para ser apresentado em

espaços cênicos. O espetáculo foi revisitado em 2011 e passou a chamar-se Nucleares na Rua, sob a influência das experimentações da companhia no espaço urbano. Como a segunda versão está localizada no tempo depois da criação de Penetráveis, referencio este trabalho como o terceiro da Trilogia Oiticica apenas por uma questão cronológica.

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acadêmica sobre parte de sua obra dá-se aqui como um tributo à sua trajetória artística.

Entre Vãos é uma experiência cênica de meu coletivo teatral, A Digna4, e uma

das obras de nossa Trilogia do Despejo5, resultado da nossa pesquisa

continuada sobre os efeitos da gentrificação na vida de cada cidadão e na cidade de São Paulo como um todo. Trata-se de uma obra “pulverizada”, pois tem início simultaneamente em três endereços de bairros centrais de São Paulo (Campos Elíseos, Santa Cecília e Anhangabaú) e se encerra com um ato final que reúne todos os espectadores e artistas envolvidos na Sé, marco zero da fundação da cidade. O enfrentamento com o espaço urbano – tanto em âmbito privado quanto público – proposto pela obra nos levou ao desenvolvimento de procedimentos relacionais que nos ajudam a construir o acontecimento cênico com a contribuição ativa do espectador e do espaço ocupado. A reflexão feita aqui é essencial para a continuidade da elaboração de tais procedimentos, que já possuem desdobramentos nas nossas ações artísticas subsequentes à criação do espetáculo.

Eu escrevo um DIÁRIO de bordo.

Escrever um DIÁRIO a partir de registros de processos de criação é como me encerrar numa câmara de espelhos, onde vemos o reflexo do reflexo do reflexo do reflexo...

4 O núcleo artístico do coletivo é composto por Ana Vitória Bella, Victor Nóvoa e por mim. Entro

em detalhes sobre A Digna no Capítulo 3: Entre Vãos.

5 A Trilogia do Despejo é composta pelos espetáculos Condomínio Nova Era (2014), Entre Vãos

(2016) e uma terceira obra em atual fase de pesquisa, com estreia prevista para 2018. As fichas técnicas de cada espetáculo da trilogia se encontram no apêndice.

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Um diário de bordo volta atrás, como sugere o significado no latim, mas esta volta é uma tradução e, por isso mesmo, uma recriação. No pensar com

detenção e mais de uma vez, há várias mudanças de direção na tentativa de

registrar as memórias e sensações de um processo vivido. Uma memória não é seu registro, como também não é o pensamento gerado a partir de seu registro. Mas a tentativa de repercutir-se, de transmitir-se é, sobretudo, um ato de coragem; é impulsionar a roda da criação; é ampliar as possibilidades da criação primeira; é compreender que gerar arte é uma espiral constante de busca, achados, desencontros, sensações, conexões.

O desejo do presente DIÁRIO é a recriação dos processos de concepção de ambas as obras, a partir de memórias e impressões pessoais minhas e de Mariana Muniz. Todo o conteúdo aqui presente parte de diários de bordo, entrevistas, críticas e matérias na imprensa, em composição com os imaginários individuais e coletivo, conforme sugere Sylvie Fortin (2009) em suas reflexões sobre etnografia e autoetnografia. Memória esta composta não simplesmente

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Fig.2 – Ancient courses. Mississipi river meander belt. Mapa de Harold Fisk, 1944. por lembranças, mas também pela corporeidade de cada artista, suas sensações e emoções sobre o que foi vivido.

O mapeamento de Trilogia Oiticica construiremos a partir do olhar de Mariana Muniz, e o de Entre Vãos se dará pelas minhas reflexões e memórias pessoais. Quando se mapeia um rio, pode-se considerar os períodos de cheia, de

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estiagem, as mudanças no relevo, todos os fatores que ocasionam alterações em seu percurso ou volume, e nosso mapa ficaria próximo a este:

Apesar de me sentir atraída pela ideia de transformar este DIÁRIO em um resultado estético próximo ao da imagem, intuo que me faltariam páginas para descrever todos os meandros contemplados nele. Sugiro então que fiquemos com apenas uma das vozes que compõem cada um dos trabalhos, não cabendo aqui o esmiuçamento de impressões e memórias de outros tantos artistas envolvidos nos dois projetos – nosso mapa final pode não resultar tão colorido, mas não por isso será menos rico em detalhes. Há, contudo, a inserção de olhares de espectadores em breves momentos, na tentativa de contemplar ambos os lados da relação artista-espectador.

Este DIÁRIO foi inicialmente imaginado como o resultado de um cotejo entre dois diários de bordo reais: um escrito por mim durante o processo de criação de

Entre Vãos e outro escrito por Mariana Muniz no ano de 2015, quando a convidei

para colaborar com esta pesquisa. O belo conteúdo da escrita de Mariana me abriu diversos caminhos de escrita, que tornariam possíveis muitas pesquisas em uma. O foco na relação entre artista e cidade, no entanto, fez necessária uma reprogramação de rota. Como se tratava de um momento de recolhimento de Mariana, de retomada de sua criação de solos após o período de criação coletiva no espaço urbano, sua relação com a cidade pouco aparecia em seu caderno. Foco reajustado, mantive seu caderno como uma preciosa referência, mas ampliei as fontes de acesso a suas memórias de Trilogia Oiticica.

Convido você para uma jornada adentro deste DIÁRIO. Flexibilidade é mote para o nosso navegar, pois nos embrenharemos no solo pantanoso da prática, região amálgama entre o que é planejado pelo artista e imprevistos de toda a ordem. A prática é, afinal, “um espaço de instabilidade que funciona como ponto de fuga frente ao qual o sujeito se desconhece, fica em suspensão, se reinventa com a possibilidade do imprevisto” (CORNAGO, 2015, p.106). Guardemos essas palavras de Óscar Cornago em nosso corpo durante o trajeto de leitura. Ou melhor, gravemos em nossos ouvidos: “Uma prática implica atravessar este

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espaço de instabilidade”. Que Cornago siga nos despertando para evitarmos o risco de petrificar nossos achados como única verdade absoluta.

É justamente deste terreno de instabilidade que trata este DIÁRIO. São as incertezas do processo que geram as questões que levam à ressignificação de cada artista e sua obra. Em Trilogia Oiticica e Entre Vãos, vemos proposições de relação direta com o espaço público que geram éticas de trabalho próprias, assim como a aplicação prática dessas éticas possui resultados estéticos particulares. Em nossa jornada, nos guiaremos pela seguinte pergunta:

Quais são as relações ético-estéticas entre artistas e cidade propostas por essas duas obras e quais são seus desdobramentos?

São Paulo é o terreno onde se inscrevem Trilogia Oiticica e Entre Vãos. Talvez possa o leitor reconhecer outras cidades nas imagens que saltam destas páginas, já que muitas das características urbanas que afetam ambos os trabalhos também compõem outras paisagens. A cidade aparece neste DIÁRIO pela tradução de meu olhar subjetivo, que não pretende jamais tornar exclusivas de São Paulo as singularidades aqui apresentadas. Que o retrato de nosso terreno sirva de espelho para o leitor que queira enxergar-se nele, mesmo habitando outras paragens.

A cidade de São Paulo está construída sobre uma extensa rede hídrica e atualmente sufoca mais de trezentos rios soterrados sob o concreto. Muitas das

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nascentes não são sequer aproveitadas pela rede de abastecimento, mas resistem em seus cursos subterrâneos, cavando a terra, alheios ao crescimento e “desenvolvimento” da cidade. Por cima delas, várias camadas de concreto sustentam vias expressas e arranha-céus, gerados e mantidos por sujeitos movidos a desempenho e produção. São Paulo gera dinheiro e consumo sete dias na semana, vinte e quatro horas por dia; sua produção se traduz sobretudo em desigualdade: miséria e ostentação estampados em muros, grades, câmeras de vigilância, cobertores na calçada, furtos, vitrines iluminadas, “nóias”, prostituição, canteiros de obras, fome, carros importados, barracos. E o ritmo impresso na alma paulistana faz seu povo correr determinado de ponto a ponto, sem parada para a reflexão ou a contemplação. A pluralidade de São Paulo contém belezas para além das que o dinheiro produz e pode comprar. A diversidade de seus cidadãos, suas infinitas vozes, cores, cabelos, sons, gostos e maneiras de viver fazem de São Paulo um caos de infinitas possiblidades. Há que se pausar e respirar a beleza da heterogeneidade, apreciar cada um de seus sotaques, abrir espaços de convívio entre os diferentes, abrir-se para o Outro.

Entre Vãos e Trilogia Oiticica aparecem aqui como dois leitos de rio subterrâneos

que insistem em correr sob a megalópole sem pausa e que oferecem territórios de convívio: duas propostas cênicas que jogam com a relação direta com o espectador, com a materialidade dos corpos e dos espaços, com a superposição de signos, com a sugestão de relações extra cotidianas com o espaço público. São tentativas de vazar o pensamento da alta produtividade, de desviar o olhar fixo do passante e convidá-lo a uma outra relação com São Paulo, um outro respirar, um pulsar em outro tempo-ritmo. São obras que vivem (para) (com) (na) cidade.

Comecemos então nossa navegação nesses dois rios subterrâneos. Lembro que os registros deste DIÁRIO podem variar em estilo, ritmo ou estrutura. As mudanças se dão como variações no relevo por onde passam os rios; se mudamos os instrumentos de navegação é apenas para aproveitarmos melhor a viagem. Boias e salva-vidas serão oferecidos ao longo do caminho em forma de imagens, notas ou janelas – nossos percursos escondem meandros que valem ser visitados com a ajuda desses instrumentos. Recomendo, em especial,

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as paragens em sites e vídeos localizados ao longo do texto, pois ajudarão na concretização de nossa paisagem.

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Capítulo 1: Rios submersos no caos

Dia 1: Adentrando São Paulo-terreno

Imagine (ou relembre).

Estar imerso nos formigueiros humanos da Ladeira Porto Geral num sábado de manhã, ou da estação de metrô da Sé numa sexta-feira às 18 horas. Ou estar estagnado dentro de um carro, partícula mínima da longa serpente de fogo que se estende pela Marginal Pinheiros à noite em direção ao Morumbi.

Do que seucorpo é composto neste momento?

Ansiedade.

Cansaço. Desespero.

Hiperatividade cerebral, condicionada por um jogo eletrônico ou pela barra de rolamento da timeline do Facebook.

O cálculo dos minutos para chegar em casa. Das contas para pagar. Do tempo que resta até a aposentadoria. Dos meses até as próximas férias.

Você sucumbe ao cansaço e se deixa dissolver em meio à massa de corpos que o rodeia. Sua consciência se desprende dali e sobe em direção às estrelas. Sobe rápido, sobe alto, contempla dali os milhares de ações simultâneas que compõem São Paulo. Tudo acontece ali. São Paulo, terra das oportunidades. Terra das possibilidades, de todas as possibilidades. O caos, como na cosmogonia grega:

Antes de serem criados o mar, a terra e o céu, todas as coisas apresentavam um aspecto que se dava o nome de Caos – uma informe e confusa massa, mero peso morto, no qual, contudo, jaziam latentes as sementes das coisas. A terra, o mar e o ar estavam todos misturados; assim, a terra não era sólida, o mar não era líquido e o ar não era transparente (BULFINCH, 2003, p.19).

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Você olha de cima e não consegue identificar tudo o que é tão familiar para você: o caminho para casa, as pontes e viadutos, o cheiro do rio, o barulho de buzinas e motores. Você tem diante de si uma massa informe.

Você entra em um estado de contemplação desse caos. A multiplicidade de cores e formas contidas nele é bela e não parece “um mero peso morto”. Ao contrário, inspira potência em vez do oco. Confusão. Confusão? Não é desordem que temos aqui, mas um acúmulo de vida.

Definimos o caos menos pela sua desordem do que pela velocidade infinita com que se dissipa toda a forma que nele se esboça. É um vazio que não é um nada, mas um virtual, contendo todas as partículas possíveis e adquirindo todas as formas possíveis que surgem para de imediato desaparecerem, sem consistência nem referência, sem consequência (DELEUZE; GUATTARI apud NABAIS, 2010, p.320).

Seu olhar fixo sobre essa massa começa a reconhecer cores e traços dentro da forma, embora fugidios: no momento em que você tenta identificar uma determinada partícula como algo que lhe possa ser familiar, ela rapidamente some do campo de visão... ou talvez tenha mudado de forma. Você se perde em uma brincadeira de seguir as partículas e se encanta com a fugacidade delas. É maravilhoso observar a liberdade aparente com que se movem e como se modificam. Um passatempo, sem dúvida, melhor que Candy Crush6.

Um grito. Alguém perdido entre tantos – na Ladeira, na Marginal ou na Sé – faz suas moléculas se reencontrarem e sua consciência voltar para a materialidade de tantos corpos estagnados juntos ao seu. Antes de acionar novamente o turbilhão de ideias que lhe acompanham no trajeto, você relembra a fluidez do caos contemplado. Um pensamento relampeja: “Se eu sou uma daquelas partículas, quantas possibilidades de trajetos e formas contenho em mim? Quantas possibilidades essa cidade me oferece?”

O fluxo de pessoas começa a acelerar. A massa de corpos passa a se movimentar com mais velocidade. Olho na bolsa, para ninguém levar; no

6 Candy Crush Saga é um popular jogo de raciocínio online que tem como desafio combinar

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retrovisor, atenção às motos que cruzam entre os carros; transfere o peso do seu corpo sobre a pessoa à frente, senão não entra no próximo trem.

“O que era mesmo que eu estava pensando? ”

E você volta ao celular, às preocupações, aos desejos.

De volta à materialidade do caos paulistano.

Quando pensamos o caos de uma grande cidade, podemos encará-lo como sinônimo de desordem e crise; problemas como a violência, a degradação ambiental e a insuficiência dos serviços públicos são frequentemente associados à palavra caos e podem nos levar a uma perspectiva de condenação do espaço urbano e de vitimização de seus cidadãos que padecem por viver em meio à “barbárie” instaurada pela erosão das relações sociais. Considero essa perspectiva perigosa, pois pode nos convencer de que devemos nos munir de mecanismos para a proteção de cidadãos “civilizados” em detrimento aos direitos de outros que não se encaixam em normas; mecanismos como a violência policial do Estado ou de corporações privadas de segurança, para garantir a “ordem” local e privada na cidade. Outras estratégias “civilizatórias” também são reforçadas por esse pensamento, como nos lembra Jorge Luiz Barbosa, doutor em geografia humana:

Contra o caos combinam-se o embelezamento estratégico, a engenharia privada de segurança e as tecnologias soft de controle – a exemplo da utilização de câmeras de vídeo para registrar e vigiar o movimento de ruas e praças. Aqueles reiteram em diferentes latitudes o padrão cultural californiano. Padrão que combina a limpeza física - incluindo os corpos estranhos e rebeldes - e a indiferença humana, cujo propósito maior não é outro além de figurar uma cidade “simulacro” em oposição ao “caótico”. Assim, a imago urbis que constrói o nosso senso comum é um apanágio para um velho novo “espírito urbanístico”, sempre empenhado na reencarnação do movimento seletivo da mercadoria, no reordenamento hegemônico da propriedade privada e do valor de troca na cidade (BARBOSA, 1999, p.62-63).

Se, em contrapartida, nos permitirmos uma abordagem mais em sintonia com nosso vislumbre anterior, de que a cidade pode ser o Caos como nos primórdios dos tempos para os gregos, ou um virtual que contém todas as possibilidades, podemos compreender o caos paulistano como uma potência de fertilidade

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inerente à vida urbana. A imprevisibilidade e aleatoriedade imanentes no caos elevam a turbulência da vida urbana à condição de “fonte inesgotável” da vida, capaz de toda e qualquer mudança. São Paulo é constituída por uma miríade de maneiras individuais de viver e de relacionar-se com os outros e o espaço ao redor:

[...] práticas sócio-espaciais diferenciadas e antitéticas que, em última análise, exprimem a radicalidade do conflito entre a apropriação social e a propriedade privada. Duelos entre a transgressão e a dominação social. Rumos distintos colocados em causa sob a aparência do caos, porém escritos e vividos como forma e conteúdo do espaço geográfico (BARBOSA, 1999, p.67-68).

No caos de São Paulo coexistem os diferentes mecanismos de reafirmação do capitalismo e as resistências ao processo de mudança imposto por ele ao espaço e aos cidadãos. Acredito que os rios que navegamos aqui são tentativas de resistência, não propriamente no sentido de negar quaisquer mudanças, mas de questionar como estamos mudando e que rumo estamos tomando como cidadãos.

Dia 2: Mananciais de resistência

Considero que nós, partículas formadoras de São Paulo, somos todos impregnados dessas visões do que é esse caos que habitamos. Mesmo que nos coloquemos contrários ao pensamento hegemônico que define que São Paulo deva ser a quintessência da vida pós-moderna – a sociedade 24/7, dos

self-made men, sujeitos de desempenho e produção – acabamos por absorver parte

desse pensamento e deixar que nossas práticas diárias operem a partir de suas premissas.

Para Byung-Chul Han (2015), filósofo contemporâneo, a sociedade pós-moderna se encontra em processo pós-disciplinar, no qual agrega à sensação de dever trabalhar (apreendida do modelo disciplinar de sociedade), um poder infinito que torna seu desempenho mais rápido e mais produtivo. Não obedecemos mais a

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um outro que nos força a trabalhar, nossa própria responsabilidade e iniciativa passam a substituir os mandatos e as proibições da sociedade disciplinar. Somos nossos próprios agressores e também vítimas a um só tempo. A dissolução de uma instância externa que nos oprime não nos leva à liberdade, mas faz com que liberdade e coerção coincidam:

O explorador é ao mesmo tempo o explorado. Agressor e vítima não podem mais ser distinguidos. Essa autorreferencialidade gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercitivas que lhe são inerentes, se transforma em violência (HAN, 2015, p.30).

A violência que nós, paulistanos, carregamos conosco se materializa nos múltiplos estímulos, informações e impulsos que recebemos e geramos constantemente e que compõem o caos urbano. O multitasking (multitarefa), capacidade de manter a atenção em diversos focos ao mesmo tempo, nos é vendido como uma habilidade avançada que devemos alcançar para “darmos conta” de tudo o que nos afeta constantemente. Para Han (2015), no entanto, trata-se antes de um retrocesso. A multitarefa é típica de animais selvagens, que são obrigados a dividir sua atenção entre devorar a presa, vigiar a prole e o parceiro e proteger-se de um possível ataque de um predador. As evoluções sociais e a mudança da estrutura de atenção na sociedade pós-moderna aproximam cada vez mais os humanos da vida selvagem. A multitarefa nos torna incapazes de um aprofundamento contemplativo, nos levando a um estado de hiperatenção: atenção dispersa caracterizada por rápidas mudanças de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos.

Estamos, Mariana Muniz e eu, imersas neste estilo de vida pós-moderno: ambas se desdobram entre criar, vender, escrever projetos, ensaiar, organizar e transportar material de cena, dar aulas em diversos endereços. No entanto, nossas escolhas éticas e estéticas sugerem um mergulho contemplativo em cada uma das inúmeras atividades, em busca de recursos para uma quebra com o padrão da multitarefa em nossas rotinas de trabalho, na relação com os espectadores e no conteúdo artístico das obras que produzimos. Trilogia Oiticica e Entre Vãos são tentativas micropolíticas de mudança do pensamento hegemônico geradas dentro do próprio macro sistema. Nos reconhecemos como

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partes da máquina contínua de produtividade e tentamos traçar, como artistas, linhas de fuga que permitam novas relações entre os cidadãos paulistanos.

Dia 3: Apropriação da topografia

Mas vem junho e me apunhala vem julho e me dilacera setembro expõe meus despojos pelos postes da cidade (me recomponho mais tarde, costuro as partes, mas os intestinos nunca mais funcionarão direito)

trecho de Poema Sujo, de Ferreira Gullar (2012)

Há pouco espaço para a contemplação nessa rotina. O sorvedouro que nos absorve nessas atividades nos proporciona o desenvolvimento de uma certa flexibilidade e rapidez mental, o que não deixam de ser atributos positivos e que podem levar a uma criação artística “propensa às divagações, a saltar de um assunto para outro, a perder o fio do relato para reencontrá-lo ao fim de inumeráveis circunlóquios” (CALVINO, 1990, p.61). Acontece que, paradoxalmente, a divagação mora no tédio. Se não nos permitimos ao tédio, perdemos os “dons do escutar espreitando” definidos por Walter Benjamincitado por Han (2015, p.34), que considero aqui essenciais a um tipo de criação que é fruto de reflexão aprofundada sobre a sociedade. Para o filósofo coreano, a criação artística depende da capacidade de espantar-se frente ao ser-assim das coisas, e o espanto só se dá no demorar-se em contemplação: “No estado contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos, mergulhando nas coisas [...] Sem esse recolhimento contemplativo, o olhar perambula inquieto de lá para cá e não traz nada a se manifestar”, lembra Han (2015, p.37). O demorar-se no ato de criação de algo que escape das regras de produção em série e imediata

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que nos controlam é característica de ambos os rios navegados nesse DIÁRIO.

Trilogia Oiticica e Entre Vãos são atos de artesania, são narrativas poéticas

impregnadas que se encarregam de trabalhar com mão, olhar e alma a matéria-prima da experiência - a sua própria e a dos outros - transformando-a num produto sólido e único, como sugere Walter Benjamin (1994) em sua obra O Narrador.

Observamos, na contemporaneidade, a convivência de diversos fazeres artísticos, muitos deles impulsionados, talvez, por outro motor que não seja o estado contemplativo. No entanto, a necessidade do demorar-se diante das coisas à espreita do espanto impregna os dois trajetos aqui percorridos, como um contraponto ao turbilhão de atividades impostas pelo ritmo da cidade. E em uma realidade pobre de interrupções e intermédios, pergunto: como podemos nos manter em ação expressiva se somos algozes de nós mesmos, imersos um estado de constante produção?

Entre Vãos e Trilogia Oiticica são, cada um à sua maneira, trabalhos gerados a

partir desse questionamento. Ambos decorrem do espanto das artistas diante dos contrastes flagrados no caminhar pelas ruas da cidade. Sigamos a imagem criada por Michel de Certeau em seu livro The practice of everyday life (1984, p.93), que sugere que uma cidade grande é um texto urbano escrito pelas interconexões entre os inúmeros caminhos percorridos por seus habitantes: São Paulo é uma história de múltiplos desdobramentos, um grande poema sem autor ou leitor definidos, composto de fragmentos de trajetórias e alterações de espaços, que só pode ser lido com a apropriação de sua topografia pelo caminhar. Caminhar como um espaço de enunciação da cidade.

Ao caminhar pela cidade, Mariana Muniz se questiona sobre as sensações e impressões causadas pelos ritmos, texturas e cores das ruas e dos passantes, pela pluralidade de afetos gerados pela vida da cidade:

A diferença entre os espaços e o que essa diferença provoca no corpo, o que ela gera no meu corpo. No nosso corpo, na verdade, porque o meu trabalho com a companhia é um trabalho coletivo. O pensamento de cada um e o modo como cada um deles reage me influencia e o meu modo influenciou eles. E o modo como as pessoas caminham, olham, isso também afeta (A DANÇA..., 2015).

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O caminhar em um estado de escuta para o espaço público foi ferramenta de trabalho para os bailarinos criadores da Trilogia Oiticica: cada artista levava para a sala de ensaio os afetos gerados em seu corpo a partir do diálogo com a cidade; a experimentação das ações resultantes desses afetos, em atrito com os outros corpos dançantes, originava ações e sequências coreográficas; outras ações e sequências também eram conquistadas nos ensaios a partir das vivências influenciadas pelas obras de Hélio Oiticica, como a relação dos corpos com placas retangulares de madeira e tecidos vestidos como parangolés7. A

interação com o espaço público aparece nesses três trabalhos sequenciais da companhia como motivação, – uma vez que Hélio Oiticica propunha a relação direta do espectador com a obra e o espaço que ela ocupa – como instrumento de pesquisa – como explicitado acima - e como resultado estético, pois suas apresentações ocorreram em sua maioria em praças e parques públicos.

A pesquisa continuada do coletivo teatral A Digna se baseia na criação de histórias que enfocam o que é considerado particularidade ou singularidade de sujeitos quaisquer, para que se possa enxergar o todo da cidade, ao mesmo tempo em que o todo se mostre em alta definição em cada um desses indivíduos. Dentro desse contexto, Entre Vãos começou a ser criado da necessidade de histórias individuais que se afetavam, mas que estivessem geograficamente apartadas na cidade. Os deslocamentos a pé feitos pelo público são a tradução poética de nossos olhares para os espaços públicos reais que rodeiam as histórias ficcionais do espetáculo. Os afetos entre os universos individual e coletivo se explicitam ao caminharmos pelas ruas do centro da cidade embebidos das relações criadas no espaço privado de cada residência8.

Convidamos o público para um olhar para a cidade que seja reflexo do personagem assistido, na tentativa de oferecer aos espectadores conexões supra cotidianas com a materialidade de São Paulo. Em Entre Vãos, o caminhar também se encontra como motivação, – pois é da nossa prática como pedestres

7 Os detalhes do processo de criação da Cia Mariana Muniz a partir das obras do artista

plástico Hélio Oiticica estão em Capítulo 2: A Trilogia Oiticica.

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que vem nosso espanto com as diferentes camadas de interação entre os indivíduos - mas principalmente como resultado estético.

Decidimos percorrer os leitos de dois rios de resistência submersos nesse caos paulistano. Ambos os trabalhos propõem a relação direta com o espaço público, que gera éticas de trabalho próprias de cada coletivo, assim como a aplicação prática dessas éticas possui resultados estéticos particulares. Para os próximos dias, nossas câmeras e binóculos serão ajustados para esse foco (o das relações ético-estéticas), para tentar descrever a composição de suas águas, mapear seus cursos e detectar os pontos onde eles conseguem infiltrar o vertiginoso concreto paulistano.

Quais são as relações ético-estéticas entre artistas e cidade propostas por essas duas obras e quais são seus desdobramentos?

Dia 4: Composição geoquímica das águas

Começamos o dia com uma primeira exploração geral dos trajetos de cada rio, para tentar entender a abrangência de cada leito e as peculiaridades de suas formações.

Nosso terreno é repleto de rios subterrâneos como os que veremos aqui: produções cênicas que são frutos de linhas de pesquisa mantidas por artistas interessados em travar um diálogo aberto com a cidade de São Paulo. Muitas dessas propostas são concretizadas por meio dos programas de incentivo à produção cultural da prefeitura da cidade. Os números gerados por essa iniciativa são expressivos: em apenas um deles, o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, até sua 24ª edição em 2014 haviam sido contemplados 372 projetos de 135 núcleos artísticos (GOMES; MELLO, 2014, p.10). O crescimento desses números tem sido exponencial ao longo dos quinze anos desta lei, já que sua criação incentivou a conquista de outros programas, como o Fomento à Dança, o Fomento à Periferia e o Prêmio

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uma ética de relação com a cidade, seus espaços e seus habitantes.

produções artísticas que fogem das determinações estéticas e

temáticas do mercado do entretenimento.

Zé Renato de Teatro9. Além desses programas do município, os coletivos

culturais paulistanos também podem se inscrever nos editais do Programa de Ação Cultural (ProAC), mantidos pela Secretaria de Estado da Cultura10.

Os dois rios que aqui percorremos têm suas nascentes nesses editais públicos:

Entre Vãos foi contemplado pela 2ª edição do Prêmio Zé Renato e A Trilogia Oiticica foi concebida graças às 2ª e 8ª edições do Fomento à Dança e um ProAC

de Produção de Espetáculo Inédito e Temporada de Dança.

A combinação dos fatores

PESQUISA CONTINUADA VERBA PÚBLICA gera possibilidades para

As obras que observamos neste DIÁRIO se encaixam num fazer artístico que vai na contramão do “progresso” e do capital: são frutos de uma pesquisa artística continuada, motivada por uma necessidade de propor brechas de comunicação com a sociedade através de um olhar artístico; são trabalhos que são custeados por sistemas públicos de incentivo à cultura pois não se sustentariam como um produto comercializável, que pudesse gerar uma renda que cobrisse seu

9 A realização e pagamento dos projetos contemplados pelos programas de incentivo à Cultura

da cidade de São Paulo estão ameaçados pelo atual congelamento de 43,5% da verba destinada à Secretaria Municipal de Cultura, decretado no primeiro mês da gestão João Dória. Até o início de junho de 2017, foram assinados os contratos dos projetos contemplados pela 30ª edição do Fomento ao Teatro e da 5ª edição do Prêmio Zé Renato de Teatro, mas ainda não foram lançadas as edições de ambos os editais previstos para o primeiro semestre de 2017. As decisões da comissão de seleção da 22ª edição do Fomento à Dança foram revogadas pelo Secretário de Cultura André Sturm e esta edição foi relançada em seguida, com seu conteúdo modificado, alterando características previstas na lei 14.071/05 que garantem a manutenção de pesquisas continuadas em dança contemporânea. Os trabalhadores da Cultura seguem mobilizados para o descongelamento total da verba e pela aplicação das leis tal qual foram conquistadas.

10 São aproximadamente 44 modalidades de ProAC, entre produção e circulação de espetáculos

inéditos ou não de teatro, dança e circo, produção de festivais, manutenção de lonas de circo e acervos museológicos, entre outros. A verba destinada aos editais do ProAC tem sido anualmente reduzida, diminuindo tanto o número de projetos contemplados em cada edital como o valor cedido a cada um dos projetos.

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investimento inicial de material e trabalho; tratam-se de obras para serem fruídas, não consumidas. O aporte de verbas públicas possibilita que os coletivos artísticos desenvolvam um fazer (uma ética) a partir da contemplação, da experiência e da reflexão. O resultado estético de cada trabalho, antes de responder às expectativas de um mercado consumidor, são consequências desse modo de produção e muitas vezes – como é o caso das obras abordadas – um convite feito ao público para experimentar suas próprias relações cotidianas também pelo viés contemplativo e experiencial. Um desvio da atenção condicionada pela multitarefa inerente aos paulistanos, que leve o espectador a experienciar o espanto em seu cotidiano, traz em si a potência de transformar a maneira como o indivíduo constrói suas relações na cidade, um olhar estético que carrega o germe de novas éticas. Creio que esta seja a maior vocação destes dois trabalhos.

Dia 5: Micropartículas

São Paulo:

Uma cidade de larga extensão territorial que exige longos deslocamentos de seus cidadãos, que cresceu privilegiando o transporte motorizado individual sem grandes métodos ou regulamentações.

2017:

Momento em que as relações são predominantemente “fantasmagóricas”, virtuais. A pretensa interação oferecida por ferramentas como as mídias sociais nos leva à ilusão de uma comunicação democrática entre pessoas com diferentes ideologias, históricos e expectativas, mas em verdade gera espaços de acúmulo da verborragia de opiniões precipitadas sobre todo o tipo de acontecimento social e não nos convida à reflexão sobre o outro e a matéria de que é feito.

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A combinação desses dois fatores resulta num espaço em que o exercício da

alteridade é prática cada vez menos comum. A densidade da população de uma

grande cidade cria a possibilidade de dispersão, de circulação e de acesso: o coletivo urbano possibilita a experiência com a alteridade e, de certa maneira, uma dessegregação: a imprevisibilidade do espaço coletivo permite uma criatividade maior dos processos subjetivos. No entanto, uma cidade orientada para o carro parece mais adequada aos modos de dominação predominantes no capitalismo contemporâneo, como o controle “ao ar livre” possibilitado por uma comunicação quase exclusivamente virtual: a substituição da interação física com a cidade pelos fluxos de informação que correm pelas redes de informática, como pagamentos por cartões de crédito, transmissões ao vivo, comunicação online, entre outros. “Creio que a anticidade privatizada se impõe quando faltam as condições para resistência a essa forma de dominação que caracteriza as mais recentes mutações do capitalismo” (CAIAFA, 2007, p.20-23).

Os dois rios submersos que percorremos aqui são exemplos das inúmeras formas de resistência “minúsculas e cotidianas” que brotam em contraponto aos processos (pós) disciplinares que estruturam nossa cidade. Sem negar ou ignorar as relações virtuais que ensurdecem os cidadãos, Trilogia Oiticica e Entre

Vãos são experiências artísticas presenciais: ao proporem ações diretas no

espaço urbano, essas obras tratam a cidade como um território híbrido onde não há separação entre vida cotidiana e arte. O fazer artístico nesse contexto se apresenta como uma forma de resistência à “sociedade do espetáculo”, como sugere o crítico de arte Nicolas Bourriaud:

A função crítica e subversiva da arte contemporânea agora se cumpre na invenção de linhas de fuga individuais ou coletivas, nessas construções provisórias e nômades com que o artista modela e difunde situações perturbadoras. Por isso a atual febre dos espaços de convívio revisitados, cadinhos onde se elaboram modos heterogêneos de socialidade (BOURRIAUD, 2009, p.44).

Como agentes de seu tempo, é atuando nas pequenas relações entre artistas, espectadores e espaço público que as duas obras tentam sensibilizar os cidadãos para novas trocas com o organismo vivo da cidade. Como linhas de

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fuga dos ditames da sociedade do espetáculo11, sua proposição não se basta

na representação da sociedade, mas como dispositivo de contágio, que sugere para os cidadãos a potência de criação de novas realidades urbanas.

Sua escala é do micro: ambos os trabalhos tentam trazer à tona as micropolíticas que regem a cidade e sua relação com a arte. Segundo o crítico teatral argentino Jorge Dubatti (2007), as artes cênicas instauram um campo de verdades subjetivas que pode seguir dois caminhos: ratificar o status quo e reforçar os parâmetros da macropolítica, repetindo os discursos institucionais; ou constituir uma zona de construção de subjetividades micropolíticas, território alternativo e oposto à macropolítica. Dubatti determina quatro categorias da formação de subjetividade na micropolítica teatral, com possibilidades de combinações e hibridizações entre elas: o primeiro seria um teatro que recria a macropolítica em escala menor, um “teatro do conformismo”, que teria como exemplo espetáculos do circuito comercial; outro seria um teatro que cria micropolíticas compensatórias, não confrontativas, oásis momentâneo de relaxamento e catarse, um lugar de quebra de rotina mas não de ruptura com a macropolítica; um terceiro tipo seria um teatro como fundação de subjetividade alternativa confrontativa, que desafia radicalmente a macropolítica a partir de um lugar de oposição, resistência e transformação, que provê um lugar diferente do macro e constante no tempo, que não aspira a converter-se em uma macropolítica alternativa; por último, um teatro beligerante “contra” a macropolítica, subjetividade de choque com forte articulação ideológica, de visão binária e reestabelecimento de valores e modelos, que luta pela tomada de poder, como o teatro militante de esquerda (DUBATTI, 2007, p.162-164).

Creio que podemos definir as duas obras observadas aqui como pertencentes à terceira categoria sugerida: espetáculos que sugerem a seu público uma outra maneira de viver e pensar, articulada como contrapoder; janelas que se abrem para o diálogo de múltiplas formas de ver e viver a cidade, para além das regras da macropolítica. Cria-se neles uma rede de relações entre artista, criação,

11 O termo “sociedade do espetáculo”, cunhado pelo filósofo francês Guy Debord, é uma crítica

às relações na sociedade contemporânea estabelecidas pelo mercado e mediatizadas por imagens.

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cidade e espectadores: o encontro artístico como potência de transmutação de todos os envolvidos.

Podemos dizer que Trilogia Oiticica e Entre Vãos propõem relações éticas e estéticas em três âmbitos da micropolítica. Os micromovimentos lhes guiam na relação com o próprio corpo, para que o artista encontre em si brechas para outras maneiras de se relacionar com o outro; na troca fluida estabelecida entre artista e espectador são criados os microcosmos; das possibilidades de relação entre artistas, espectadores e os espaços (privados e públicos) da cidade surgem os microlabirintos. Os próximos dias serão de mergulho nesses microuniversos.

Dia 6: Viagem ao centro - micromovimentos

Um olhar para dentro de si. Comecemos o dia pelo corpo.

De acordo com a biomecânica, os movimentos podem ser divididos em dois tipos: macromovimento é de um segmento do corpo no espaço; micromovimento é de um osso em relação a outro tido como imóvel (SANTOS, 2002, p.61).

A imaginação atuando sobre o espaço entre ossos, dentre articulações, relaxando microtensõesinternas que nos mantém em pé e em movimento, micro tensões que fazem parte da constituição de nossa massa física como a estrutura que vemos a olho nu. Esse escrutínio pessoal permite a descoberta de outras maneiras de mover-se, ampliando a expressividade a partir da sensação. O olhar para dentro traz à consciência sensações físicas de pequenas partes do todo e são essas sensações que geram o movimento.

O jogo entre recolhimento e expansão no interior do corpo, necessário nos micromovimentos, funciona como um espelho do macrocosmo, se lembrarmos de que a dualidade expansão-recolhimento se dá em toda nossa estrutura física antes mesmo de nos movimentarmos, como a troca de gases ocorre em todos os tecidos do corpo. Como define Klauss Vianna, bailarino e coreógrafo, mestre de Mariana Muniz:

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O ritmo do universo é composto de expansão e recolhimento. Somos, também, expansão e recolhimento. Temos todos um ritmo comum e universal, e cada artista, ator ou bailarino, precisa atuar respeitando esse ritmo. [...] Essa expansão e esse recolhimento têm harmonia e são capazes de criar um movimento-resposta dentro de mim (VIANNA, 2008, p.79).

A observação desse ritmo comum interno tem por intuito a definição de um mapa do espaço interno do corpo do artista, uma topografia dos trajetos e lugares da energia, uma “consciência inconsciente” que permite que os movimentos corporais se tornem os mais livres e espontâneos possíveis (GIL, 2001, p.132). O uso da imaginação na criação desse mapa interno faz com que imagens construídas no consciente comprometam o corpo real: ao visualizar um micromovimento, não é um corpo imaginário que se move daquela maneira, mas sim o corpo real (embora virtual) que executa movimentos reais (embora microscópicos), acompanhados de sensações de peso, tensões e outras qualidades.

Ora, ter a consciência dos movimentos internos produz dois efeitos: a consciência amplia a escala do movimento, experimentando o bailarino a sua direção, a sua velocidade e a sua energia como se se tratassem de movimentos macroscópicos; e a própria consciência muda, deixando de se manter no exterior de seu objeto para o penetrar, o desposar, impregnar-se dele: a consciência torna-se consciência do corpo, os seus movimentos enquanto movimentos de consciência adquirem as características dos movimentos corporais. Em suma, o corpo preenche a consciência com a sua plasticidade e continuidade próprias. Forma-se assim uma espécie de “corpo da consciência”: a imanência da consciência do corpo emerge à superfície da consciência e constitui doravante seu elemento essencial (GIL, 2001, p.134).

O desafio, insistentemente repetido no cotidiano, de ampliar limites internos – físicos e subjetivos – para potencializar a comunicação artística. A criação desse “corpo da consciência” significa entrar no âmbito das pequenas percepções: dos movimentos do corpo, dos movimentos afetivos, cinestésicos, pequenas percepções de espaço e tempo (GIL, 2001, p.162). O artista em estado contemplativo de seus próprios micromovimentos se permite espantar com o próprio microcosmos, este pedaço de universo que somos; é viver, por inteiro, o amálgama composto por estrutura física, a consciência que é feita dessa

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estrutura, os sentimentos motrizes desse corpo e as possibilidades de interação com o redor... e deixar-se surpreender por ele.

Como Mariana Muniz escreve sobre seu processo de treinamento e criação:

Como se fizesse uma sorte de imersão em campos em que só o espaço das articulações, um jeito de posicionar a minha cabeça-occipital, atlas, axis, em relação ao meu peito-esterno e costelas e braços – úmero, rádio e cúbito, dariam acesso? Ou como se...

Como se minha textura fosse se transformando, mudando, na medida de minha atenção flutuante, submergindo no espaço interno de costelas, coluna e vértebras e... O ser nesse corpo sem privilégios, sem facilidades, sem nome?

Como dar voz a uma forma de materialidade, meu corpo, sem esforço para vir a ser?

Que histórias, trajetórias se desenrolam a cada instante que passa, passam?

Às vezes, muitas vezes, o quê? Impressão de vida dilatada, intensa, de mais poder em cada gesto.

Isso sim faz continuar, faz não desistir de ser, de atuar, de fazer contato, buscar contato com o público, público de qualidades diversas; mais ou menos consciente do que se trata, do que se passa na cena (MUNIZ, ANEXO I, p.6).

Os bailarinos da Companhia Mariana Muniz12 mantiveram ao longo de todo o

processo de criação e apresentação dos espetáculos da Trilogia Oiticica a prática constante da busca pelos micromovimentos internos. Durante os ensaios, havia um primeiro momento de chegada à sala de trabalho, onde realizavam sequências de exercícios propostos por Muniz advindos de técnicas somáticas como Eutonia, Klauss Vianna, Feldenkrais e outras, além de práticas advindas das artes corporais orientais praticadas pela artista, como Lian Gong. Com a atenção desperta por essa sequência é que os artistas seguiam para experimentações em espaços públicos ou mesmo em sala de ensaio a partir de imagens e escritos de Hélio Oititica. A pesquisa física dos micromovimentos, dos deslizamentos entre ossos, é o disparador para a construção de uma consciência

12 De 2007 a 2015, fizeram parte da Cia. Mariana Muniz os bailarinos Aline Bonamim, Júlia Abs,

Bárbara Faustino, Danielli Mendes, Ronaldo Silva, Talita Souza, Thais Ushirobira, Amanda Correa, Gilberto Rodrigues, Viviane Fontes, Lau Francisco, Tatiana Saltini, Maurício Brugnolo, Alice Vasconcelos e o ator Rubens Caribé.

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do corpo que gera o macromovimento e estabelece relações com outros corpos e com o espaço.

A passagem do espaço íntimo/privado para o espaço público/coletivo se faz presente também em Entre Vãos, porém em outro âmbito: na narrativa da experiência cênica. Os espectadores iniciam o espetáculo na relação íntima com apenas uma das personagens, adentrando sua residência e suas questões mais ordinárias; o diálogo entre personagem e espectadores dispara informações sobre seu dia-a-dia, suas memórias, desejos e expectativas; aos poucos, o espaço físico vai trazendo pistas do contexto social daquele indivíduo, até que a visita de uma outra personagem deflagra uma situação limite daquela vida; movidos por tal situação, espectadores e personagens saem pelas ruas da cidade, onde construções, passantes, pichações e fios passam a compor um cenário maior onde personagem e espectadores estão inseridos juntos. O espetáculo se desenvolve ao longo de um trajeto feito a pé e em transporte público e se encerra com um ato dentro de uma estação de metrô, momento ápice da fusão entre íntimo e público, ficção e realidade.

Para que a jornada do privado ao público aconteça para os espectadores, o elenco teve que buscar um estado de escuta permanente. Em um primeiro momento, partiram de um olhar para dentro do próprio corpo que permitisse abrir espaços internos para a troca com o que estivesse ao redor. A percepção ativa de movimentos afetivos e cinestésicos do corpo, das pequenas percepções de espaço e tempo, como sugeridas por José Gil (2001) é elemento essencial para que a escuta se mantenha viva em cada espetáculo: acessadas essas qualidades internas13, a atenção dos criadores de Entre Vãos esteve, a todo

momento, na criação e manutenção de um estado de porosidade, de troca, para que o que viesse do ambiente (luzes, cheiros, sons, temperaturas) e dos espectadores (palavras, ações, olhares) pudesse ser o disparador da narrativa proposta pela dramaturgia. A observação sai do campo individual, do próprio corpo, para o relacional, conforme veremos mais adiante.

13 As qualidades da escuta relacional desenvolvida em Entre Vãos estão descritas no Capítulo

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Dia 7: Ficções insulares – microcosmos

Começamos o dia num gramado nebuloso, o sol ainda não havia raiado. Fomos jogar futebol. Algumas partes estavam iluminadas por uma luz neon, mas outras partes ficavam no escuro. Dependendo do lado para o qual jogávamos a bola, dava uma sensação de que a gente podia se perder ali. Quando íamos atrás de um chute que ia longe demais, as vozes iam ficando cada vez mais distantes e nós, sem querer, adentrávamos a escuridão, passávamos a um outro território, um lugar mais metafísico. Ainda pisamos o mesmo campo, mas outras coisas podem acontecer naquele espaço escuro e nebuloso.

Essa é uma sensação que me acompanha desde sempre na produção, nos ensaios: se se trata do jogo que conheço, ou se é outro jogo, que se impõe. Se a pessoa é lançada a um outro lugar que pode ter consequências imprevistas para ela. [...] O teatro é uma paixão pela qual a pessoa é tomada, não se escolhe por vocação. Se atua por obrigação, por necessidade. É algo imposto. Mas a neblina também provoca fantasmas: os nossos próprios, os dos outros, os dos outros atores, os dos atores que já assistimos, os das peças de teatro que já vimos e nos comoveram, as situações teatrais que já presenciamos e outras que reconhecemos como teatrais. E sempre a impressão de que a neblina impede de olhar para trás [...] o teatro como um gramado nebuloso onde existem as passagens, a necessidade de que algo me permita reconhecer aquele que fui, aquelas coisas que já foram pensadas. Porque senão o passado pode ser tornar algo irreconhecível, estranho. Na verdade, é um elemento da condição humana tenta em alguns momentos produzir níveis de energia que permitam conectar mundos que de outra maneira nos seriam estranhos, desconexos. O teatro, a somatória das cenas que são ignoradas, que criam traços entre si, que são desconhecidas (BARTÍS apud DUBATTI, 2007, p.93, tradução livre).14

14

Esa es una sensación que me ha acompañado siempre en la producción, en los ensayos: si se trata del juego que conozco, o si es otro juego, que se impone. Si uno es arrojado a otro lugar que puede tener consecuencias imprevistas para uno […] El teatro es una pasión por la que uno es tomado, uno lo elige por vocación. Se actúa por obligación, por necesidad. Se impone. Pero la niebla también convoca fantasmas y el teatro siempre está poblado de fantasmas: los propios, los ajenos, los de los actores, los de los actores que uno ha visto, los de las obras que uno ha visto y que lo han conmovido, las situaciones teatrales que uno ha visto y en las que ha reconocido el teatral. Y siempre la impresión de que la niebla impide ver para atrás […] el teatro como una cancha neblinosa donde existen los cruces, la necesidad de que algo me permita reconocer a aquel que fui, aquellas cosas que uno pensó. Porque si no a veces el pasado tiene algo de irreconocible, de ajeno. A lo mejor es un elemento de la condición humana que el teatro formula, porque el teatro intenta por momentos producir niveles de energía que permitan conectar

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Este gramado onírico plantado pelo diretor teatral Ricardo Bartís nos serve de meta-terreno para reconhecermos o solo de nossos rios submersos. Estamos falando de obras cênicas que, mesmo estando inseridas na vida cotidiana da cidade, criam ao mesmo tempo um mundo à parte, com suas próprias regras. Conexões e contrastes se intercambiam e, ao mesmo tempo, unem e separam realidade e ficção teatral. O elemento fundante da cena é a corporeidade dos intérpretes – corpos vivos que geram a poiesis com sua própria materialidade – que ao mesmo tempo está inserida na realidade urbana e muitas vezes extrapola as regras que compõem a vida “real”. Essa fricção entre cena e vida é nomeada pelo crítico teatral Jorge Dubatti de deriva extracotidiana: a cada espetáculo, o teatro cria um regime de alteridade com outras regras, diferentes do mundo comum e dos saberes do regime de experiência da vida diária:

Acerta Sartre quando fala do ente artístico como “microcosmos”: mundo dentro do mundo, mundo paralelo ao mundo, cuja alteridade se percebe na instauração de regras próprias e pelo necessário contraste que imediatamente ergue diante da vida cotidiana. Exibe uma diferença fundante. A poiésis é um cosmos de leis íntimas, como descreve Borges […] Ou melhor, um “caosmos”, regido por leis somente em parte inteligíveis racionalmente. O mundo poético é extracotidiano e admite deslocamentos, correlações e conexões com a ordem do metafísico, o transcendente, o sagrado. (DUBATTI, 2007, p.92, tradução livre)15

A criação desse microcosmos, além de ser em si um mundo com suas próprias regras, cumpre também uma função mediadora entre mundos: realidade e ficção; o passado, o presente e o futuro de cada um deles; suas ligações com outros mundos poéticos de teatralidade ou metafísicos. A cena cria uma malha de conexões que permite a esses mundos conhecer-se e reunir-se. E é a corporeidade do ator que materializa essa rede de vínculos.

mundos que de otra manera nos son ajenos, inconexos. El teatro, sumatoria de escenas que se ignoran, que se hacen señas entre sí, que se desconocen.

15 Acierta Sartre cuando hable del ente artístico como “microcosmos”, mundo dentro del mundo,

mundo paralelo al mundo, cuya alteridad se percibe en la instauración de reglas propias y por el necesario contraste que inmediatamente yergue frente la vida cotidiana. Exhibe una diferencia fundante. La poíesis es un cosmos de íntimas leyes, como escribe Borges […] O mejor, un “caosmos”, regido por leyes solo en parte inteligibles racionalmente. El mundo poiético es extracotidiano, y admite desplazamientos, correlaciones y conexiones con el orden metafísico, lo transcendente, lo sagrado.

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Então voltamos ao corpo do intérprete: é a partir dele que se dão as relações que buscamos observar aqui. A presença física conecta ator e espectador em um primeiro plano material, mas as conexões estabelecidas entre eles são possíveis pela dupla dimensão corpo físico e corpo poético, que convivem, dialogam, se impõem um sobre o outro. As ações físicas do intérprete não carregam apenas uma função expressiva, nem meramente comunicativa entre ele e o espectador. Este corpo é “um ente em si, sem para quê nem porquê, e vale por sua função ontológica: instauração de mundo” (DUBATTI, 2007, p.101, tradução livre). Um corpo em movimento, produtor e receptor de ações variadas em forma e conteúdo, em ritmos, velocidades e intensidades, em cores e cheiros, composto por ações, intenções, sensações, impulsos e energias. O corpo da consciência, de que eu falava antes, corpo como mapa de possibilidades, terreno atravessado por forças que pode se potencializar e intensificar na relação com o outro – ou perder sentido e enfraquecer. São os afetos que definem o que é esse corpo que somos e sobre o qual trabalhamos. É a capacidade de, no encontro com outro, transformar-se ao mesmo tempo em que age como transformador; potência para gerar a diferença de si, do outro e do espaço que ocupam. “Um corpo é sempre uma multidão de relações e, como tal, está permanentemente deflagrando relações. Corpo em relação com corpo forma corpo. O entre-lugar da presença é no nosso corpo o que não está em nós”, conforme sugere Eleonora Fabião (2010, p.323).

Presença é o termo que costumamos usar para essa capacidade do artista de manter-se em um fluxo de relações. É algo fluido, mutação contínua, que acontece no contato com o espectador; é a dilatação do comportamento cotidiano, fazendo com que o corpo do ator possa assumir atitudes imprevistas, extracotidianas. Como nos sugere Eugenio Barba, a modelação e amplificação dos micromovimentos formam um núcleo de potencialização da presença do intérprete, para se transformar na base de suas técnicas extracotidianas. (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 18). A presença tem espessura de experiência, pois é fruto da relação entre a técnica corporificada do ator e as múltiplas leituras que o espectador faz daquele corpo e do encontro com ele, além daquilo que está no corpo do intérprete, mas não pode ser compreendido racionalmente pelo

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espectador (algo que já se tornara experiência, como a aplicação de técnicas corporais e o resultado de ensaios).

No teatro vivemos (o mundo cotidiano da vida imediata e o extra cotidiano da poíesis), nos percebemos vivendo, falamos, nos percebemos falando, mas também percebemos que há o

não-percebido e o não-falado e que só podemos dar conta desta zona pela

via negativa. Sentados na plateia, pensamos estremecidos: que acontecimento invisível e inaudível se torna possível deste encontro? Por que a historicidade desta poíesis acontece agora e não no passado ou no futuro? Que tramas internas de minha pessoa se tecem e destecem neste convívio sem que eu perceba seu tear? (DUBATTI, 2007, p.155-156, tradução livre)16

É o convívio entre artistas e espectadores que gera essa teia de experiência: instaura-se uma relação de escuta de si, um “convívio consigo” que é apenas possível a partir do convívio com outros: o encontro de outra pessoa comigo, eu com outro ser humano, nossas companhias no devir e a multiplicação deste vínculo de companhia na poíesis viva. A rede de experiência multidirecional envolve, tanto para artistas como para espectadores, a observação do mundo cotidiano, do trabalho do artista, do corpo poético, além dos processos de apreensão do corpo poético, da vivência da zona de experiência (o trinômio convívio-poiésis-espectação) e de si mesmo em estado de afetação (DUBATTI, 2007, p. 159).

O acontecimento cênico como experiência de alteridade. A troca viva entre intérprete e espectador tem a função – nos dois casos aqui estudados – de despertar ambos os lados do anestesiamento proposto pela macropolítica no convívio urbano. Trilogia Oiticica e Entre Vãos são espetáculos-lembrança de que não somos uma massa pasteurizada de iguais, mas um caldeirão de diferentes e seus dissensos e conflitos. Não é à toa que ambos trazem à vida personagens ditos marginalizados, ocultados. Os anônimos de Parangolés,

16 “En el teatro vivimos (el mundo cotidiano de la vida inmediata y el extracotidiano de la poíesis),

nos percibimos vivir, hablamos, nos percibimos hablar, pero también percibimos que hay

no-percibido y no-hablado y que sólo podemos dar cuenta de esta zona por vía negativa. Sentados

en la butaca pensamos estremecidos: ¿qué invisible e inaudible acontecimiento hace posible esta reunión?; ¿por qué la historicidad de esta poíesis es ahora y no en el pasado o en el futuro?; ¿qué tramas internas de mi persona se tejen y destejen en este convivio sin que yo perciba el tejido?”

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Fig.4 – Mariana Muniz em Penetráveis. Foto de Ede Hohne.

Penetráveis e Nucleares na rua são seres que parecem descolados da correria

das ruas, que estabelecem relações extra cotidianas com a paisagem urbana; a Anjo de Corredor, a Balconista da loja de paletas mexicanas e o Livreiro, personagens de Entre Vãos, são indivíduos já desprovidos de “utilidade”, pessoas que não se encaixam nos padrões do mercado por escolaridade, idade, habilidades e classe social. Todas essas personagens surgem das brechas de uma cidade homogeneizada e cinza, são indivíduos que inventam suas próprias maneiras de sobreviver e resistir, compondo bricolagens dos restos que para eles sobram. Veremos mais adiante como estes microcosmos são instaurados e percebidos por Mariana Muniz e por mim nos dois trabalhos e como o exercício da alteridade se faz entre intérprete e espectador.

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Fig. 5 (da esq. para a dir.) – Laís Marques (Balconista), Helena Cardoso (Anjo de Corredor) e Plínio Soares (Livreiro). Foto de Alécio Cesar.

Dia 8: Entre-meios – microlabirintos urbanos

Quando se pede em um grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.

Trecho de O Narrador, de Walter Benjamin (1994).

Caminhada no centro de São Paulo.

As ruas dos Campos Elíseos, prédios de classe média intercalados com antigos casarões quase abandonados. Alguns ambulantes nas esquinas, pedestres cruzam os carros, movimento de porta de escola, de supermercado, de padaria. Após poucas quadras, cruza a Avenida São João, por debaixo do Elevado João Goulart (que até pouco tempo se chamava Costa e Silva). Fileiras de colchões e cobertores sujos com restos humanos dentro. Alguns consomem drogas, outros

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