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Começamos o dia num gramado nebuloso, o sol ainda não havia raiado. Fomos jogar futebol. Algumas partes estavam iluminadas por uma luz neon, mas outras partes ficavam no escuro. Dependendo do lado para o qual jogávamos a bola, dava uma sensação de que a gente podia se perder ali. Quando íamos atrás de um chute que ia longe demais, as vozes iam ficando cada vez mais distantes e nós, sem querer, adentrávamos a escuridão, passávamos a um outro território, um lugar mais metafísico. Ainda pisamos o mesmo campo, mas outras coisas podem acontecer naquele espaço escuro e nebuloso.

Essa é uma sensação que me acompanha desde sempre na produção, nos ensaios: se se trata do jogo que conheço, ou se é outro jogo, que se impõe. Se a pessoa é lançada a um outro lugar que pode ter consequências imprevistas para ela. [...] O teatro é uma paixão pela qual a pessoa é tomada, não se escolhe por vocação. Se atua por obrigação, por necessidade. É algo imposto. Mas a neblina também provoca fantasmas: os nossos próprios, os dos outros, os dos outros atores, os dos atores que já assistimos, os das peças de teatro que já vimos e nos comoveram, as situações teatrais que já presenciamos e outras que reconhecemos como teatrais. E sempre a impressão de que a neblina impede de olhar para trás [...] o teatro como um gramado nebuloso onde existem as passagens, a necessidade de que algo me permita reconhecer aquele que fui, aquelas coisas que já foram pensadas. Porque senão o passado pode ser tornar algo irreconhecível, estranho. Na verdade, é um elemento da condição humana tenta em alguns momentos produzir níveis de energia que permitam conectar mundos que de outra maneira nos seriam estranhos, desconexos. O teatro, a somatória das cenas que são ignoradas, que criam traços entre si, que são desconhecidas (BARTÍS apud DUBATTI, 2007, p.93, tradução livre).14

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Esa es una sensación que me ha acompañado siempre en la producción, en los ensayos: si se trata del juego que conozco, o si es otro juego, que se impone. Si uno es arrojado a otro lugar que puede tener consecuencias imprevistas para uno […] El teatro es una pasión por la que uno es tomado, uno lo elige por vocación. Se actúa por obligación, por necesidad. Se impone. Pero la niebla también convoca fantasmas y el teatro siempre está poblado de fantasmas: los propios, los ajenos, los de los actores, los de los actores que uno ha visto, los de las obras que uno ha visto y que lo han conmovido, las situaciones teatrales que uno ha visto y en las que ha reconocido el teatral. Y siempre la impresión de que la niebla impide ver para atrás […] el teatro como una cancha neblinosa donde existen los cruces, la necesidad de que algo me permita reconocer a aquel que fui, aquellas cosas que uno pensó. Porque si no a veces el pasado tiene algo de irreconocible, de ajeno. A lo mejor es un elemento de la condición humana que el teatro formula, porque el teatro intenta por momentos producir niveles de energía que permitan conectar

Este gramado onírico plantado pelo diretor teatral Ricardo Bartís nos serve de meta-terreno para reconhecermos o solo de nossos rios submersos. Estamos falando de obras cênicas que, mesmo estando inseridas na vida cotidiana da cidade, criam ao mesmo tempo um mundo à parte, com suas próprias regras. Conexões e contrastes se intercambiam e, ao mesmo tempo, unem e separam realidade e ficção teatral. O elemento fundante da cena é a corporeidade dos intérpretes – corpos vivos que geram a poiesis com sua própria materialidade – que ao mesmo tempo está inserida na realidade urbana e muitas vezes extrapola as regras que compõem a vida “real”. Essa fricção entre cena e vida é nomeada pelo crítico teatral Jorge Dubatti de deriva extracotidiana: a cada espetáculo, o teatro cria um regime de alteridade com outras regras, diferentes do mundo comum e dos saberes do regime de experiência da vida diária:

Acerta Sartre quando fala do ente artístico como “microcosmos”: mundo dentro do mundo, mundo paralelo ao mundo, cuja alteridade se percebe na instauração de regras próprias e pelo necessário contraste que imediatamente ergue diante da vida cotidiana. Exibe uma diferença fundante. A poiésis é um cosmos de leis íntimas, como descreve Borges […] Ou melhor, um “caosmos”, regido por leis somente em parte inteligíveis racionalmente. O mundo poético é extracotidiano e admite deslocamentos, correlações e conexões com a ordem do metafísico, o transcendente, o sagrado. (DUBATTI, 2007, p.92, tradução livre)15

A criação desse microcosmos, além de ser em si um mundo com suas próprias regras, cumpre também uma função mediadora entre mundos: realidade e ficção; o passado, o presente e o futuro de cada um deles; suas ligações com outros mundos poéticos de teatralidade ou metafísicos. A cena cria uma malha de conexões que permite a esses mundos conhecer-se e reunir-se. E é a corporeidade do ator que materializa essa rede de vínculos.

mundos que de otra manera nos son ajenos, inconexos. El teatro, sumatoria de escenas que se ignoran, que se hacen señas entre sí, que se desconocen.

15 Acierta Sartre cuando hable del ente artístico como “microcosmos”, mundo dentro del mundo,

mundo paralelo al mundo, cuya alteridad se percibe en la instauración de reglas propias y por el necesario contraste que inmediatamente yergue frente la vida cotidiana. Exhibe una diferencia fundante. La poíesis es un cosmos de íntimas leyes, como escribe Borges […] O mejor, un “caosmos”, regido por leyes solo en parte inteligibles racionalmente. El mundo poiético es extracotidiano, y admite desplazamientos, correlaciones y conexiones con el orden metafísico, lo transcendente, lo sagrado.

Então voltamos ao corpo do intérprete: é a partir dele que se dão as relações que buscamos observar aqui. A presença física conecta ator e espectador em um primeiro plano material, mas as conexões estabelecidas entre eles são possíveis pela dupla dimensão corpo físico e corpo poético, que convivem, dialogam, se impõem um sobre o outro. As ações físicas do intérprete não carregam apenas uma função expressiva, nem meramente comunicativa entre ele e o espectador. Este corpo é “um ente em si, sem para quê nem porquê, e vale por sua função ontológica: instauração de mundo” (DUBATTI, 2007, p.101, tradução livre). Um corpo em movimento, produtor e receptor de ações variadas em forma e conteúdo, em ritmos, velocidades e intensidades, em cores e cheiros, composto por ações, intenções, sensações, impulsos e energias. O corpo da consciência, de que eu falava antes, corpo como mapa de possibilidades, terreno atravessado por forças que pode se potencializar e intensificar na relação com o outro – ou perder sentido e enfraquecer. São os afetos que definem o que é esse corpo que somos e sobre o qual trabalhamos. É a capacidade de, no encontro com outro, transformar-se ao mesmo tempo em que age como transformador; potência para gerar a diferença de si, do outro e do espaço que ocupam. “Um corpo é sempre uma multidão de relações e, como tal, está permanentemente deflagrando relações. Corpo em relação com corpo forma corpo. O entre-lugar da presença é no nosso corpo o que não está em nós”, conforme sugere Eleonora Fabião (2010, p.323).

Presença é o termo que costumamos usar para essa capacidade do artista de manter-se em um fluxo de relações. É algo fluido, mutação contínua, que acontece no contato com o espectador; é a dilatação do comportamento cotidiano, fazendo com que o corpo do ator possa assumir atitudes imprevistas, extracotidianas. Como nos sugere Eugenio Barba, a modelação e amplificação dos micromovimentos formam um núcleo de potencialização da presença do intérprete, para se transformar na base de suas técnicas extracotidianas. (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 18). A presença tem espessura de experiência, pois é fruto da relação entre a técnica corporificada do ator e as múltiplas leituras que o espectador faz daquele corpo e do encontro com ele, além daquilo que está no corpo do intérprete, mas não pode ser compreendido racionalmente pelo

espectador (algo que já se tornara experiência, como a aplicação de técnicas corporais e o resultado de ensaios).

No teatro vivemos (o mundo cotidiano da vida imediata e o extra cotidiano da poíesis), nos percebemos vivendo, falamos, nos percebemos falando, mas também percebemos que há o não-

percebido e o não-falado e que só podemos dar conta desta zona pela

via negativa. Sentados na plateia, pensamos estremecidos: que acontecimento invisível e inaudível se torna possível deste encontro? Por que a historicidade desta poíesis acontece agora e não no passado ou no futuro? Que tramas internas de minha pessoa se tecem e destecem neste convívio sem que eu perceba seu tear? (DUBATTI, 2007, p.155-156, tradução livre)16

É o convívio entre artistas e espectadores que gera essa teia de experiência: instaura-se uma relação de escuta de si, um “convívio consigo” que é apenas possível a partir do convívio com outros: o encontro de outra pessoa comigo, eu com outro ser humano, nossas companhias no devir e a multiplicação deste vínculo de companhia na poíesis viva. A rede de experiência multidirecional envolve, tanto para artistas como para espectadores, a observação do mundo cotidiano, do trabalho do artista, do corpo poético, além dos processos de apreensão do corpo poético, da vivência da zona de experiência (o trinômio convívio-poiésis-espectação) e de si mesmo em estado de afetação (DUBATTI, 2007, p. 159).

O acontecimento cênico como experiência de alteridade. A troca viva entre intérprete e espectador tem a função – nos dois casos aqui estudados – de despertar ambos os lados do anestesiamento proposto pela macropolítica no convívio urbano. Trilogia Oiticica e Entre Vãos são espetáculos-lembrança de que não somos uma massa pasteurizada de iguais, mas um caldeirão de diferentes e seus dissensos e conflitos. Não é à toa que ambos trazem à vida personagens ditos marginalizados, ocultados. Os anônimos de Parangolés,

16 “En el teatro vivimos (el mundo cotidiano de la vida inmediata y el extracotidiano de la poíesis),

nos percibimos vivir, hablamos, nos percibimos hablar, pero también percibimos que hay no-

percibido y no-hablado y que sólo podemos dar cuenta de esta zona por vía negativa. Sentados

en la butaca pensamos estremecidos: ¿qué invisible e inaudible acontecimiento hace posible esta reunión?; ¿por qué la historicidad de esta poíesis es ahora y no en el pasado o en el futuro?; ¿qué tramas internas de mi persona se tejen y destejen en este convivio sin que yo perciba el tejido?”

Fig.4 – Mariana Muniz em Penetráveis. Foto de Ede Hohne.

Penetráveis e Nucleares na rua são seres que parecem descolados da correria

das ruas, que estabelecem relações extra cotidianas com a paisagem urbana; a Anjo de Corredor, a Balconista da loja de paletas mexicanas e o Livreiro, personagens de Entre Vãos, são indivíduos já desprovidos de “utilidade”, pessoas que não se encaixam nos padrões do mercado por escolaridade, idade, habilidades e classe social. Todas essas personagens surgem das brechas de uma cidade homogeneizada e cinza, são indivíduos que inventam suas próprias maneiras de sobreviver e resistir, compondo bricolagens dos restos que para eles sobram. Veremos mais adiante como estes microcosmos são instaurados e percebidos por Mariana Muniz e por mim nos dois trabalhos e como o exercício da alteridade se faz entre intérprete e espectador.

Fig. 5 (da esq. para a dir.) – Laís Marques (Balconista), Helena Cardoso (Anjo de Corredor) e Plínio Soares (Livreiro). Foto de Alécio Cesar.