3.3 ‐ A escritura diante do absurdo
CARTAS DA PRISÃO ‐ MONÓLOGO
(Uma rearticulação narrativa como experiência crítico-‐adaptativa do livro homônimo de Frei Betto)
INTRODUÇÃO -‐ Notas sobre metodologia e recorte
Disjecta membra
A escolha do monólogo como gênero de destino para adaptação do texto original de Frei Betto, “Cartas da Prisão” (1969/1972), foi motivada pela análise mais detida de algumas adaptações visitadas ao longo do curso, tempo em que pudemos constatar que a experiência interpretativa de uma adaptação em muito se assemelha aos desafios estruturais da tradução e da crítica literária. A proposta baseou-‐se na justificativa da disciplina “O clássico e sua adaptação”, ministrada pela Prof. Dra. Juliana Loyola no primeiro semestre de 2012, de vincular a linha de pesquisa da adaptação simultaneamente ao processo e ao produto.
A solidão do cárcere, o tom confessional das cartas e a trajetória individual de superação da prisão por meio da literatura, enfoque de minha pesquisa acadêmica, somam-‐se como aspectos complementares que justificam a opção pela experiência teatral mínima, qual seja, o monólogo, o discurso solitário no palco.
Mesmo obrigatória e essencialmente apresentando-‐se como uma versão mais concentrada (não necessariamente simplificada) do conteúdo vertido, o monólogo é o gênero dramático que mais se aproxima do contexto épico-‐lírico do original. Ao contrário de adaptações para teatro, cinema e televisão, em que imagens tomam necessariamente o lugar das figurações textuais, o monólogo mais se filia a uma leitura do que a uma encenação propriamente dita. É exatamente aí que se concentra a carga interpretativa do ator como aquele que comanda o fluxo das ideias, dos pensamentos, das reflexões, das cartas.
Na expectativa de obtermos um conhecimento aprofundado do original estudado e ciente da ferramenta inalienável da intencionalidade, base autoral do projeto, pusemo-‐nos inicialmente a pesquisar os recursos de linguagem cênica e discursiva que poderíamos explorar para encontrar o modo que nos parecesse mais
adequado para re-‐contar, transformando, vertendo a história apresentada originalmente em escrínio.
Ao mesmo tempo, exercitávamos o desenho daquilo que Linda Hutcheon (2011, p. 47), chama de engajamento, ou seja, a abordagem imersiva mais ampla do fenômeno, considerando-‐o sob a ótica do produto (transcodificação extensiva e particular), do processo (reinterpretação criativa e intertextualidade palimpséstica) e por fim, mas não por último, da interação (o modo participativo de considerar as múltiplas relações de leitura e reação por parte do público).
Somando os três modos de posicionamento, a meu ver, indissociáveis, posicionamos o engajamento com olhar artístico e autoral diante das epístolas do original e, assim, ampliamos as possibilidades de leitura e interpretação. Mas qual linha conceitual seguir? Para se evitar um texto branco, anêmico de opinião, sobre qual pressuposto estruturar o discurso? O de um documento vivo da repressão política no Brasil nos chamados Anos de Chumbo? O de um relato da redenção espiritual em clausura pela fé cristã?
Analisando o conjunto das cartas relativas ao período, à luz dos quarenta anos de sua publicação, concluímos que o livro deveria ser visto, hoje, primordialmente, a despeito dos dois olhares aqui apresentados, por uma terceira lente: a da fotografia literária de uma travessia, enfoque não casualmente coincidente com a linha de pesquisa adotada. E assim prosseguimos.
Isso não significava negar as outras formas de interpretação da obra, mas evidentemente, ao ressaltar seus contornos mais literários, no visível arcabouço de seus referenciais artísticos e humanos, estava ali evidentemente fazendo valer o nosso recorte de intencionalidade.
Animado pelas palavras de John Bryant, colhidas por Hutcheon (2011, p. 226), que argumentam que nenhum texto é algo fixo e que, paralelamente, trabalhos de performance são igualmente fluidos, uma vez que dois deles jamais serão iguais, iniciamoso desafio da adaptação preservando destarte, sempre que possível, o tom, o humor, o vocabulário e o regionalismo da fala que colhemos “musicalmente” obra afora. De início, o mais difícil da narrativa foi situar, no corpo do texto, de modo convincente e natural, dados que posicionassem o espectador no tempo-‐espaço da obra.
Desse modo, informações importantes, tais como traços biográficos de Frei Betto, circunstâncias de sua prisão, locais e condições em que o preso se encontrava, situação política brasileira no período, informações de cunho religioso, etc., foram inseridas in medias res, dispostas ao longo das cartas em pensamentos que regressavam e reconstituíam aos poucos o sentido da narrativa, sem despejar informações enciclopédicas no ouvido do público.
O pudor de tocar o conteúdo documental também foi algo que deixamos de lado na medida em que as falas foram se justapondo. Na edição, necessitávamos não apenas situá-‐las, mas também dar-‐lhes sentido sequencial, tirando-‐lhes o tom de escrita e emprestando-‐lhes coloquialidade.
Outro ponto interessante do processo a ser ressaltado é a intenção de deixarem-‐se revelar a natural forma fragmentada das cartas, a colagem inevitável de camadas sobrepostas, dirigidas a múltiplas audiências, palimpsesto com que intencionava representar o esfacelamento do homem naquele tempo em que suas liberdades individuais eram cerceadas e sua expressão política e ideológica era reprimida.
A imagem dos membros esparsos do poeta e cantor, disjecta membra, no mito de Orfeu, despedaçado pelas Bacantes, diga-‐se de passagem, enfurecidas pela fidelidade do herói a Eurídice, a ninfa, pareceu-‐nos sob medida para a representação deste monólogo de encadeamento mínimo para máxima expressão do que se quer dizer.
Se as cartas em questão já eram fragmentos literários em si, e se sua adaptação obrigava a outros modos de controle e dispersão, só mesmo a musa da literatura para reificar o sentido de seu conjunto unívoco, recolhendo cada parte dispersa para que o autor e a essência de seu texto pudessem ser "transduzidos" e, trazidos, de modo consistente, ao tempo presente, ao espectador teatral e ao nosso pensamento artístico.