3.3 ‐ A escritura diante do absurdo
MONÓLOGO INTERIOR DIRETO 4
Fomos colonizados pelos europeus, não pudemos repetir a experiência dos gregos, que impuseram sua cultura aos romanos que os dominaram. Os europeus não nos trouxeram a civilização, de fato nos impuseram sua civilização. Até há pouco se acreditava que o índio era um ser selvagem e primitivo porque anda nu, mora em cabanas, não sabe ler nem escrever. Hoje os antropólogos sabem que a cultura indígena não é primitiva, mas paralela. Muitos índios nos consideram primitivos, atrasados em relação a eles, que vivem nas selvas sem os problemas que enfrentamos nas cidades. O fato é que a Europa se impôs à América, África e Ásia. O branco tornou-‐se senhor do negro, do amarelo e do índio. Jesus identificava-‐se plenamente com seu povo; falava em aramaico, e suas parábolas estão todas baseadas no sistema de vida de gente que o cercava: pastores, agricultores, pescadores, viajantes, cobradores de impostos, soldados, fariseus etc. Vestia-‐se como eles, seguia-‐lhes os ritos, celebrava as suas festas. Era ele próprio um homem do povo. Em Jerusalém, os que o perseguiam não conseguiam distingui-‐lo dos outros. Nas pequenas cidades, cercadas de casebres, ergue-‐se acintosamente a torre de igreja; nossos templos permanecem
vazios à noite, enquanto os filhos de Deus abrigam-‐se ao relento, embrulhados em folhas de jornal; nossos colégios e conventos comparam-‐se às mais ricas mansões. Somos a imagem da Europa branca e rica em meio a um povo pobre, negro, mulato. A paisagem que me envolve é toda ela cimento e ferro. Uma atmosfera opressiva. Sinto falta de ar e espaço onde a vista possa se perder no infinito. Nasci numa terra de montanhas. E passei os primeiros anos da infância à beira-‐mar. Minha mais remota lembrança é a de brincar com um balde na areia da praia de Copacabana. Conservo a imagem, devia ter três ou quatro anos. Só a partir daí tomei consciência, realmente, de sua dimensão pessoal. Até então vivi na ilusão da lei da selva, na qual a competição destrói a cooperação. Abandonei a competição para buscar a cooperação. Abandonei os meus desejos, para dar lugar às escolhas necessárias. Descobri que toda opção implica renúncia. Minha sensibilidade foi educada pelo cinema. Os filmes mostravam-‐me, de modo mais vivo e cruel, o que já havia assimilado das revistas em quadrinhos. Convenciam-‐me de que o amor é um rosto bonito, um corpo bem-‐feito, e que, para ser boa, a vida deve estar repleta de aventuras incríveis. Para mim, o homem realizado era rico, bem vestido, perfumado, cercado de mulheres, servido por empregados prontos a satisfazer seus menores desejos. Saía do filme convicto de que poderia repetir a lição, desde que fosse suficientemente esperto para ganhar muito dinheiro. O ABC do Tio Sam. Este personificava, a meus olhos, o progresso, a civilização, a liberdade. Quem põe a mão no fogo, se queima. Se fomos iludidos sobre o amor, não podemos viver senão de ilusões amorosas e de amores ilusórios. Não podemos nos libertar dessa alienação, ou a nossa egolatria chafurda-‐se como um porco no chiqueiro, se não descobrimos a dimensão social da existência. O heroísmo, então, passa a ser o de um povo que concretiza as suas aspirações. O poder torna-‐se sinônimo de serviço; o amor, de dom.
CARTA 13 -‐ Queridos pais e manos,
Recebi o queijo. Da sinusite, melhorei muito depois de instalar aqui na cela uma lâmpada infravermelha, que nos foi emprestada. Diminui sensivelmente a umidade do ambiente e, nos dias frios, serve para esquentar-‐nos. Se bem que esse foi o inverno mais quente que já passei em São Paulo. Dois ou três dias daquele frio de enregelar os ossos e, o resto, um sol radiante se erguia lá fora.
Agora estou com problemas de dentes. Estão se descalcificando; quando mastigo sinto-‐os bambos e doloridos, e a gengiva latejante. Na situação em que me encontro, ingerir cálcio é praticamente inútil. Como quase não tomo sol, o organismo expele sem efeito.
Faz dois anos que estamos presos. Dois anos de sofrimentos e alegrias, trevas e luz, perdas e ganhos. Dois anos de muito amor sob muito ódio, de inefável liberdade entre grades. Nestes subterrâneos da história, sentimos o quanto atua o Espírito de Deus, fazendo de todos aqueles que aspiram ao seu amor sinal de contradição.
Quantos anos viverei ainda sem ver o céu brilhando de estrelas e sentir a brisa do mar em meu corpo? Quanto tempo ainda fechado num quarto que é cozinha que é banheiro que é escritório que é oficina que é copa que é sala de ginástica que é templo, sem lá fora, sem poder ir e vir, vendo a liberdade física terminar numa pesada porta de placas de ferro e barras roliças, que jamais se abre senão pela vontade alheia? Quanto tempo transformado em folha de processo, entre tantos outros, em mãos de quem julga o réu desprovido de tempo e de espaço, reduzido a uma pena que soa como um número abstrato?
Deus nos abençoes a todos, Betto.
SOLILÓQUIO 9
Um Natal muito feliz. Feliz? A situação que vivemos aqui nega toda e qualquer unidade. Nos separa e discrimina, desde as grades de ferro que limitam nosso movimento físico às manchetes de jornais que nos difamam. Quem vive segregado, aspira a viver o contrário disso – a unidade. São Paulo diz que devemos abster-‐nos de carne se, ao comê-‐la, escandalizamos alguém. Não havia condições de comungarmos o corpo
do Senhor ao lado daqueles que fizeram sofrer o corpo do homem criado a imagem e semelhança de Deus, e templo do Espírito Santo. Saí da missa, sim, se ficasse ali, transmitiria a imagem de uma Igreja que se submete docilmente aos poderosos, aceita as migalhas que caem da mesa dos ricos, está sempre cheia de sorrisos para os que governam e ameaçam. Não comparecendo, tomamos uma posição coerente com nossa pregação: uma Igreja solidária aos pobres e oprimidos, disposta a expulsar do templo os que o transformam em mercado -‐ quanto mais os que profanam, pela tortura, o verdadeiro templo de Deus! O
Bom Pastor é aquele que dá a vida por suas ovelhas.
CARTA 14 -‐ Querida família:
Mãe, você fala pra gente cozinhar banana-‐d’água preta à milanesa. Descobri a mancada que dei: tem que ser d’água, né ? Bem que o Fernando falou, ele que é da raça. Tasquei uma qualquer no ovo, na farinha de pão, na frigideira, e nada de a desgraçada ficar que nem aquelas que eu comia em casa. Ficou meia gozada mais comemos assim mesmo. O que fazer? O doce de abóbora chegou, o Ivo lascou uma colherada, o Fernando quase que mete o mãozão, eu entrei de sola e, num piscar de olhos, ficou ali em cima da mesa a vasilha, coitadinha, vaziinha... Etâ doce bão! Tudo acompanhado do queijão que a tia Ninita e o Tabé mandaram. O queijão parece um monumento aqui na cela. Mas de lasquinha em lasquinha ele já tá diminuindo. E os doces? Cada um mais pralém de bão que l’outro. Vê se a carta num tá com cheiro de linguiça. É que tô de mão toda linguiçada, às voltas com o molho do macarrão domingueiro.
Betto