2. CARTAS APRISIONADAS
3.0 Em busca da narrativa implícita 3.1 ‐ O castelo das cartas cruzadas
“Un coup de dés jamais n’abolira le hasard.”
(Stéphane Mallarmé, em Un Coup de dés)
O poeta Mallarmé nos lançou os dados: seria o mundo mesmo aleatório ou haveria nele uma ordem a ser decifrada, em um jogo de probabilidades baseado em uma lógica complexa, de múltiplos significados? Socorremo-‐nos de um trecho (apenas uma frase-‐guia) da tradução que Haroldo de Campos fez desses versos “tipográficos”, pequeno móbile feito de enigma e movimento pelo simbolista francês, no auge da modernidade, para iniciarmos pelo início:
Jamais, mesmo quando lançado em circunstâncias eternas do fundo de um naufrágio...
Após o jorro de imagens que experimentamos no capítulo anterior, em que soubemos isolar diversos significantes sobre nosso tema em questão, estamos mesmo quase naufragados. E se nos fosse possível o “êxito estelar”, para usar uma figura de Mallarmé, à leitura dessas Cartas da prisão, tomá-‐lo-‐íamos como o fluxo incessante de reflexões emitidas ao acaso calculado milimetricamente pelo lance de dados da história.
Assim como o poema de Mallarmé parece ter sido concebido para infinitas decifrações posteriores, temos em mãos um conjunto de cartas que apontam para um corte. Não evidentemente um corte no mesmo nível de decodificação poética existente do germe da ambiciosa renovação da poesia francesa que seu famoso jogo de dados tão musical e arquitetonicamente incitou. No entanto, vale dizer, em ambos os casos estamos diante de uma declaração trágica fragmentada sobre a impossibilidade de se atingir o estabelecido com a escritura. Isso que tanto inquietou nossos concretistas está
presente em ambos os desafios: demandar uma marcação sutil, situada no ponto médio entre a indeterminabilidade e a definição.
Trata-‐se da abertura e da mobilidade necessárias para que nelas se abrigue o gesto interpretativo do leitor. Por essa razão, optamos por dotar a leitura de uma permeabilidade capaz de, com sua capilaridade tentacular, atingir o desenho do que ansiamos, uma narrativa derivada do conjunto revisitado das cartas.
Essa sorte-‐azar de indefinições à solta ou de definições difíceis de serem capturadas levou-‐nos a O castelo dos destinos cruzados, de Italo Calvino. Ele nos mostra ali, de forma abrangente e generosa, o que chama de “multiplicidade potencial do narrável” na engenhosa construção que faz das histórias surgidas da disposição enigmática das cartas ciganas egípcias (1991, p. 13).
Começamos a espalhar as cartas sobre a mesa, descobertas, como para aprender a reconhecê-‐las e dar-‐lhes o devido valor nos jogos, ou o verdadeiro significado na leitura do destino. Contudo, não parecia que qualquer um de nós tivesse vontade de iniciar uma partida, e menos ainda de se por a interrogar o futuro, dado que os nossos futuros pareciam indefinidos, suspensos numa viagem que não havia terminado e nem estava para terminar.
As cartas foram postas uma a uma e nelas recolhidas todas as referências semiológicas para a operação de extrair-‐lhes o sentido ulterior: a história que decorreria naturalmente do cruzamento das pequenas narrativas aqui dispostas no plano do acaso de sua escritura. Mas eis que “A máquina de emaranhar paisagens”, para citar um poema de Herberto Helder (2006, p. 213), já não ergue narrativas, emperra, não funciona em modo automático. Ativemos então mais uma fala de Calvino (1991, p. 154):
E era essa operação que eu não conseguia realizar: queria partir de algumas histórias que a princípio as cartas me haviam imposto e às quais atribuíra certos significados, além de já haver escrito boa parte delas, mas não conseguia fazê-‐las encaixar num esquema unitário, e quanto mais estudava a história mais ela se tornava complicada, requerendo sempre um número crescente de cartas, que retirava das outras histórias às quais, no entanto, eu não queria renunciar. Assim passava dias inteiros a compor e a recompor o meu quebra-‐cabeça, imaginava novas regras do jogo, traçava centenas de esquemas, em quadrado, em losango, em estrela, mas sempre havia cartas essenciais que permaneciam fora e cartas supérfluas que ficavam no meio, e os esquemas se tornaram tão complicados (adquirindo às vezes até mesmo uma terceira dimensão, tornando-‐se cubos e poliedros) que eu próprio acabava me perdendo neles.
A passagem referida ilustra, à perfeição, um determinado momento da construção deste trabalho de transubstanciação epistolar em que, em meio à riqueza das relações erguidas no plano das figuras do Neutro, na análise das múltiplas visões aqui apresentadas, vimo-‐nos “tridimensionalizados” de sentidos, mas em vetores que, apesar de ocuparem muitos espaços de compreensão e traçarem eventualmente desenho de partes do corpo da escritura, ainda não possuíam seus feixes orientados por ou para um ponto em comum.
Isoladas em dezenove conjuntos coesos e bem agrupados, estávamos ainda à espera de um arranjo das peças e seus conjuntos que nos fizesse expor em voo semântico toda a sua força de representação.
Tomemos emprestadas das palavras de Everardo Rocha (2011, p. 14), em um conceito menos dicionarizado de mito (relato fantástico de tradição oral, geralmente protagonizado por seres que encarnam, sob forma simbólica, as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana) que vá ao encontro desse pressuposto:
Assim, da verdade que o mito não se propõe ter, ficam a eficácia e o valor social. Da origem que ele não pode possuir, fica a sua sempre presença, seus desconhecidos autores, sua improvável localização no tempo. Da interpretação que ele nos propõe como enigma, ficam as mais diversas tentativas do pensamento humano tanto de criá-‐lo quanto de analisá-‐lo.
Com efeito, o mito, tal como o conhecemos no senso comum ou em conceitos mais superficiais, de ser qualquer narrativa de caráter simbólico, pode efetivamente ajudar a reunir as peças de imensos quebra-‐cabeças colecionados em obras literárias ou mesmo qualquer conjunto de eventos em que se faça necessária uma revelação interpretativa.
Resistimos inicialmente ao uso do mito como ferramenta de interpretação por entendê-‐loem sua complexidade simbólica, sem “tradução literal”, para usar uma reflexão de Camus (2012, p.127), quando analisou Kafka:
De resto, nada é mais difícil de entender que uma obra simbólica. Um símbolo sempre ultrapassa aquele que o usa e o faz dizer na realidade mais do que tem consciência de expressar. Neste sentido, o meio mais seguro de captá-‐lo consiste em não provocá-‐lo, iniciar a obra sem ideias preconcebidas e não buscar suas correntes secretas.
Concluímos então que a abstração analítica proporcionada por um paralelo mitológico poderia, sim, de algum modo tornar-‐se importante forma de ordenação e compreensão dos significantes aqui levantados e esta, por seu turno, na ordem simbolicamente determinada, poderia, tal como uma chave, gerar a abertura da compreensão dos novos e importantes sentidos que procurávamos demonstrar. Outras ciências, como a psicanálise e a antropologia, levaram esse uso, digamos, seminal bem a fundo e a sério na interpretação dos mitos. O que nos impediria de buscar também, em seus labirintos semiológicos, um caminho de investigação para o remate da crítica literária?
Analisando o mito como sistema semiológico, Barthes (2003, pp. 201-‐202) cita Saussure como o postulador dessa “vasta ciência dos signos”, sob o nome de semiologia. No estudo, ele aponta para os perigos de se considerarem as formas objetos ambíguos, metade formas, metade substâncias, dotar uma substância de forma, etc., recordando que “toda semiologia postula uma relação entre dois termos, um significante e um significado”, não pela igualdade, mas pela equivalência. Um interessante esquema tridimensional (dimensões do significante, do significado e do signo) Barthes encontrou no mito, mas alerta que existem dois sistemas semiológicos operando ali, a linguagem-‐ objeto e a metalinguagem:
Mas o mito é um sistema particular, visto que ele se constrói a partir de uma cadeia semiológica que já existe antes dele: é um sistema semiológico segundo. O que é signo (isto é, a totalidade associativa de um conceito e de uma imagem) no primeiro sistema transforma-‐se num simples significante no segundo.
Apesar dessas interdições bem colocadas, resolvemos aceitar o desafio do mito, retirando dele a miríade de significados à espera dos significantes, como uma resposta viva, ativa e criativa aos desafios filosóficos dos signos que nos surgirão a todo tempo, histórica e literariamente falando.
A demanda de ressignificação pelo desafio do mito estava criada, pois, como disse Camus (2012, p. 122), “os mitos são feitos para que a imaginação os anime”.