3.3 ‐ A escritura diante do absurdo
MONÓLOGO INTERIOR DIRETO 3
Réveillon carcerário. Não sei se é menos um ano de prisão se é mais um de espera. Com esse calor, tenho a
impressão de estar dentro de uma panela de pressão. O suor escorre me em bicas pelo corpo. O banho engana, mas não refresca. Nem dá vontade de comer. O carcereiro quer saber como suportamos esse abafamento, está com calor pela gente. Deitar é impossível. Para quê dormir se posso me afogar no suor? O fogão na hora de esquentar a comida piora a coisa. Esses mosquitos por acaso deram abrigo a algum subversivo? Sumam daqui! E essa formiga lava-‐pés? Entraram para a igreja, ajoelharam e não rezaram? Como ninguém aqui é tatu, o jeito é comer formiga escaldada mesmo. Chegou o ravióli, coberto de formigas. Molho formigoni, delicioso. Tito seguiu para o Rio. Talvez, a essa hora, já tenha deixado o país. Agora somos apenas três: Ivo, Fernando e eu. Sem notícia do processo após 14 meses de reclusão. Eu existo? Como acostumar com não ser? Momentos de alívio, momentos de tensão. Do presídio, três incluídos na lista do sequestro não aceitaram viajar. Dois foram à TV declararem-‐se “arrependidos”, “este é o melhor governo que já tivemos”, “preferimos ficar presos à sair do Brasil’. Melhor comer formiga. A situação financeira do convento vai de mal a pior. Os frades tentam esconder de mim que os dominicanos quebraram. Eu tenho como ajudar. Quero trabalhar, estou preso, não doente. Sou um encarcerado, não morri ainda. Ainda. Ainda.
CARTA 10 -‐ Querida Valéria e Aída,
Espero que esta carta chegue às suas mãos. A última, a censura reteve porque escrevi que enquanto o
motivo pelo qual estou preso continuar existindo aí fora, não importa que eu esteja aqui. Referia-‐me à ânsia
de liberdade que envolve a nação. Eles temem as consequências dessa ânsia, fazer o quê. Chove; procuramos aproveitar as goteiras do teto para nos refrescar, pois o calor é saárico. Dia e noite, os presos gritam ”água, água’!
Mas a nossa voz ressoa em vão pelos lúgubres corredores dessa prisão. Vê-‐se o quanto é fácil ao homem deixar de ser racional para ser simplesmente animal. De vez em quando, consegue-‐se uma vasilha de água barrenta, tirada de não sei de onde, que fervemos para beber. Em cada gole, desmoronam-‐se os nossos hábitos burgueses.
Temos visto aqui casos de profunda depressão, até mesmo loucura. Durante a madrugada o presídio é o retrato do inferno. Gritos, batuques, cantos desesperados ecoam pelo pavilhão como explosões de corações amargurados. Esta é a manifestação habitual dos presos comuns, com quem estamos misturados. Os políticos têm mais resistência. E uma enorme solidariedade. Ninguém está só entre nós. O importante é superar antigos hábitos. Logo, já não estranha viver numa cela que tem fossa sanitária dentro – ou numa fossa sanitária que tem camas ao lado. Há uma única torneira.
Aos 26 anos, sinto volatilizarem-‐se todos os meus sonhos e ilusões da adolescência. E descubro-‐me jovem e realista diante do futuro. A fé nos descortina o imprevisível.
Como imprevisível é tudo o que nos realiza – o amor, por exemplo. Ou tudo isso que leva uma pessoa a possuir sobre si mesma: a pobreza, a prisão, a agonia, a luta, a esperança em um futuro que, como uma rosa, brota de mãos que agora se agarram a um caule cheio de espinhos. A crueldade da prisão leva-‐nos a desejar ser bons, sem cumplicidade com o mal. Despe-‐nos da velha roupagem social, arrebenta o invólucro colorido que outrora nos encobria a consciência.
Um abraço cheio de amizade, Betto
SOLILÓQUIO 7
O tempo de cárcere é apenas a travessia do deserto, rumo a libertação. Vale como um segundo noviciado, onde descubro ainda mais o mistério encerrado em Jesus de Nazaré. Hoje sei o quanto é falsa qualquer ideia de Deus que não esteja centrada no jovem galileu. Nele me encontro e defino. Mas reconheço o quanto estamos mal preparados para entender o apelo de Deus. Não que seja difícil, é simples demais. Enfim conseguimos celebrar uma missa. O padre Heitor Turrini é um homem extraordinário. Saiu do leprosário em que trabalha no Acre. Sensibilidade aguda a desse italiano de incansável valor apostólico. Uma missa simples, como as coisas de Deus e a vida aqui. As catacumbas. Padre Heitor chorou, encontrou aqui algo semelhante ao que viu no Oriente. Como é significativa a missa que tem, por cálice, um copo; por altar, um banco de tábua; por templo, uma cela apertada; por fiéis, prisioneiros! Fomos nós que, no decorrer dos séculos, complicamos as coisas. Fizemos do familiar, cerimonial; do coloquial, protocolo. Agora estamos naquela fase em que não sabemos se andamos de calção para acabar com o pudor alheio, ou se primeiro acabamos com o pudor alheio para, depois, andar de calção... Essa luta pela existência é, ao mesmo tempo, árdua e divertida. Sinto-‐me como quem viaja num veleiro, ao sopro dos ventos da história, balançando sobre as ondas do tempo. Não importa se, de vez em quando, sou atirado às águas. Sei nadar. O amor tem seus estágios. Primeiro nos libertamos no próprio ato de amar, na busca da pessoa a quem se ama. Depois, amamos para que os outros sejam livres. Enfim, aceitamos deixar de ser livres por amor a liberdade alheia. O mundo do cárcere me faz ver as entranhas da realidade. Nesses 16 meses de prisão, ainda não passei pela crise do desânimo. Em nenhum momento considerei o passado em vão e o futuro perdido. Difícil é sair dos labirintos em que os condicionamentos tradicionais nos colocaram. Terei força suficiente para resistir às tentações que Jesus foi submetido no deserto? Sofremos fascinação pelo poder, aspiramos a segurança em demasia, achamos que não é nada uma genuflexão perante quem tem dinheiro.
CARTA 11 -‐ Querida Liana,
Em Jesus, Deus se faz homem com os homens, vive na companhia de rudes pescadores, é amigo de coxos, hansenianos, estropiados e prostitutas, dorme a beira das estradas e dos lagos, discute com os fariseus que se sentem donos da religião, expulsa do templo os que fazem da religião comércio, é perseguido como um bandido, preso como um marginal, torturado como um desgraçado, e morto na cruz. Seu corpo devia ter sido atirado a vala comum, não fosse a boa vontade de José de Arimatéia.
Este Jesus ressuscitou. Porque tenho certeza da ressurreição de Cristo? Não é porque está escrito. É porque tenho uma experiência, íntima, pessoal, intraduzível, de relacionamento com ele. Impossível duvidar de algo que se experimenta no coração. É como a experiência do amor. Não é possível defini-‐la, medi-‐la, não se pode apalpá-‐la, vê-‐la, mas há a certeza do amor. É algo que mexe com todo nosso ser e a nossa vida. Mana, continue rezando pela gente. Aqui fazemos o mesmo por você. Mantenha-‐se firme na fé. Um beijo com muita amizade,
Betto.
SOLILÓQUIO 8
A lua. Coisa que não me acontecia há tempos. A lua se reduziu a uma notícia de jornal. Da cela é impossível enxergá-‐la. Tenho plena consciência de ter agido sem buscar nenhum proveito pessoal. Eu sei o quanto tenho sofrido nessa longa e indefinida espera, por causa de um gesto incapaz de provocar em mim o menor remorso ou arrependimento. “Não faça isto!”, “O que tem aí na mão!”, “Vamos rápido!”. Isso acontece aqui o tempo todo e não é fácil suportar esse tratamento. Com o tempo, aprendi que quem vive
na selva não pode ter medo de cobra. Eu preparo as refeições. Aqui o leite é leite hoje, coalhada amanhã, queijo depois de amanhã, enrolo num pano e deixo desidratar, e manteiga na semana que vem. Enquanto isso, um preso aqui em frente usa a pouca luz da sua cela para mergulhar em suas tintas, pintando um quadro.
CARTA 12 -‐ Querida Juliana,
No dia em que você nasceu, houve uma reunião no céu. O senhor convocou os anjos para escolher aquele que deveria acompanhá-‐la ao longo da vida. Os anjos compareceram em grande número. O senhor anunciou que uma menina nascera cercada de amor e que, a ela, seriam concedidos muitos dons – restava destacar um anjo capaz de cultivar, com carinho, toda beleza e bondade depositadas no coração da menina. Ora, não faltaram candidatos. Como muitos se apresentaram, o Senhor decidiu ouvir-‐lhes as razões antes de indicar a quem seria entregue a vida da menina.
-‐ Já não suporto mais – disse o Anjo da Paz – a tarefa que me coube. Quanto mais dissemino a paz, mais os homens desencadeiam guerras. Antigamente era mais fácil trabalhar. A guerra era algo extraordinário, todos a repudiavam como uma peste. Hoje, parece já não tolerarem a paz. Há guerras locais, regionais, internacionais. Guerras curtas e longas, aéreas e terrestres. Criou-‐se uma indústria especialmente para o mercado da guerra. Há homens cuja profissão é fabricar armas que matam em maior número e em menor tempo. Estou cansado, Senhor, e peço demissão. Quero levar paz à Juliana. O Senhor anotou as palavras do anjo da Paz; considerou convincentes as suas razões. Antes, porém, de decidir, concedeu a palavra a um outro candidato inscrito, o Anjo da Liberdade:
-‐ Minha tarefa também é cada vez mais árdua – disse ele. – No orçamento das nações estão previstas a ampliação das forças policiais e a construção de novas prisões. A terra foi retalhada em propriedade de uns poucos e dividida por cercas de arame farpado. A aspiração de liberdade tornou-‐se ameaça aos poderosos. Por isso também peço demissão, até que os próprios homens possam encontrar o caminho da liberdade. Quero levar liberdade à Juliana. O Senhor consultou suas anotações. Ia dar por encerrada a sessão, quando um anjo muito popular levantou o braço e pediu a palavra. Era o Anjo do amor: -‐ Pela longa experiência que trago através dos séculos, posso assegurar ser impossível haver paz e liberdade se não houver amor. Os problemas do mundo só encontrarão solução ao se unirem paz, liberdade e amor. É preciso que trabalhemos juntos. Ofereço-‐me também para levar amor à Juliana.
No dia em que você nasceu, Juliana, os três anjos, como os reis magos, apresentaram-‐se na sua casa. No céu , o Senhor acendeu mais uma estrela.
Um beijo na testa, Betto.