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5 A APLICAÇÃO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA AO CRIME DE

5.2 ANÁLISE PRÁTICA: O PROTAGONISMO DA JURISPRUDÊNCIA NA

5.2.1 Caso do Banco Central em Fortaleza

A sentença proferida no processo crime n. 2005.81.00.014586-0 é comumente referida pela doutrina como sendo o primeiro caso emblemático de aplicação da teoria da cegueira deliberada no Brasil. O famoso delito perpetrado no mês de agosto de 2005 em face do Banco Central, na sede localizada na cidade de Fortaleza, Ceará, é ainda apontado como o maior furto realizado no país453, resultando na subtração de R$ 164.755.150,00, em notas de cinquenta reais não sequenciais.

O crime foi meticulosamente preparado por meses, envolvendo uma elevada quantidade de pessoas e métodos sofisticados de atuação, tais como o aluguel de imóvel próximo ao banco, a criação de uma empresa de fachada e a escavação de um túnel com quase 80 (oitenta) metros de comprimento que levava até a caixa-forte do estabelecimento. Com o produto do delito, integrantes da quadrilha adquiriram 11 (onze) veículos de uma revendedora de automóveis, pagando, em espécie, o valor de R$ 980.000,00. Ainda, o montante de R$ 200.000,00 foi deixado na empresa, para a futura aquisição de outros carros.

Em primeiro grau, a sentença proferida pela 11ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Fortaleza, publicada em 26 de junho de 2007454, discutiu a aplicação da cegueira deliberada em relação à imputação por lavagem de capitais dirigida aos sócios da empresa de venda de veículos e ao proprietário da transportadora contratada para realizar o deslocamento dos carros, denunciados com base no artigo 1º, V e VII, §1º, I, e §2º, I e II, da Lei n. 9.613/1998, conforme previsão anterior à reforma realizada em 2012.

Na parte de interesse ao presente estudo, o Juiz Federal Danilo Fontenelle Sampaio cita a doutrina de Sérgio Moro no intuito de fixar entendimento de que o tipo básico de lavagem, previsto no caput do artigo 1º da lei, aceita o dolo eventual (ponto 205 da sentença), argumentando que o silêncio da lei a esse respeito é eloquente, ou seja, dá espaço para a incidência da modalidade de imputação subjetiva em questão (ponto 206) e endossando o argumento com a exposição de motivos da lei.

453 A imprensa, de forma geral, convencionou chamar o caso de “Assalto ao Banco Central”, nada obstante,

juridicamente, tenha se tratado de um furto, uma vez que não houve adoção de violência ou de grave ameaça à pessoa durante seu cometimento. Veja-se, por exemplo, matéria disponibilizada em: <https://abr.ai/2zbfqMV>. Acesso em 4 jul. 2018.

454 A íntegra da sentença está disponível no site da Justiça Federal no Ceará, podendo ser consultada em:

Em seguida, o magistrado equipara o entendimento sobre a willful blindness do sistema estadunidense às disposições jurisprudenciais e doutrinárias brasileiras sobre a cegueira deliberada, sustentando que, nos casos de lavagem de dinheiro, a frequente diferenciação entre o agente que comete o crime e o agente que reintroduz o dinheiro no mercado financeiro contribui para que esse segundo indivíduo deliberadamente não queira levantar maiores informações sobre a procedência dos valores, a fim de evitar futuras acusações.

De acordo com Moro455, citado na decisão, a willful blindness doctrine não se confunde com negligência e tem sido aceita pelos tribunais estadunidenses quando há prova de que o agente tinha consciência da elevada probabilidade de que os bens, direitos ou valores envolvidos eram provenientes de crime e, entretanto, agiu de modo indiferente a esse conhecimento, mantendo-se voluntariamente em estado de ignorância, quando havia possibilidade de acessar os fatos. Tal cenário se revelaria suficiente à reprovação jurídica e moral do fato, recaindo na responsabilidade penal pelo crime de mascaramento.

Na análise acerca da participação do sócio da J.E. Transportes de Veículos, a sentença recorda as lições acerca do dolo eventual e da cegueira deliberada, porém, de forma expressa, afirma que o réu certamente sabia que a origem do numerário utilizado para pagamento dos veículos era o furto cometido ao Banco Central, argumentando que, por ter assumido a atividade de escolher os automóveis e acompanhado pessoalmente seu transporte até o destino456, o autor só poderia ser alguém de extrema confiança dos demais integrantes da organização criminosa.

Por sua vez, em relação aos dois donos da Brilhe Car, estabelecimento em que foram comprados os automóveis, a decisão consignou que os acusados não possuíam a percepção de que o numerário provinha especificamente do delito contra o Banco Central, “mas certamente sabiam ser de origem ilícita” (ponto 310). Novamente, foram suscitadas as explicações acerca do dolo eventual e da cegueira deliberada, embora sem qualquer aprofundamento, pontuando- se a conduta dos citados empresários de “não se absterem de tal negociação suspeita, nem comunicarem às autoridades responsáveis” (ponto 231).

Cumpre frisar que a sentença não cuida de correlacionar a citação doutrinária realizada sobre a teoria da cegueira deliberada com o caso concreto ali apreciado, transcrevendo longa passagem do capítulo de livro escrito por Moro sem, entretanto, indicar de que modo os elementos apresentados pelo autor para a configuração da doutrina estariam presentes na

455 MORO, 2007, p. 99-100.

456 A sentença também considerou que o transporte dos veículos, através de caminhão cegonha, aconteceu no dia

em que foi descoberto o furto, de modo que o proprietário que acompanhou diretamente o deslocamento já tinha ciência do caso, pela repercussão da mídia à época (ponto 241 da decisão). O dono da transportadora era, ainda, irmão de um dos autores apontados como “engenheiros do túnel”.

situação dos autos457. Ademais, a despeito de lançar mão da cegueira deliberada, a sentença parece insinuar, em alguns pontos, que os proprietários da Brilhe Car teriam praticado lavagem de capitais com dolo direto, por considerar inadmissível desconhecer a origem ilícita do dinheiro envolvido na negociação.

Em nível de apelação, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região afastou a condenação em face dos donos da revendedora da veículos, alegando que a transposição da doutrina da cegueira deliberada, nos moldes da sentença recorrida, apresenta grande proximidade com a responsabilidade penal objetiva, rechaçada no ordenamento brasileiro458. Isso porque o pagamento de vultoso numerário em espécie, em que pese suspeito, não autoriza presumir que o agente que recebe tenha plena consciência a respeito da origem ilícita dos valores, notadamente quando, na situação em análise, o delito apenas foi descoberto dois dias após a venda dos automóveis.

O relator, Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira, esclareceu a possibilidade de invocar a cegueira deliberada como fundamento para a imputação subjetiva do delito de lavagem de capitais, equivalente ao dolo eventual da legislação pátria. A questão residiria, contudo, na impossibilidade de aceitar o dolo eventual (e, por consequência, o instituto da ignorância voluntária) no que tange aos tipos penais imputados aos réus, uma vez que a condenação se deu pelos tipos penais subsidiários dos §§ 1º e 2º do artigo 1º da Lei n. 9.613/1998, que somente admitem dolo direto. Os recorrentes foram absolvidos, uma vez que não haveria prova segura de que soubessem ou mesmo desconfiassem da procedência criminosa do dinheiro.459

A despeito da absolvição, então, note-se que o acórdão prolatado pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região não afastou a compatibilidade da cegueira deliberada com o ordenamento brasileiro, admitindo sua equivalência com o dolo eventual para fins de imputação subjetiva em relação ao crime de reciclagem de ativos. Nada obstante, é válido frisar que o acórdão levou em consideração, também, o fato de que a empresa que explora a venda de veículos usados não estaria sujeita às obrigações legais contidas nos artigos 10 e 11 da Lei n. 9.613/1998, inexistindo, portanto, qualquer ato normativo que obrigasse seus administradores a comunicar a qualquer órgão público a existência de venda em espécie.

Nesse particular, o julgado destacou que, ainda que a empresa estivesse obrigada a adotar

457 No mesmo sentido, LUCCHESI, 2017, p. 47, acesso em: 4 jul. 2018.

458 O acórdão em questão está disponível em: <https://bit.ly/2KTk57C>. Acesso em: 4 jul. 2018. A citação à

responsabilidade objetiva consta, inclusive, da ementa divulgada, especificamente no tópico 2.4.

providências administrativas tendentes a evitar a lavagem de dinheiro, a eventual omissão na adoção desses procedimentos implicaria unicamente a aplicação de sanções também administrativas, “e não a imposição de pena criminal por participação na atividade ilícita de terceiros, exceto quando comprovado que os seus dirigentes estivessem, mediante atuação dolosa, envolvidos também no processo de lavagem (parágrafo 2º, incisos I e II).”460

Dado o pioneirismo do caso, passamos a examinar seus desdobramentos em decisões posteriores que abordaram a mesma temática.