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2 A SOCIEDADE DE RISCO E O DELITO DE LAVAGEM DE CAPITAIS

2.3 O SURGIMENTO DO DELITO DE LAVAGEM DE CAPITAIS

2.3.1 Políticas de combate à lavagem de capitais

Consoante indicado, a luta contra a reciclagem de ativos surgiu como um meio aparentemente mais eficaz de combater determinadas atividades delitivas e, para tal efeito, os países, seguindo as diretrizes e as recomendações fixadas por distintos organismos internacionais, dedicaram-se a penalizar a referida conduta como um crime autônomo, independente da prática infracional que tenha gerado os capitais objetos da lavagem.

O mascaramento dos benefícios econômicos procedentes de uma infração penal passa a constituir, portanto, uma atividade ilícita a respeito da qual o Estado toma posição em sua luta e repressão, estabelecendo uma série de medidas preventivas que tendem a dificultar que o

102 ANDRADE, 2001, p. 801.

103 PASSOS, Thais Bandeira Oliveira. A neosseletividade do sistema penal: a lei de lavagem de capitais como uma

demonstração da vulnerabilidade do criminoso de colarinho branco. Uma aproximação entre e dogmática e os aspectos criminológicos. Tese (Tese em Direito Público) – Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2015, p. 189. Disponível em: <https://bit.ly/2lQLsnH>. Acesso em: 6 mar. 2018.

indivíduo, seja ou não o autor do delito precedente, possa usufruir dos produtos da prática criminosa.

De fato, se o processo de globalização econômica, associado ao progresso da informática e da comunicação, assegurou maior celeridade e segurança nas transações internacionais, facilitando a circulação de pessoas e valores por todo o globo, de igual forma permitiu o aperfeiçoamento das modalidades e a expansão da lavagem de dinheiro. Na observação de Vladimir Aras104,

O quadro logístico montado para atender a legítimos negócios internacionais passou a ser utilizado por organizações criminosas de todo o mundo. E as vantagens econômicas advindas desses negócios ilícitos passaram a transitar pela economia global, contando com as mesmas facilidades dos capitais legítimos.

Trata-se de um fenômeno de alcance transnacional, uma vez que tanto os delitos de que provêm os bens a serem lavados como as atividades voltadas à reciclagem geralmente não se circunscrevem às fronteiras de um único país. Essa constatação deu lugar à adoção de iniciativas de nível internacional com o objetivo de impulsionar a harmonização das diversas legislações, assim como a coordenação das atividades internacionais de luta contra a lavagem, com a aprovação de medidas legislativas por parte dos Estados afetados.105

Sem pretender esgotar a temática, é relevante frisar que as políticas de combate à lavagem são construídas sobre a cooperação entre o setor público e o setor privado, esse último representado pelas pessoas físicas e jurídicas que, atuando em atividades comumente utilizadas no processo de mascaramento, são convocadas a contribuir com a prevenção ao crime. Explicando a referida estratégia, diz a doutrina que ela se daria face ao “reconhecimento da incapacidade do Poder Público para prevenir ou investigar tal delito sem a colaboração das instituições privadas que atuam nos setores mais sensíveis à prática do crime.”106

Para Marco Antonio de Barros107, diversos são os motivos que conduziram à criação desse modelo de parceria. Em primeiro lugar, destaca-se o caráter transnacional da lavagem de ativos e a sua característica de, normalmente, não possuir uma vítima identificável – nem, consequentemente, ensejar a formalização de queixas ou reclamações –, situações que explicam

104 ARAS, Vladimir. Sistema nacional de combate à lavagem de dinheiro e de recuperação de ativos. Jus

Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1.411, 13 maio 2007. Disponível em: <https://goo.gl/4kM5Ai>. Acesso em: 14 mar. 2018.

105 CABANA, Patricia Faraldo. Los autores del delito de blanqueo de bienes en el Código Penal Español de 1995.

Especial alusión a los proveedores de bienes y/o servicios: el caso de los Abogados y Asesores Fiscales. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Madrid, vol. LIX, p. 136, 2006.

106 BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais

penais: comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 32-33.

107 BARROS, Marco Antonio de. Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas: com comentários, artigo

a grande dificuldade percebida na atividade investigativa do crime. Ademais, para o autor, três objetivos principais justificaram o surgimento desse vínculo obrigacional para o setor privado: i) evitar que o sistema financeiro e os setores produtivos da economia sejam utilizados no processo de reciclagem; ii) chamar a atenção da sociedade sobre a impossibilidade de que a fiscalização das operações ilegais fique inteiramente a cargo do Estado; e iii) colher subsídios que possam garantir o êxito da persecução penal na fase da apuração judicial do delito.108

Diante dessa realidade, a Lei n. 9.613/1998, além de criar um órgão especializado na prevenção e combate ao delito de lavagem de capitais109, busca fixar procedimentos que dificultem o encobrimento da origem infracional dos bens, direitos e valores e permitam alcançar o pretendido isolamento econômico do agente criminoso. Na esteira das normativas internacionais, o legislador brasileiro incorporou as regras de cooperação privada na luta contra o delito de reciclagem, impondo a determinados sujeitos que atuam em setores considerados sensíveis ao crime deveres especiais de vigilância sobre atos que possam constituir o delito.

As instituições e as pessoas chamadas a cooperar no combate à lavagem de dinheiro estão elencadas no artigo 9º da legislação brasileira, cuja redação sofreu diversas alterações após a entrada em vigor da Lei n. 12.683/2012. As pessoas físicas ou jurídicas que desenvolvam, em caráter permanente ou eventual, de forma principal ou acessória, cumulativamente ou não, qualquer das atividades mencionadas no dispositivo têm a obrigação de desenvolver algumas tarefas no propósito de impedir a utilização desses setores representativos da economia no processo de mascaramento.

Se, inicialmente, o rol de sujeitos obrigados se centralizou exclusivamente no sistema financeiro, certo é que a sofisticação das modalidades e técnicas de reciclagem de ativos evidenciou que novas áreas passaram a ser utilizadas no processo de ocultação, dissimulação e integração do capital ilícito, demandando a consequente ampliação do texto legal.

Trata-se de um reflexo do movimento de uniformização da legislação penal, impulsionado pelo fenômeno da globalização, uma vez que a diversidade de diplomas legais e métodos de combate e prevenção ao crime de lavagem de capitais se mostrou ineficaz para enfrentar um fenômeno criminal que se articula transnacionalmente, exigindo maior cooperação e uniformidade normativa a buscar uma tutela pretensamente efetiva.

108 BARROS, 2012, p. 309.

109 O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), instituído pelo artigo 14 da lei brasileira de

lavagem e órgão integrante do Ministério da Fazenda, possui a incumbência legal de coordenar e propor mecanismos de cooperação e de troca de informações que viabilizem ações rápidas e eficientes no combate à lavagem de dinheiro, além de disciplinar e aplicar penas administrativas e receber, examinar e identificar ocorrências suspeitas.

A doutrina adverte, contudo, para o possível exagero na imposição a particulares de atribuições que cabem às autoridades públicas, sobretudo diante da constante ampliação do rol de destinatários das obrigações tendentes a prevenir a lavagem de dinheiro. Nesse sentido, Nuno Brandão110 defende a busca por um equilibrado compromisso nesse propósito de defesa social, de forma a não ofender o núcleo essencial de outros valores e princípios fundamentais do Estado democrático de direito.

Para o autor, embora seja papel do Estado combater eficazmente o crime e aparelhar suas instituições, é legítimo que se imponha a certas pessoas e organizações que estejam em posição privilegiada uma função de colaboração nessa tarefa, desde que tal comprometimento não seja levado a níveis extremados111. O problema não estaria no chamamento de particulares para atuar como uma espécie de longa manus dos órgãos policiais do Poder Público, mas, sim, na extensão e intensidade desse auxílio, que não deverá sobrecarregá-los nem eximir o Estado de atribuições que lhe são próprias.

De outro lado, é importante reiterar que todo o arcabouço normativo de combate ao delito em estudo se volta ao objetivo primordial de impedir a utilização do produto econômico da infração penal antecedente, convertendo o direito penal em instrumento de recuperação de ativos ilícitos, numa demonstração do fenômeno de administrativização do ramo. Às pessoas físicas e jurídicas que deixem de cumprir com os deveres impostos pela Lei n. 9.613/1998 serão aplicadas as sanções previstas no artigo 12 do mesmo diploma, situação que, aliada à ampliação do rol de sujeitos obrigados, contribuiu para o recebimento de 6.806.769 comunicações de operações suspeitas, apenas entre os anos 2013 e 2017.112