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2 A SOCIEDADE DE RISCO E O DELITO DE LAVAGEM DE CAPITAIS

2.3 O SURGIMENTO DO DELITO DE LAVAGEM DE CAPITAIS

2.3.2 O problema do bem jurídico tutelado

Cediço que o exame do bem jurídico resguardado pela norma penal revela-se como um limite ao poder de punir do Estado, atendendo aos ditames do princípio da ofensividade, segundo o qual o direito penal apenas estaria autorizado a intervir com vistas a proteger aqueles valores tidos como mais relevantes dentro de determinada sociedade. Ainda que não seja tarefa fácil declinar com exatidão quais valores e bens são dotados de tal importância merecedora da tutela penal, uma vez que constantemente mutáveis, a fixação de parâmetros para essa proteção

110 BRANDÃO, 2002, p. 33. 111 Ibid., p. 32-33.

112 A título comparativo, o número total de comunicações recebidas pelo órgão nos 14 anos anteriores, entre 1999

é imprescindível porque funciona como um critério negativo, distinguindo os comportamentos de relevância jurídico-penal dos problemas de caráter eminentemente moral ou político.

Dentro desse contexto, Prittwitz113 chama atenção para o fato de que, no direito penal do risco, “um comportamento não é penalmente tipificado porque é considerado socialmente inadequado, mas a fim de que seja visto como socialmente inadequado”. Paulo Silva Fernandes114, em sentido semelhante, destaca que, em sede de direito penal econômico, o bem jurídico é de natureza “artificial” ou construída pelo devir histórico-social, não possuindo, então, o substrato onto-antropológico sedimentado com que contam os bens jurídicos clássicos, como a vida ou a integridade física.

De acordo com o autor, a eleição dos bens jurídicos na seara penal-econômica ocorre, muitas vezes, posteriormente à própria incriminação da conduta, de modo que

Assim, o resultado será o aparecimento de, a latere dos delitos clássicos, muitos outros que muito pouco em comum têm com aqueles, seja a nível de sedimentação histórica e social, seja quanto à direção do âmbito de proteção que tomam, o que se torna particularmente impressivo do domínio dos (novos) bens jurídicos do Direito Penal Econômico, donde se pode retirar, também, o seu caráter de bens jurídicos mutáveis e normativamente orientados para o prosseguimento de um determinado objetivo político-econômico, decantável em cada contexto histórico.115

No que tange ao crime de lavagem de capitais, a discussão em derredor do bem jurídico protegido é calorosa. Considerando que os dois primeiros valores constantemente citados como passíveis de proteção por meio da legislação que tipifica o delito de reciclagem - a saber, a saúde pública e o mesmo bem jurídico ofendido pelo crime antecedente116 - estão intimamente relacionados ao momento de criação dessa figura típica, ainda unicamente atrelada aos valores ilicitamente obtidos através do tráfico de substâncias entorpecentes, cumpre-nos adentrar na análise dos bens jurídicos mais regularmente defendidos pela doutrina atual como dignos de tutela penal através da Lei n. 9.613/1998: a administração da justiça e a ordem econômica.

Roberto Podval117 esclarece que o legislador, ao incriminar a lavagem de capitais, busca dificultar a proliferação dos delitos antecedentes, em razão dos malefícios reais que esses trazem para a ordem social. Assim, diz que a figura típica prevista na Lei n. 9.613/1998 seria

113 PRITTWITZ, 2004, p. 36. 114 FERNANDES, 2001, p. 84.

115 Ibid., p. 84-85, destaques no original.

116 Cf. FÖPPEL, Gamil; LUZ, Ilana Martins. Comentários críticos à Lei brasileira de lavagem de capitais. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 14 e ss.; BADARÓ; BOTTINI, 2012, p. 49 e ss.; PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 72 e ss.; CASTELLAR, João Carlos. Lavagem de dinheiro: a questão do bem jurídico. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 153 e ss.

117 PODVAL, Roberto. O bem jurídico do delito de lavagem de dinheiro. In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René

Ariel (org.). Direito penal da administração pública (Coleção doutrinas essenciais: direito penal econômico e da empresa; v. 4). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 1035.

uma espécie de favorecimento real, vez que concebida para proteger a administração da justiça frente à impossibilidade de punir os responsáveis pelos crimes antecedentes em razão do auxílio prestado aos delinquentes.118

A vertente em questão, propagada por muitos autores119, contudo, não se revela imune a críticas, consoante demonstra o trecho a seguir destacado:

[...] definir a administração da Justiça como bem tutelado é dizer que aquele que praticou o crime precedente tem o dever de acusar-se. [...] E, em sociedade alguma, parece razoável, longe de aceitável, que se exija a autoacusação por parte do réu. Ao contrário, é facultado a este, inclusive, o direito ao silêncio, bem como à não auto- incriminação. Logo, não parece sustentar-se a administração da Justiça como o valor digno de proteção.120

Além da possível infringência à garantia da não autoincriminação, há quem mencione que o conceito de administração da justiça, sendo carecedor de definição mais exata, permite que sejam abrangidas sob sua tutela uma infinidade de condutas, muitas das quais sequer dotadas de ofensividade que justifique a intervenção penal121. Outrossim, Moraes Pitombo122 questiona a adoção desse posicionamento teórico face à dificuldade de comprovação do dolo direto do agente em afetar o funcionamento da justiça, especialmente nas hipóteses de lavagem de dinheiro impulsionadas pelo lucro.

Para muitos autores123, então, o primordial intuito da Lei n. 9.613/1998 seria evitar o ingresso de capitais lavados na economia formal, situação que, no mais das vezes, conduziria a um desequilíbrio no mercado, favorecendo os agentes envolvidos com o crime em detrimento daqueles que atuam dentro da legalidade, além de colocar em risco a estrutura e funcionamento da ordem econômica. A preocupação maior da normativa dirigida ao combate do delito, portanto, seria garantir a higidez da economia, de modo a impedir a circulação de ativos ilícitos e a consumação de negócios jurídicos ilegítimos.

Nesse sentido, a título ilustrativo, a lição de Nuno Brandão124, para quem, em termos macroeconômicos, o fluxo de grandes somas de dinheiro sujo na economia provoca distorções no sistema financeiro, dando sinais errados aos mercados e podendo afetar seriamente a

118 PODVAL, 2011, p. 1037.

119 Defendendo essa postura é possível citar, além de Podval: MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro

(lavagem de ativos provenientes de crime): anotações às disposições criminais da Lei n. 9.613/98. 1. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, p. 57; BADARÓ; BOTTINI, 2012, p. 57; DE GRANDIS, Rodrigo de. O exercício da advocacia e o crime de “lavagem” de dinheiro. In: DE CARLI, Carla Veríssimo (org.). Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2011, p. 121.

120 FÖPPEL; LUZ, 2011, p. 18-19. 121 Ibid., p. 21.

122 PITOMBO, 2003, p. 76.

123 Dentre outros: BARROS, 2012, p. 44; FÖPPEL; LUZ, op. cit., p. 22.

124 BRANDÃO, 2002, p. 21. Ainda sobre os efeitos macroeconômicos da lavagem de dinheiro, vide QUIRK, Peter

J. Money laundering: muddying the macroeconomy. Finance & Development, ano 1, vol. 34, mar. 1997. Disponível em: <https://goo.gl/GBTfHq>. Acesso em: 10 mar. 2018.

estabilidade das vulneráveis economias das nações subdesenvolvidas, comumente eleitas para servirem de pontos de passagem ou de destino das operações de reciclagem em razão da expectativa de menor probabilidade de detecção da origem criminosa dos ativos. De igual modo, o conhecimento de que determinado mercado de valores é utilizado como plataforma no processo de lavagem de dinheiro inevitavelmente macula a sua credibilidade e afasta progressivamente os investidores.

Noutra perspectiva, o autor pontua que o impacto microeconômico da prática delitiva em apreço poderia ser ilustrado pela concorrência desleal verificada entre as empresas utilizadas no processo de mascaramento e os empreendimentos legítimos já instalados, que não contam com o aporte de dinheiro ilícito. Esse financiamento ilegal permite que as empresas que lavam dinheiro pratiquem preços mais baixos e políticas comerciais que a concorrência não pode acompanhar, passando consequentemente a enfrentar condições mais difíceis de manutenção no mercado.125

Para alguns autores, a tese se apresentaria em consonância com a ampliação do rol dos crimes antecedentes operada pela Lei n. 12.683/2012, além de seguir a linha que parece ser adotada por documentos de cunho internacional126. Sobre esse tópico, esclarecem Badaró e Bottini127 que, adotando-se a ideia de ordem econômica como bem jurídico afetado pelo crime de lavagem, não haveria razão para estabelecer um elenco fechado de delitos precedentes, posto que “O prejuízo ao regular funcionamento da economia será o mesmo se o crime anterior for tráfico de drogas, roubo ou qualquer outra atividade criminosa.”

O posicionamento em questão, entretanto, não pode estar dissociado do devido atendimento ao princípio da lesividade, o que significa admitir os atos de lavagem que merecem atenção do direito penal apenas poderiam ser aqueles com magnitude tal que sejam capazes de efetivamente atingir a ordem econômica. Daí porque Silva Sánchez128 considera que, na maioria dos casos, o delito de lavagem de capitais constitui exemplo de “expansão desarrazoada do direito penal”, haja vista que, a despeito de poucas hipóteses em que a entrada maciça de recursos procedentes de atividades criminosas em determinado setor da economia tenha potencial para provocar sua desestabilização (quando, então, seria razoável a resposta penal),

125 BRANDÃO, 2002, p. 22.

126 Por exemplo, a Diretiva (EU) 2015/849 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativa

“à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo”, traz expressamente em seu preâmbulo a preocupação com “[...] A solidez, integridade e estabilidade das instituições de crédito e das instituições financeiras e a confiança no sistema financeiro no seu conjunto”. Disponível em: <https://goo.gl/ooozhq>. Acesso em: 10 mar. 2018.

127 BADARÓ; BOTTINI, 2012, p. 55, destaques no original. 128 SILVA SÁNCHEZ, 2002,p. 28.

não se justificaria a criminalização de qualquer conduta de utilização de pequenas e médias quantias de dinheiro maculado na aquisição de bens ou na retribuição de serviços.

Não fosse apenas isso, Thais Bandeira129 destaca que a identificação do bem jurídico da lavagem de capitais como sendo a ordem econômica não se coaduna com os núcleos do tipo, nem com o momento consumativo do crime, é dizer: o artigo 1º, caput, da Lei n. 9.613/1998 traz como um dos núcleos do tipo o verbo “ocultar”, evidenciando que o delito se consuma no ato de encobrimento inicial, mesmo que o autor não consiga reinserir os valores na economia. Assim, adotar o posicionamento de que o bem jurídico é a ordem econômica seria criar uma figura odiosa de tipo de perigo abstrato, atraindo as inúmeras críticas doutrinárias expostas.

Assim é que, para a autora, o delito de lavagem de dinheiro encerra “uma tipificação de conduta criminosa que não se coaduna com as missões do direito penal: não há genuinamente um bem jurídico a se proteger”130. Tratar-se-ia, dessa maneira, de uma manifestação do “direito penal da sociedade do risco”, mormente no que se refere à perda do caráter fragmentário e subsidiário do ramo, cuja intervenção somente seria cabível nos casos em que for pujante a agressão à ordem econômica e, ainda, quando o próprio direito econômico não for suficiente para conter a prática do ilícito.