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mo-nos numa categoria à parte e submetermo-nos às mais diversas fantasias Nada de anodino Não é o mesmo que

No documento Teoria King Kong - Virginie Despentes (páginas 51-58)

dizer que se vai às putas. Isso não torna um h om em diferente

dos outros, não o marca na sua sexualidade nem o prede

fine em nada. Não estranh am os que os clientes das pro stitu

tas con stituam um a população diversificada, no que se refere

às suas motivações e maneiras de funcionar, mas também às

suas categorias sociais, raciais, etárias e culturais. As mulhe

res que fazem o trabalho são im ediatam ente estigm atizadas e

pertencem a um a categoria única: a de vítim as. E m França, a

m aioria delas recusa falar publicamen te de rosto descoberto,

porque sabem que a prostituição não é coisa que se assuma.

É preciso guardar silêncio. Sempre o mesmo mecanismo.

Exige-se que sejam conspurcadas. E, se não andarem direi-

tinhas quanto ao que dizem, se se q ueixarem do m al que lhes

fazem e contarem como se viram obrigadas àquela vida, estão feitas. Não é que se tema que não sobrevivam, pelo contrá rio: o que se receia é que ve n ha m afirm ar que o trabalho n ão é assim tão terrível. E não ape nas p or todo o trabalho ser degra dante, difícil e exigente, ma s tamb ém porque mu itos hom ens nun ca são tão am áveis como quando estão com um a puta.

Em do is anos, devo ter encontrado cerca de cinquenta clien tes diferentes. De cada vez que tinha necessidade de dinheiro líquido, ia ao minitel, num servidor de Lyon. Ao fim de dez minutos de estar ligada, já tinha registado vários números de telefone de ho m ens que procuravam um encontro para o próprio dia. Tratava-se muitas vezes de tipos em viagem de negócios. Em Lyon , havia m ais clientes do que mulheres, o que facilitava a selecção e tornava o trabalho mais agradável. Quando falava disso com aqueles que vinham com frequência, diziam-m e que encontravam com facilidade o que pretendiam. Se os clientes eram muitos e rapidamente servidos, era porque nós éramos m uitas a trabalhar. A p rostituição o casional n ão tem, pois, nada de esp ecial. O que faz do m eu caso u m a excepção é que eu falo disso. Esta actividade, que se pode exercer no maior segredo, nunca passa de um trabalho bem pago para uma mulher com pou cas ou nenhu m as qualificações.

Quando trabalhei em salões de massagens «eróticas» e em alguns  peep-shows  parisienses, os tempos de espera entre clien tes davam azo a conversas com as outras. Encontrei aí rapa  rigas com os perfis mais diversos e mais inesperados na con sciência colectiva para «este tipo de trabalho». A prim eira  vez que fu i co n tratad a p o r u m salão de m assa g en s, v in h a de um meio de extrema-esquerda, onde sempre ouvi dizer, e eu acreditava, que as raparigas que se pro stituíam eram vítim as, inconscientes ou manipuladas, mas, de toda a maneira, que

não tinham outra saída. A realidade no terreno é muito dife rente. A mu lher que me abriu a porta era um a negra es pa n tosa, uma das raparigas mais bonitas que vi de perto. Era

difícil sentir pena de uma criatura assim. Depois, conheci-a m elhor; era um pouco m ais nova. do que eu, esta va m ais bem integrada socialmente, trabalhara já vários anos como este ticista, estava noiva de um tipo que adorava e tinha muito hum or e muito bom gosto em m úsica. Parecia-m e um a p es 

soa sólida, trabalhadora e decidida. Lúcida e com os pés bem assente s na terra, com parada comigo ou com as outras rap ari

gas que eu conhecia. N ada que ver com a im agem que eu tinha das profissionais. Com m uita procura, ela ganhava um a for tuna todos os dias, dinheiro líquido que economizava cons cienciosam ente. N este salão, ao mesm o tempo do que eu foi admitida uma morenita que regressava da Jugoslávia, onde passara seis meses a fazer trabalho humanitário. Tinha um diploma de uma escola de comércio e vira-se desorientada no momento de procurar um «trabalho» normal. Tentara os salões de m assage ns por mero acaso. Dizia ao nam orado que era secretária numa grande empresa. Não tencionava con tinuar a actividade durante muito tempo. Tínhamos longas conversas sobre o carácter peculiar de um trabalho que nos fascina va às duas.

O único ponto em comum que detectei entre todas as raparigas com quem me cruzei era, bem entendido, a falta de dinheiro, mas sobretudo não falarem do que faziam. S e g r e d o s d e m u l h e r e s . N e m a o s a m i g o s , n e m à f a m í l i a , n e m a o s n a m o r a d o s o u a o s m a r i d o s . C r e i o q u e a m a i o r parte delas fez exactam ente com o eu: este tipo de trabalho, a l g u m a s v e z e s , d u r a n t e a l g u m t e m p o , e d e p o i s u m a c o i s a c o m p l e ta m e n t e d i fe r en t e .

 A s p e sso a s g ostam de ex ib ir um a expressão in créd u la quando lhes dizem os que trabalhám os como prostitutas, m as é o m esmo que se passa com a violação: um a imen sa hipo  crisia. Se fosse p ossível fazer um recenseamen to, ficáríam os muito ad m irados de conhecer o verdadeiro núm ero de m ulhe res que já venderam sexo a desconhecidos. Hipocritamente, po is, na no ssa cultura, a fronteira entre sedução e prostituição é ténue, e no fundo to da a gente está con sciente disso.

Durante o prim eiro ano, gostei verdad eiramen te deste tra  balho. Po r um lado, porque o dinheiro era m ais fácil do que no s outros lado s, e, po r outro, porque m e perm itiu experim entar, sem problemas de consciência e evitando qualquer con side ração m oral, qu ase tudo o que m e intrigava, excitava, p ertu r ba va ou fascinava . A ssim como outras coisas nas quais não teria pensado espo ntaneam ente, e que nem sempre gostaria que me ped issem na intim idade, mas que eram interessantes de fazer um a vez. Só m e dei conta de como esta po sição era confortável depo is de ter parado . Q uando, tornad a V irginie Despentes, fui a um clube de troca de casais. Percebi como teria sido m ais fácil fazê-lo enquanto p uta a acom panhar um cliente. Sem complicações: vou lá porque é o meu trabalho, faço aquilo que não se faz e sou pag a por isso. E  pu nk rock. S em

o motivo do d inheiro, tudo se torn ava m ais con fuso: eu ia lá a acompanhar um produtor ou para o meu próprio prazer? Fazia ali coisas por já estar bem b eb ida ou por aquilo m e e xci tar de verdade? Teria a coragem p ara, quanto m ais não fosse, saber o que sentia no dia seguinte? Be név ola e lúdica, a minh a sexualidade pareceu-me infinitamente mais confusa. Sou um a mulher, o do m ínio do sexo fora do casa l não m e pertence.  A p rostitu ição o casio n al, com a o p ção selecção de clien tes e de tipos de roteiro, é tam bém um a m aneira de um a m ulher ir

dar um a volta para os lados do sexo sem sentim entos, fazer experiencias, sem ter de pretender que o faz por puro pra zer nem esperar disso benefícios sociais colaterais. Quando se é um a puta, sab e-s e o que se veio fazer e por q uanto, e se além disso se tem gozo ou se se satisfaz a curiosidade, tanto melhor. Quando se é uma mulher com liberdade de esco lha, a situação acab a por ser muito m ais com plicada de gerir,

m enos ligeira.

De inicio, toda a gente à minha volta me felicitava e se congratulava por me sentir tão satisfeita, e isso fez -m e ap re ciar ainda mais o meu novo trabalho. Uma rapariga que se feminiza era caso para deixar toda a gente encantada. A s co i

sas são como são. Raros foram aqueles que me perguntaram por que m e dera para ali. Com o já disse, nunca me tinha in te ressado pela «roupa de mulher», usá-la permitiu-me com preender duas ou três coisas importantes sobre os homens. Quando não estamos à espera, o efeito produzido pelos ob jectos fetiche (ligas, saltos agulha, sutiãs  push-up ou batom ) parece uma grande brincadeira. Fingimos ignorá-lo quando lastim am os as mulheres-objecto, as sirigaitas de seios rem o delados, todas as cadelas anorécticas e recauchutadas da tele  visã o . M a s a fragili dad e en co n tra-se sobretudo do lad o dos hom ens. C om o se ninguém os tivesse prevenido de que o Pai Natal não vai chegar: sempre que vêem um casaco vermelho, correm brandindo a lista de prenda s que queriam ter na ch a m iné. Dep ois delicio-m e a ou vi-los perorar acerca da estupidez das m ulheres que adoram o poder, o dinheiro ou a fam a, como se isso fosse m ais estúpido do que adorar meias de red e...

No m eu caso, a prostituição co nstituiu um a etapa crucial de reconstrução depois da violação. U m em preendim ento de indem nização , nota a nota, do que m e havia sido roubad o pela

força bruta. D este modo, tinha guardado intacto o que pod ia  ven d er a cad a cliente: o m eu sexo. E, se o v en d ia dez vezes de

segu ida, era porque não se estraga va com o uso. Ele só a m im pe rtencia, não perd ia valor à med ida que era utilizado, e pod ia ser rentável. E nco ntrava-m e de novo num a situação de ultra- fem inilidade, m as desta vez tirava daí um benefício líquido.

O que é difícil, aind a hoje, não é tê-lo feito. C on cen trar-m e no pa ssad o p ara escrever este capítulo confronta-m e com b oas recordações. Subidas de adrenalina, antes de tocar a cam painh a de um a porta, e subidas de adrenalina ainda m aiores quando certas sessões com eçavam. Q uanto ao sexo, gostaria de poder dizer outra coisa, dado que não vale a pena acres centar m ais nada no género rasca, mas, em term os globais, era m uito excitante. Ser um a puta era m uitas vezes o máx im o, o desejo era gratificante. Foram também as minhas primei ras idas às com pras, com o meu próprio dinheiro, com m on  tantes na mão que nunca havia sonhado possuir, derretidos num só dia. E, ao mostrar-me os homens a uma luz infantil, m ais fráge is e m ais vulneráveis, a experiência torno u-os sim  pá ticos, m eno s im pression antes, m ais agradáveis. E, ao fim e ao cabo, m ais acessíveis. Tinha descoberto um a receita para atrair m ais interesse do que aquele que eu con segu ia gerir, o que fez diminuir, mais do que imaginava, a minha agressivi dade para com eles, que, contrariamente ao que se diz, não é m uito elevada . O que m e enfurece é quererem im pe dir-m e de ser ou de fazer, e não o que eles são ou fazem .

O difícil é falar destas coisas, dadas as reacçõ es que isso su s cita nas p ess oa s que vou encarar a seguir. A cond escend ência, o desp rezo, a fam iliaridad e, as conclusõ es desloc adas.

Quando cheguei a Paris, a actividade tornou-se compli cada. Muito mais raparigas, maior quantidade de brancas,  v in d a s de Leste , m uito bon itas, e m uito m ais cli entes p erig o 

sos. H avia um controlo ap ertado dos serv idores m initel, e era difícil fazer a m esm a selecção do que anteriorm ente. C onhe cia m al os bairros aonde ia. E, se tentasse virar-m e p ara em pre gos tipo massagista ou stripper,  para ficar mais protegida, as

percentagens eram ridículas, os locais demasiado pequenos e a oferta sempre superior à procura, o que tornava m erdoso o ambiente entre as raparigas. E depois já não vivia sozinha, começavam as mentiras, com a sensação de trazer a minha imu nd ície para casa. Perda de equilíbrio.

E difícil parar. Voltar para trabalhos pagos normalmente, onde se é tratada normalmente, como assalariada. Levantar cedo de manhã, ter de passar lá o tempo todo. De qual quer forma, bem podia procurar emprego, que não havia. Finalmente, acab ei por encontrar alguém que tinha um con he cimento na Virgin, onde pude então ficar alguns meses como  vendedora. Tra balh ar com o salá rio m ín im o to rn ara-se um

produto de luxo. O mercado estava ainda mais difícil, e eu, entretanto, estava mais velha, com lacunas suspeitas no meu CV. A readap tação não era evidente. O único trabalho estável que encontrei con sistia em fazer resenhas de filmes para ad ul tos para um editor de revistas eróticas. O que gan hav a não che  gav a para pagar um a renda em P aris. Tomei conta de crianças, e pelo menos isso era uma coisa que não me aborrecia nada, m as tam bém não era suficiente para poder viver n a capital.

Há um a com paração po ssível entre as drogas duras e a pro s tituição. Ao princípio, vai tudo bem: sensação de poder (sobre os homens, sobre o dinheiro), emoções fortes, descoberta de um eu m ais interessante, livre de dúvidas. M as tra ta-se de um

alivio traiçoeiro, os efeitos secundários são penosos, conti

No documento Teoria King Kong - Virginie Despentes (páginas 51-58)