sem saber como deverão agir, e as raparigas, frustradas por eles não conhecerem melhor do que elas as suas próprias anatom ias e os seus dom ínios fantasm áticos.
Qu anto à m asturbação fem inina, basta falar nisso com as mulheres à no ssa volta: «eu sozinha não me intere ssa», «só o f aço q u a nd o nã o t enho g a j o d u r ant e mu i to te m p o» , «p r e firo que se o cupem de m im», « não pratico, não gosto». Não sei o que fazem nos tem pos livres, m as, em todo o caso, se não se masturbam, compreende-se que não sintam interesse pelos filmes p ornog ráficos, cuja m issão é só uma: que as pesso as se m a s t u r b e m .
Se i m uito bem que o que as raparigas sozinhas fazem com o seu clítoris não m e diz respeito, m as, ainda assim , esta ind i f e re nça p a r a com a ma s t u r ba çã o i ncomod a - me u m p ouco : quando é que as mulheres se ligam com as suas próprias fan tasias se não se masturbam quando estão sozinhas? O que sabem do que verdadeiramente as excita? E, se não sabemos isso, o que conhecemos de nós com exactidão? Que contacto estabelecemos connosco quando o nosso próprio sexo é sis tem aticam ente anexado por outro?
Queremos ser mulheres decentes. Se a fantasia aparece como perturbação, ou como algo de impuro ou desprezível, recalcam o-la. M eninas modelo, anjos do lar ebo as m ães, feitas para o be m -es tar de outros, não para sondar o no sso íntim o. Somos formatadas para evitar o contacto com o nosso lado selvagem. Sobretudo agradar, sobretudo pensar na satisfa ção do outro. Tanto pior pa ra tudo o que é preciso reprim ir em nós . A s noss a s s e x u al i d a d es põe m- nos em pe r i g o; r ec onhe cê -las é talvez fazer a experiência delas, e, para u m a mulher, toda a exp eriênc ia sexual leva à sua exclusão do grupo.
O desejo feminino foi silenciado até aos anos cinquenta. A p rim e ira vez que m u lh eres se reú n em p a ra afirm ar qu e
«tem os desejo, som os percorridas por pu lsões brutais, inex plicáveis, os nossos clítoris são como pilas, reclamam ser satisfeitos» foi por ocasião dos primeiros conce rtos de rock.
Os Beatles vêem -se o brigados a desistir dos concertos ao v iv o : as m u lh eres n a sa la u rram a cad a n o ta que ele s to cam , as suas vozes cobrem o som da m úsica. E logo a segu ir vem o desprezo. H isteria da fã. N inguém quer ouvir aquilo que elas v ie ra m dizer, que são m u lh eres ardentes e sen tem d e sejo . Esse fenómeno fundamental é ocultado. Os homens não querem ouvir falar disso. O desejo é o seu domínio exclu sivo. E extraordinário pensar que se despreza uma rapariga que grita o seu desejo quando John Lennon toca uma gui tarra, m as se co nside ra gaiteiro um velho que assob ia a um a adolescente de saias. Por um lado, há uma concupiscência ind iciado ra de bo a saúde, que a sociedade acha norm al, que é elogiada, pela qual se m ostra ben evolên cia e com preen são, e, por outro, um apetite necessariam ente grotesco, m on s truoso, risível, que deve ser reprimido.
A explicação p sico ló g ic a corre nte p ara a existên cia de n in - fomaníacas é um exemplo claro de difamação, ao pretender que elas multiplicam os encontros sexuais por despeito de não sentirem satisfação sexual. Difunde-se assim a ideia de que m ultiplicar as conquistas é forçosam ente ind ício de frustra ção feminina. Enquanto, na realidade, é uma teoria que se aplicaria melhor aos homens, frustrados com a pobreza da sua sensualidade e do seu prazer. São os homens que super- v alo rizam e su bli m am o corp o fem in in o e qu e, in cap azes de
tirar dele o prazer esperado, acum ulam as conq uistas na esp e rança de, um dia, experienciarem qualquer coisa da ordem do
verd adeir o orgasm o . M a is u m a vez, o que é fu n d am e n tal m ente verdadeiro para o hom em é desviado pa ra estigm atizar a sexualidade feminina.
Quand o P aris Hilton ultrapassa os limites, se exibe de gatas com o rabo esp etado e aproveita a circulação da imag em para se tornar mundialmente conhecida, percebemos uma coisa imp ortante: ela pertence à sua classe social antes de perten cer ao seu sexo. Assim, no estúdio do programa de televi são Nulle Pa rt Ailleurs, diante de Jamel Debbouze, ocorre uma cena interessante. O jovem cómico procura imediatamente redesigná-la, remetê-la para o seu lugar de mulher disso l u t a: « C o n h e ç o - t e m u it o b em , e u v i - t e , v i - t e n a I n t e rn e t .» Ele fala em nome do seu sexo, conta com a sua superiori dade intrínseca para a pôr num a posição delicada. M as Paris Hilton não é a actriz local de filmes pornográficos; antes de ser um a mu lher a quem se viu a rata, é a herdeira dos hotéis Hilton. Para ela, é impensável que um homem de estatuto social inferior a ponha numa situação vulnerável, nem que fosse por um segundo. Ela nem pestaneja, quase não o olha. Desestabilização nula. E não está aqui a dar mostras de um carácter especialmente notável. Faz-nos saber, a todos, que se po de perm itir foder diante de toda a gente. Pertence a um a casta que, historicamente, tem direito ao escândalo, a não se con form ar com as regras que se aplicam ao povo. A ntes de ser um a mulher, sujeita a um olhar de hom em , é um a dom inante social, capaz de escamotear o julgamento de quem é menos privilegiado.
Co m preend e-se assim que a única ma neira de fazer explo dir o ritual sacrificial do pomo será levar para lá as rapari gas de boas famílias. O que explode, quando explodem as
censuras im postas pela cam ada dirigente, é urna ordena m oral alicerçada na exploração de todos. A família, a virilidade guerreira, o pudor e todos os valore s tradiciona is v isa m atri- buir a cada sexo o seu papel. A os hom ens, o de cad áveres gr a- tuitos para o Estado, às mulheres, o de escravas dos homens. No final, todos escravizados, as nossas sexualidades confis- cadas, vigiadas, normalizadas. Há sempre uma classe social interessada em que as coisas continuem como são e que não diz a verdade acerca das suas m otivações profundas.
Na realidade, o homem representa hoje o positivo e o neutro, ou seja, o macho e o ser humano, enquanto a mulher é apenas o negativo, a fêmea. Assim, cada vez que ela se comporta como um ser humano, declara- -se que se identifica com o macho. As suas activida des desportivas, políticas, intelectuais, o seu desejo por outras mulheres, são interpretados como um "protesto viril”. Há urna recusa em ter em conta valores em direc- ção aos quais ela se transcende, o que conduz evidente mente a considerar que faz a escolha inautêntica de uma atitude subjectiva. O grande mal-entendido em que se baseia este sistema de interpretações é admitirmos como
natural o ser humano fêmea fazer de si uma mulher femi- nina: não basta ser uma heterossexual, nem mesmo uma mãe, para realizar esse ideal. A "verdadeira mulher” é um produto artificial que a civilização fabrica como antiga mente se fabricavam castrados. Os seus pretensos instin tos de sedução e de docilidade são-lhe insuflados como ao homem é incutido o orgulho fálico. Este nem sem pre aceita a sua “vocação viril”. Tem boas razões para aceitar ainda menos docilmente a que lhe é designada.
s i m o n e d e b e a u v o i r , O Segundo Sexo, 19491
1 Trad. Sérgio Milliet, rev. Carlos Pinheiro, Lisboa, Q uetzal Editores, 2009. A tradução deste excerto foi feita a par tir do texto citado no original. ( N.T .)
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