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toda a gente está pouco à vontade: os rapazes que hesitam

No documento Teoria King Kong - Virginie Despentes (páginas 81-87)

sem saber como deverão agir, e as raparigas, frustradas por eles não conhecerem melhor do que elas as suas próprias anatom ias e os seus dom ínios fantasm áticos.

Qu anto à m asturbação fem inina, basta falar nisso com as mulheres à no ssa volta: «eu sozinha não me intere ssa», «só o f aço q u a nd o nã o t enho g a j o d u r ant e mu i to te m p o» , «p r e  firo que se o cupem de m im», « não pratico, não gosto». Não sei o que fazem nos tem pos livres, m as, em todo o caso, se não se masturbam, compreende-se que não sintam interesse pelos filmes p ornog ráficos, cuja m issão é só uma: que as pesso as se m a s t u r b e m .

Se i m uito bem que o que as raparigas sozinhas fazem com o seu clítoris não m e diz respeito, m as, ainda assim , esta ind i f e re nça p a r a com a ma s t u r ba çã o i ncomod a - me u m p ouco : quando é que as mulheres se ligam com as suas próprias fan  tasias se não se masturbam quando estão sozinhas? O que sabem do que verdadeiramente as excita? E, se não sabemos isso, o que conhecemos de nós com exactidão? Que contacto estabelecemos connosco quando o nosso próprio sexo é sis tem aticam ente anexado por outro?

Queremos ser mulheres decentes. Se a fantasia aparece como perturbação, ou como algo de impuro ou desprezível, recalcam o-la. M eninas modelo, anjos do lar ebo as m ães, feitas para o be m -es tar de outros, não para sondar o no sso íntim o. Somos formatadas para evitar o contacto com o nosso lado selvagem. Sobretudo agradar, sobretudo pensar na satisfa ção do outro. Tanto pior pa ra tudo o que é preciso reprim ir em nós . A s noss a s s e x u al i d a d es põe m- nos em pe r i g o; r ec onhe  cê -las é talvez fazer a experiência delas, e, para u m a mulher, toda a exp eriênc ia sexual leva à sua exclusão do grupo.

O desejo feminino foi silenciado até aos anos cinquenta.  A p rim e ira vez que m u lh eres se reú n em p a ra afirm ar qu e

«tem os desejo, som os percorridas por pu lsões brutais, inex plicáveis, os nossos clítoris são como pilas, reclamam ser satisfeitos» foi por ocasião dos primeiros conce rtos de rock.

Os Beatles vêem -se o brigados a desistir dos concertos ao  v iv o : as m u lh eres n a sa la u rram a cad a n o ta que ele s to cam , as suas vozes cobrem o som da m úsica. E logo a segu ir vem o desprezo. H isteria da fã. N inguém quer ouvir aquilo que elas  v ie ra m dizer, que são m u lh eres ardentes e sen tem d e sejo . Esse fenómeno fundamental é ocultado. Os homens não querem ouvir falar disso. O desejo é o seu domínio exclu sivo. E extraordinário pensar que se despreza uma rapariga que grita o seu desejo quando John Lennon toca uma gui tarra, m as se co nside ra gaiteiro um velho que assob ia a um a adolescente de saias. Por um lado, há uma concupiscência ind iciado ra de bo a saúde, que a sociedade acha norm al, que é elogiada, pela qual se m ostra ben evolên cia e com preen são, e, por outro, um apetite necessariam ente grotesco, m on s truoso, risível, que deve ser reprimido.

 A explicação p sico ló g ic a corre nte p ara a existên cia de n in - fomaníacas é um exemplo claro de difamação, ao pretender que elas multiplicam os encontros sexuais por despeito de não sentirem satisfação sexual. Difunde-se assim a ideia de que m ultiplicar as conquistas é forçosam ente ind ício de frustra  ção feminina. Enquanto, na realidade, é uma teoria que se aplicaria melhor aos homens, frustrados com a pobreza da sua sensualidade e do seu prazer. São os homens que super-  v alo rizam e su bli m am o corp o fem in in o e qu e, in cap azes de

tirar dele o prazer esperado, acum ulam as conq uistas na esp e rança de, um dia, experienciarem qualquer coisa da ordem do

 verd adeir o orgasm o . M a is u m a vez, o que é fu n d am e n tal m ente verdadeiro para o hom em é desviado pa ra estigm atizar a sexualidade feminina.

Quand o P aris Hilton ultrapassa os limites, se exibe de gatas com o rabo esp etado e aproveita a circulação da imag em para se tornar mundialmente conhecida, percebemos uma coisa imp ortante: ela pertence à sua classe social antes de perten  cer ao seu sexo. Assim, no estúdio do programa de televi são  Nulle Pa rt Ailleurs,  diante de Jamel Debbouze, ocorre uma cena interessante. O jovem cómico procura imediatamente redesigná-la, remetê-la para o seu lugar de mulher disso l u t a: « C o n h e ç o - t e m u it o b em , e u v i - t e , v i - t e n a I n t e rn e t .» Ele fala em nome do seu sexo, conta com a sua superiori dade intrínseca para a pôr num a posição delicada. M as Paris Hilton não é a actriz local de filmes pornográficos; antes de ser um a mu lher a quem se viu a rata, é a herdeira dos hotéis Hilton. Para ela, é impensável que um homem de estatuto social inferior a ponha numa situação vulnerável, nem que fosse por um segundo. Ela nem pestaneja, quase não o olha. Desestabilização nula. E não está aqui a dar mostras de um carácter especialmente notável. Faz-nos saber, a todos, que se po de perm itir foder diante de toda a gente. Pertence a um a casta que, historicamente, tem direito ao escândalo, a não se con form ar com as regras que se aplicam ao povo. A ntes de ser um a mulher, sujeita a um olhar de hom em , é um a dom inante social, capaz de escamotear o julgamento de quem é menos privilegiado.

Co m preend e-se assim que a única ma neira de fazer explo dir o ritual sacrificial do pomo será levar para lá as rapari gas de boas famílias. O que explode, quando explodem as

censuras im postas pela cam ada dirigente, é urna ordena m oral alicerçada na exploração de todos. A família, a virilidade guerreira, o pudor e todos os valore s tradiciona is v isa m atri- buir a cada sexo o seu papel. A os hom ens, o de cad áveres gr a- tuitos para o Estado, às mulheres, o de escravas dos homens. No final, todos escravizados, as nossas sexualidades confis- cadas, vigiadas, normalizadas. Há sempre uma classe social interessada em que as coisas continuem como são e que não diz a verdade acerca das suas m otivações profundas.

Na realidade, o homem representa hoje o positivo e o neutro, ou seja, o macho e o ser humano, enquanto a mulher é apenas o negativo, a fêmea. Assim, cada vez que ela se comporta como um ser humano, declara- -se que se identifica com o macho. As suas activida des desportivas, políticas, intelectuais, o seu desejo por outras mulheres, são interpretados como um "protesto  viril”. Há urna recusa em ter em conta valores em direc- ção aos quais ela se transcende, o que conduz evidente mente a considerar que faz a escolha inautêntica de uma atitude subjectiva. O grande mal-entendido em que se baseia este sistema de interpretações é admitirmos como

natural  o ser humano fêmea fazer de si uma mulher femi- nina: não basta ser uma heterossexual, nem mesmo uma mãe, para realizar esse ideal. A "verdadeira mulher” é um produto artificial que a civilização fabrica como antiga mente se fabricavam castrados. Os seus pretensos instin tos de sedução e de docilidade são-lhe insuflados como ao homem é incutido o orgulho fálico. Este nem sem pre aceita a sua “vocação viril”. Tem boas razões para aceitar ainda menos docilmente a que lhe é designada.

s i m o n e d e b e a u v o i r  , O Segundo Sexo, 19491

1 Trad. Sérgio Milliet, rev. Carlos Pinheiro, Lisboa, Q uetzal Editores, 2009. A tradução deste excerto foi feita a par tir do texto citado no original. ( N.T .)

K IN G K O N G G I R L

No documento Teoria King Kong - Virginie Despentes (páginas 81-87)