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Teoria King Kong - Virginie Despentes

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Academic year: 2021

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O B R A P U B L I C A D A C O M O S E G U I N T E A P O I O O B R A P U B L I C A D A C O M O S E G U I N T E A P O I O Centro Nacional

Centro Nacional do Ldo Livro -ivro - mm i n ii n i s t e rs t e r ii oo dd aa c u l t u r ac u l t u r a f r a n c é sf r a n c é s

O U V R A G E P U B L I É

O U V R A G E P U B L I É A V E C LA V E C LE S O U T I E N E S O U T I E N S U I V A NS U I V A N T  T   Centre nati

Centre national du onal du livrlivre -e - m i n i s t è r em i n i s t è r e f r a n ç a i sf r a n ç a i s c h a r g éc h a r g é dd ee ll aa c u l t u r ec u l t u r e

 T

 T ÍÍ TT UU LL O O OO RR II GG II NN AA LL King Kong Théorie King Kong Théorie

A U T O R A A U T O R A  V

 Virirgginin ie ie DDeses pepe ntnt eses

 T  T RR AA DD UU ÇÇ ÃÃ OO Luís Leitão Luís Leitão R E V I S Ã O R E V I S Ã O Nuno Quintas Nuno Quintas C O N C E P Ç Ã O G C O N C E P Ç Ã O G R Á F I CR Á F I CAA Rui

Rui Silva Silva || w w ww ww .a.alflfaaiaia tata ririaa.o.o rgrg

D E S E N H O S D E S E N H O S M

M iguel iguel CarneiCarneiro ro || w w ww ww .o.o fificici nnaa-a-a rraarraa.o.o rgrg

I M P R E S S Ã O I M P R E S S Ã O Gráfica Maiadouro Gráfica Maiadouro C O P Y R I G H T   C O P Y R I G H T  

© 2006 Éditions Grasset & Fasquelle © 2006 Éditions Grasset & Fasquelle © 2016 Orfeu Negro © 2016 Orfeu Negro 1 . a 1 . a E DE D I Ç ÃI Ç Ã OO Lisboa, Setembro 2016 Lisboa, Setembro 2016 d d l l 414686/16414686/16 I S B N I S B N 9 7 8 - 9 8 9 - 8 3 2 7 - 8 5 - 79 7 8 - 9 8 9 - 8 3 2 7 - 8 5 - 7

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Para Karen Bach, Para Karen Bach, Raf

Raffaêfaêla Anla An dersonderson e Coralie

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T EM E N TE S C O R R U P T A S1

Escrevo da terra das feias, para as feias, as velhas, as m ac ho  nas, as frígidas, as malfodidas, as infodíveis, as histéricas, as taradas, todas as excluidas do grande mercado das gajas bo as. E com eço por aqui para que as coisas sejam claras: não peço desculpa de nada, não me venho lamentar. Não troco o meu lugar com ninguém, porque ser Virgiriie Despentes p a r e c e - m e u m a ta r e fa m a i s i n te r e s s a n t e d e c u m p r ir d o q ue

qualque r outra.

 A cho óptim o que haja ta m bém m ulh eres que gostam de sedu zir, que sabem seduzir, outras arranjar marido, mulheres que cheiram a sexo e outras a bolo do lanche das crianças que saem da escola. E óptim o que ha ja um as m uito m eigas, outras esfuziantes na sua feminilidade, que haja mulheres jovens, muito belas, outras va ido sas e flam an tes. A sério que fico muito contente por todas aquelas a quem as coisas tal como são convêm. Isto sem a mais pequena ironia. Acontece, porém, que não me integro nesse grupo. E claro que não escreveria 0 que escrevo se foss e bela, tão be la que fizesse m udar a atitude de todos os hom ens com quem me cruzo. E na minha qu ali dade de proletária do feminismo que falo, que falei ontem e

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que recomeço hoje. Quando recebia o RSI, não sentia vergo

nha nenhum a por ser um a excluída, sentia ap ena s raiva. É a

m esm a que sinto enquanto mulher: não tenho a m ínim a ve r

gonha de não ser uma ga ja superboa. Em contrapartida, fico

 verde de raiva que, enquanto rapariga que in teressa pouco

aos homens, me estejam sempre a dar a entender que nem

sequer devia existir. Ora, nós sempre existimos. Embora não

haja som bra de nós nos rom ances de hom ens, cuja im agina

ção é apen as po voad a por mulheres com qu em gostariam de ir

para a cam a. Sem pre existim os, nunca falám os. M esm o hoje,

em que as m ulheres publicam im ensos rom ances, raramente

encontramos personagens femininas com físicos ingratos

ou m edíocres, incapazes de amar os hom ens e de se fazerem

amar por eles. Pelo contrário, as heroínas contemporâneas

amam os homens, encontram-nos facilmente, deitam-se

com eles em dois capítulos, gozam em quatro linhas e gos

tam todas de sexo. A figura da falhad a da fem inilidade é -m e

ç.mais do que sim pática, é-m e essen cial. Exactam ente como a

figura do falhad o social, econ óm ico ou político. Prefiro

aque- í les que não têm sucesso, pela boa e sim p les razão de que

eu própria também não tenho muito; e de que, em termos

gerais, o hu m or e a ima ginaç ão se situam rnais do nosso lado.

Quando não tem os o que é preciso pa ra dar nas vistas, som os

muitas vezes mais criativos. Sou uma rapariga mais do tipo

King Kon g do que Kate M oss. Sou o tipo de mulher com quem

não se casa, com quem não se tem um filho, falo da minha

posição de mulher que é sempre demasiado em tudo o que é,

demasiado agressiva, demasiado ruidosa, demasiado gros

seira, demasiado brutal, demasiado hirsuta, sempre dema

siado viril, dize m -m e. Porém, são as m inhas qualidades viris

que fazem de m im qualquer coisa diferente de um caso social

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entre os outros. Tudo de que gosto da minha vida, tudo o que

me salvou, devo-o à minha virilidade. É pois aqui, enquanto

m ulher inap ta para atrair a atenção m asculina, para satisfazer

o desejo m asculino e para me satisfazer com u m lugar à som 

bra, que escrevo. É daqui que escrevo, enquanto mulher não

sedutora, m as am biciosa, atraída pelo dinheiro que eu próp ria

ganho, atraída pelo poder de fazer e de recusar, atraída pela

cidade e não pelo interior, sempre excitada pelas experiências

e incapaz de me satisfazer com o relato que m e h ão -de fazer

delas. Estou-me nas tintas para dar tesão a homens que não

são o meu sonho. Nunca me pareceu evidente que as rapa

rigas sedutoras tivessem assim tanto gozo com isso. Sempre

m e senti feia, e acom odo-m e tanto me lhor a essa c ircun stân

cia quanto foi precisamente ela que me salvou de uma vida

de merda a gramar tipos simpáticos que nunca me teriam

levado m ais longe do que a linh a azul dos Vosges. E stou c on 

tente comigo assim como sou, mais desejosa do que desejá

 vel. Escrevo, pois, daqui, da terra das que ficaram p o r vender,

das m alfeitonas, das que têm a cabeça rapada, das que não se

sabem vestir, das que têm med o de cheirar m al, das que têm

os dentes podres, das desajeitadon as, das que os ho m ens n ão

poupam, das capazes de foder com qualquer homem que as

queira, das grandes putas, das pequenas desavergonhadas,

das que têm a rata sempre seca, das que têm g rande s ban du 

lhos, das que go stavam de ser hom ens, das que se tom am por

hom ens, das que sonh am ser actrizes pornog ráficas, das que

se estão a m arimb ar para os gajos m as que se intere ssam p elas

amigas deles, das que têm um grande rabo, das que têm pêlos

abundantes e bem negros e que não se depilam, das mulhe

res rudes, barulhen tas, das que arrasam tudo à sua passagem ,

das que não gostam de perfumarias, das que põem um

blush

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demasiado vermelho, das que são demasiado malfeitas para p o d e r e m e n f a r p e l a r - s e c o m o e n g a t a t o n a s m a s q u e m o r r e m de vontade de o fazer, das que querem u sar rou pa de hom em e ba rba na rúa, das que querem m ostrar tudo, das que são pu di cas por complexo, das que não sabem dizer não, das que são fechadas para serem submetidas, das que metem medo, das que m etem pen a, das que não fazem inveja, das que têm a pele flácida e rugas por todo o rosto, das que sonham com fazer um lifting, fazer um a lipoa spiração ou partir o nariz para o refazer m as que n ão têm dinheiro para isso, das que já não se pa re cem com nada, das que só contam consigo próprias para se protegerem, das que não sabem dar segurança, das que não querem saber d os filhos, das que gostam de beber até rebo la rem no chão no s bares, das que não sab em como p roceder; tal c o m o , a o m e s m o t e m p o , p a r a o s h o m e n s q u e n ã o t ê m v o n  tade de ser protectores, os que o queriam ser mas que não sabem como, os que não sabem lutar, os que choramingam por tudo e por nada, os que não são am biciosos, nem com pe  titivos, ne m bem dotados, nem agressivos, os que são m edro  sos, tím ido s, vulneráveis, os que prefeririam tratar da casa em  vez d e ir trab alh ar, os que são d elicad o s, calv o s, d e m asiad o po bres p ara a gradar, os que têm vontad e de levar no cu, os que não qu erem que contem os com eles, os que têm m edo de ficar

sozinh os à noite.

Porque o ideal da mulher branca, sedutora sem ser puta, b e m c a s a d a m a s a p a g a d a , qu e t r ab a l h a m a s s e m f az e r g ra n d e carreira, para não apoucar o seu hom em , m agra m as sem ser neurótica com a comida, que permanece sempre jovem sem se deixar desfigurar pelos cirurgiões de estética, m am ã v en  t u r o s a s e m e s t a r o b c e c a d a p e l a s f r a l d a s n e m p e l o s t r a b a  lhos de casa, bo a dona de casa sem ser a sopeira tradicional,

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culta m as m enos do que um ho m em , ess a m ulher branca que nos agitam con stantem ente à frente do nariz, aquela que nos devíamos esforçar por copiar, à parte ter ar de se chatear a fundo por tudo e por nada, de qualquer maneira nunca me cruzei com ela, em lado nenhum . Acho m esm o que não existe.

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Se a mulher apenas existisse, de facto, na ficção escrita pelos homens, surgiria na imaginação como um ser da máxima importancia; muito versátil; heroica e mesquinha; maravilhosa e sórdida; infi-nitamente be la e terrivelmente medonha; tão im po r-tante como um homem e segundo alguns aind a ma is. Contudo, esta é a mulher como aparece na ficção.  A verdade é que, tal como o professor Trevelyan acentua, a mulher era fechada à chave, espancada e torturada.

 V i r g i n i a   w o o l f, Um Quarto Que Seja Seu1

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E N R A B O - T E O U E N R A B A S - M E ?

Há algum tempo, em França, que não paramos de ouvir das boas por causa dos anos setenta. Que nos engan ám os no cam i nho, e que raio fizemos com a revolução sexual, e que temos a mania de ser homens ou quê, e que com as nossas parvoíces nos p erguntam os para onde foi a boa e velha virilidade, a do pap á e do vovô, esses hom ens que sabiam m orrer na guerra e comandar um lar com uma saudável autoridade. E com o apoio da lei. Ouvimo s das boas porque os hom ens têm m edo. C omo se tivéssemos alguma coisa que ver com isso. Mas não deixa de ser espantoso e, no mínimo, moderno que um dominante  ven h a ch oram ingar que o dom in ado não dá su fic ie n te m en te o

couro... Neste caso, o homem branco dirigir-se-á realmente às mulheres ou procura expressar a sua surpresa pelo rumo que tom am globalmen te os seus assun tos? Seja como for, são inconcebíveis as reprimendas que nos dão, as advertências, o controlo que exercem sobre nós. Aqui, pom o-n os dem asiado no papel de vítimas, ali, não fodemos como deve ser, somos dem asiado debochadas ou demasiado am orosas, m as de qual quer m odo não é para perceber, ou m uito porn ográficas ou não suficientemente sensuais... Decididamente, esta revolução sexua l era dar péro las a estúp idas. M as, seja o que for que fizer mos, há sempre alguém que se dá ao trabalho de afirmar que é um a porcaria. Dan tes era m elhor, por assim dizer. Ah sim?

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çy " ' , -_ . . t '(; N a s c i e m 1 9 6 9 . A n d e i n u m a e s c o l a m i s ta . D e s d e a p r i  m á r i a q u e p e r c e b i q u e a i n t e l i g ê n c i a d o s r a p a z e s p a r a o s e s t u d o s e r a i g u a l à d a s r a p a r i g a s . U s e i s a i a s c u r t a s s e m q u e n i n g u é m d a m i n h a f a m í li a s e t en h a a lg u m a ve z p re o cu p a d o c o m a m i n h a r e p u ta ç ã o ju n t o d o s v i z in h o s . C o m e c e i a t o m a r a p í l u l a a o s c a to r z e a n o s s e m p r o b l e m a n e n h u m . F o d i lo g o que pude, o que, na época, me encheu as medidas, e vinte a n o s p a s s a d o s o ú n i c o c o m e n t á r i o q u e i s s o m e i n s p i r a é : « P a r a m i m f o i su p e r .» S a í d e c a s a a o s d e z a s s e t e a n o s e p o d i a  v iv e r so z in h a se m que n in g u é m fiz e s s e re p a ro s. S e m p re sou be que iria trabalhar, que não ser ia ob rigada a sup ortar a c o m p a n h i a d e u m h o m e m p a r a qu e e le m e p a g a s s e a re n d a d e c a s a . A b r i u m a c o n t a n o b a n c o e m m e u n o m e s e m t e r c o n s c i ê n c i a d e p e r t e n c e r à p r i m e i r a g e r a ç ã o d e m u l h e r e s q u e o p ô d e fa z er se m p a i n e m m a r id o . M a s t u r b e i- m e b a s  t a n t e ta r d e , e m b o r a já c o n h e c e s s e a p a l a v r a p o r a te r li d o e m l iv r o s m u i to c l a r o s a c e r c a do a s s u n t o : n ã o e r a u m m o n s t ro a s s o c i a i p o r m e m a s t u r b a r , e a l iá s , o q u e f a z ia c o m a m i n h a r a t a s ó a m i m d i z i a r e s p e i t o . D e i t e i - m e c o m c e n t e n a s d e g a j o s , s e m n u n c a e n g r a v id a r , m a s d e q u a lq u e r m o d o s a b i a a o n d e m e d i r ig i r p a r a f a z e r u m a b o r t o , s e m a u t o r iz a ç ã o d e n i n g u é m , s e m a r r i s c a r o p ê l o . T o r n e i - m e p u t a , c a l c o r re e i a c i d a d e d e s a l to s a lt o s e d e c o t e s p r o n u n c i a d o s , s e m p r e s t a r c o n t a s a n i n g u é m , a r r e c a d e i e g a s t e i c a d a c ê n t i m o q u e m e p a g a r a m . A n d e i à b o l e ia , f u i v i o l a d a , v o l te i a a n d a r à b o l ei a . E s c r e v i u m p r im e i ro r o m a n c e q u e a s s i n e i c o m o m e u n o m e p r ó p r i o d e m u l h e r , s e m i m a g i n a r u m i n s t a n t e q u e , q u a n d o f o i p u b l ic a d o , m e v i e s s e m r e c i ta r o a l fa b e t o d e f r o n t e ir a s q u e n ã o d e v i a a tr a v e s sa r . A s m u l h e re s d a m i n h a id a d e s ã o a s p r im e i ra s a t e r a p o s s ib i li d a d e d e u m a v i d a s e m s e xo s e m p a s s a r p e la c a s a c o n v en t o . O c a sa m e n t o f o rç a d o t o r n o u - s e

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chocante. O dever conjugal deixou de ser urna evidencia.

Durante anos estive a milhas do feminismo, não por falta

de solidariedade ou de consciencia, mas porque, durante

muito tempo, ser do meu sexo não me impediu realmente

de quase n ada. Urna vez que q ueria ter um a vida de hom em ,

tive um a vida de hom em . E que a revolução fem inista teve

de facto lugar. Era m elhor pararem de nos d izer que, antes,

e s tá v a m o s m a i s r e a liz a d a s . R a s g a r a m - s e h o r i z o n t e s , a b r

i-r a m - s e b i-r u s c a m e n t e te i-r i-rit o i-rio s , c om o s e t iv e s s e m e s ta d o

sem pre abertos.

É certo que a França actual está longe de ser a A rcá d ia para

todos. Aqui, nós, mulheres, e eles, homens, não somos feli

zes. Isso não tem n ad a que ver com o respeito da tradição dos

géneros. Pod eríamo s ficar todas de avental na cozinh a a fazer

miúdos de cada vez que fodemos, que isso não mudaria em

na da o fracasso do trabalho, do liberalismo , do c ristian ism o

ou do equ ilíbrio ecológico.

 A s m ulheres à m inha volta gan ham efectivam en te m eno s

dinheiro do que os homens, ocupam lugares subalternos,

consideram normal serem subvalorizadas quando tomam

qualquer iniciativa. Há um orgulho de criada em ter de ca m i

nhar de saia travada, como se isso fosse útil, agradável ou

sedutor. Um gozo servil perante a ideia de servir de tram po 

lim. Sentimo-nos constrangidas com as nossas capacida

des e espiad as todo o tem po pelos hom ens, que con tinu am a

im iscuir-se nos n ossos assuntos e a indicar o que está bem ou

mal para nós, mas sobretudo pelas outras mulheres, através

da família, das revistas femininas e do discurso dominante.

E preciso apoucar essas capacidades, jamais valorizadas numa

m ulher: «c om petente» con tinu a a querer dizer «m asculina».

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 Jo a n R iv ie re , p s ic a n a lis ta do in ício do século x x , e scre ve, em 1927, Womanliness as a Masquerad e.  A autora estuda o caso de u m a m u l h e r «i n t erm e d ia », o u s e j a , h e t ero s s ex u a l m a s v iri l , que sofre de um a situa ção em que, de cada vez que se exprim e em público, é aco m etida de um terrível pavor que lhe faz p er  der todas as faculdades e se traduz por uma necessidade ob sess iva e hu m ilhan te de atrair a atenção dos hom ens.

« A an álise revelou que a sua coqu etería e os seus pisca res de olho com pulsivos [...] se explicavam da seguinte m aneira: t rat a v a - s e d e u m a te n ta t i v a i n co n s cie n te d e a fa s ta r a a n gú s  tia que resultaría do facto de ela tem er as rep resalias da pa rte das figuras paternais relativamente às suas proezas intelec t u ai s . A d e m o n st ra ção e m p ú b li co da s su a s ca p a cid a d e s in t e  lectuais, que em si m esm a representava um triunfo, adqu iria o sentido de uma exibição tendente a mostrar que possuía o pén is do pai, depo is de o ter castrado. Fe ita a dem onstração, f ica va a t erro ri z ad a com m e d o d a v i nga n ça d o p ai. T ra ta v a - se e v id e n te m e n te de um co m p o rta m e n to te n de n t e a a p a zi gu a r a s u a v in d i cta p rocu ra nd o o f ere ce r- s e a e le s ex u a l m e n te .»

Esta análise proporciona urna chave de leitura para a enga-t a enga-ti ce qu e gra s s a n a ce na pop actual. Ba sta pas sea r n a cidade,  v e r u m p ro g ra m a d a M T V ou u m a e m issã o de v a rie d a d e s no p rim e i ro ca na l, ou f o lh e ar u m a re v is t a fe m i n in a , p a ra f i ca r m o s e sp a n t ad o s co m a e x p l os ã o d o look   ca de l a e m ú l t i m o grau, que aliás fica m uito bem, a.doptado por m uitas rap ari gas. E de facto u m a m an eira de pedir desculpa, de tranquilizar os homens: «Vê como sou boa, apesar da minha autonomia, da minha cultura, da minha inteligência, continuo a querer a gra d a r-t e », pa re cem cl am a r a s m i ú da s e m f io d e nta l. T en h o ca pa ci d ad e s que m e p e rm i te m v iv e r ou t ra co is a , m a s d e cid o

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 v iv e r a alie n açã o atrav és d as e stra tég ia s de sed u ção m a is eficazes. P o d e m o s e s p a n t a r - n o s , à p r i m e i r a v i s ta , c o m o f ac to d e a s r a p a r i g a s a d o p t a r e m c o m t a n t o e n t u s i a s m o o s a t r i b u  t o s d a m u l h e r - « o b j e c t o » , m u t il a re m o co r p o e e x i b i r e m - n o d e u m a m a n e i r a e s p e c t a c u l a r , a o m e s m o t e m p o q u e e s t a g e r a ç ã o j o v e m v a l o r i z a a « m u l he r r e s p e i t á v e l » , o u s e j a , q u e r e j e it a o se x o f e s ti v o . M a s a c o nt r a d i ç ã o é a p e n a s a p a r e nt e .  A s m u lh e re s e n v ia m a o s h o m e n s u m a m e n s a g e m t r a n q u i liz a d o r a : « N ã o t e n h a m m e d o d e n ó s .» V a le a p e n a u s a r t r a   je s d e s c o n fo r tá v e is e s a p a to s que e n tra v a m o a n d ar, p a r tir o n a r iz o u a u m e n t a r o p e it o , p a s s a r fo m e . N u n c a n e n h u m a s o c i e d a d e e x i g iu t a n t a s p r o v a s de s u b m i s sã o à s i m p o s i ç õ e s e s t é t ic a s , t a n t a s m o d if ic a ç õ e s c o r p o r a is p a r a f e m i n iz a r u m c o rp o . E is to a o m e s m o t e m p o q u e n u n c a n e n h u m a s o c i e  d a d e p e r m i ti u t a nt o a l iv r e ci r c u la çã o c o r p o r a l e i n t e l e ct u a l d a s m u l h e r e s . O s u b l i n h a r e x ce s s iv o d a f e m i n il id a d e p a r e c e u m a d e s c u l p a p e ra n te a p e rd a d a s p r e r r o g a t iv a s m a s c u l i n a s , u m a m a n e i r a d e n o s t ra n q u i li z a r m o s , t ra n q u i li z a n d o -- o s . « S e j a m o s liv r e s, m a s n ão d e m a s ia d o . Q u e re m o s jo g a r o j o g o , n ã o q u e r e m o s p o d e r e s l ig a d o s a o f a lo , n ã o q u e r e m o s m e te r m e d o a n in g u é m .» A s m u l h er e s a p o u c a m - se e s p o n  t a n e a m e n t e , d i s s i m u l a m o q u e a c a b a m d e a d q u i r i r , c o l o  c a m - s e n a p o s iç ã o d e s e d u t o r a s , r e in t e g r a n d o o se u p a p e l, d e u m a m a n e i r a t a n to m a i s o s t e n s i v a q u a n to s a b e m q u e , n o f u n d o , s e t r a t a a p e n a s d e u m s i m u l a c r o . O a c e s s o a p o d e  r es tr a d ic io n a l m e n t e m a s c u l in o s m i s tu r a - s e c o m o m e d o d a p u n i ç ã o . D e s d e s e m p r e q u e o s a i r d a g a i o l a f o i a c o m p a  n h a d o d e s a n ç õ e s b r u t a i s.

Não é tanto a ideia da nossa própria inferioridade que a s s im i lá m o s : f o s s e q u a l f o s s e a v i o l ê n ci a d o s i n st ru m e n t o s d e

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controlo, a historia quotidiana mostrou-nos que os homens não eram , po r natureza, superiores, nem ass im tão diferentes, das m ulheres. E a ideia de que a no ssa indep end ência é nefasta que está incru stad a em nós até ao osso. E os m eios de com u n i ca ç ã o s o ci a l e n c a r n i ça m - s e a r e t r a ns m i t i - l a : n o s ú l t i mo s  vin te an o s, q u an to s artigo s fo ram escrit o s so b re as m u lheres

que m etem m edo aos hom ens, as que estão sozinhas, punidas p e l a s s u a s a m b i çõ e s ou p e l a s s u a s s i n g u l a r i d a d e s ? C o mo s e s e r v iú v a , a b a nd o n a d a , s o z in ha e m t e m p o d e g u e r ra ou m a l  t r a ta d a f o s s e u m a i n ve n ção r e c e n te . T i v e m o s s e m p r e d e n o s desenvencilhar sem a ajuda de ninguém. Pretender que os homens e as mulheres se entendiam melhor antes dos anos s e te n t a é u m a fa l si d a d e h i s tó r ic a . C o n v i v ía m o s m e n os , n a d a m ais do que isso .

N a m e s m a o r d e m d e i d eia s , a m a t er n id a d e t o r n o u - s e a e xp e  riência fem inin a incontornável, valorizad a entre todas as o u t ra s: d a r v i d a é u m a c o i sa f a n t á st ic a . A p r op a g a n d a « p r ó -- m a t e r n i d a d e » r a ra m e nt e f o i t ão r u i d o s a . G o z a r co m a s p e s  soas, eis o método contemporâneo e sistemático do duplo  vín cu lo : « F a ç a m crian ças, é fa n tá stico , s e n t ir - s e -ã o m ais m u l he re s e m a i s r e a li za d a s d o qu e n u n c a » , m a s fa ça m - n a s numa sociedade em derrocada, onde o trabalho assalariado é um a cond ição de sobrevivência social, m as não é garantido a ninguém, sobretudo às mulheres. Dêem à luz nas cidades onde a ha bitaçã o é prec ária, onde a esco la se dem ite, onde as c r i a n ça s s ã o s u b me t i d a s à s a g r e s s õ e s me n t a i s ma i s p e r v e r  sas, através d a publicidad e, da televisão, da Internet, dos ve n  dedores de refrigerantes e seus con frades. Sem filhos, não há f e l i c i d a d e f e mi n i n a , m a s cr i a r mi ú d os e m c o n d i ç õ e s d e c e n tes será quase impossível. De qualquer modo, é preciso que

(17)

as m ulheres se sintam em xeque. S eja q ual for a tarefa a que se proponham , tem de se poder dem onstrar que estão a rea-lizá-la mal. Não há atitude correcta, cometemos certamente u m e r r o n a n o s s a e s c o l h a , s o m o s c o n s i d e r a d a s r e s p o n s á   v eis p or u m fra c a sso que, n a realid ad e, é colectivo e m isto . A s armas contra o nosso género são específicas, mas o método a p l i c a - s e a o s h o m e n s . U m b o m c o n s u m i d o r é u m c o n s u m i  dor insegu ro.

E s p a n t o s o e b r u t a l m e n t e r e v e l a d o r : a r e v o l u ç ã o f e m i n i s t a d o s a n o s s e t e n t a n ã o p r o d u z i u n e n h u m a r e o r g a n i z a ç ã o n a g u a r d a d a s c r i a n ç a s . E o m e s m o s e p a s s a c o m a g e s t ã o d o e s p a ç o d o m é s t ic o . T r a ba lh o s n ão p a g o s , p o r t a n to f e m i  n i n o s . P e r m a n e c e m o s n o m e s m o e s t a d o d e a r t e s a n a t o . N o s p l a n o s p o l í t i c o e e c o n ó m i c o , n ã o o c u p á m o s o e s p a ç o público, não nos apropriámos dele. Não criámos os infantá rios, nem os locais de guarda das crianças de que precisáva mos, não criámos os sistemas industrializados de serviços d o m é s t i c o s a o d o m i c í l i o q u e n o s t e r i a m e m a n c i p a d o . N ã o n o s e m p e n h á m o s n e s s e s s e c t o r e s e c o n o m i c a m e n t e r e n t á   v e is , n e m p a ra fa z e r fo rtu n a n e m p a r a p r e sta r u m s e rv iç o à n o s s a c o m u n i d a d e . P o r q ue ra zã o n in g u é m i n v en t o u o e q u i   v a le n te do Ik e a p a ra a g u a rd a de c ria n ç a s , o e q u iv a le n te do  M acint os h  p a r a a l i d a d a c a s a ? O c o l e c t i v o p e r m a n e c e u u m m o d o m a s c u l i n o . F a l t a - n o s s e g u r a n ç a q u a n t o à n o s s a l e g i ti m i d a d e d e n o s a p o d e r a r m o s d o p o l í ti c o - e i s to é o m í n i m o q u e p o d e m o s f az e r, te n d o e m c o n t a o t e r ro r f í s i c o e m o r a l co m q u e s e c o n f r o n t a a n o s s a c a t e g o r i a se x u a l . C o m o s e o u t ro s s e fo s s e m o c u p a r co r re c ta m e n t e d o s n o s s o s p r o  b l e m a s , e c o m o s e a s n o s s a s p r e o c u p a ç õ e s e s p e c í f i c a s n ã o f o s s e m a s s i m t ã o i m p o r t a n t e s . E s t a m o s e r r a d a s . E m b o r a

(18)

seja evidente que as mulheres, quando chegam ao poder, se

tornam exactamente tão corruptíveis e nojentas como os

homens, é inegável que certas considerações são

especifi-camente femininas. Descurar o terreno político como fize

mos traduz as nossas próprias reticências à emancipação.

É verdade que para lutar e ter êxito em política é preciso

sacrificar a nossa feminilidade, pois temos de estar dis

postas a bater-nos, triunfar, dar mostras de poder. É pre

ciso deixarmos de ser meigas, agradáveis, solícitas, é preciso

arrogar-nos o direito de dominar o outro, publicamente.

Pre scind ir da sua aprovação, exercer o poder frontalm ente,

sem requebro s nem d esculpas, pois raros serão os com peti

dores que vos felicitarão por os vencerem .

 A m a te rn id a d e to rn o u -se o asp ecto m a is g lo rific a d o da

condição feminina. É também, no Ocidente, o aspecto em

que o po de r da m ulher m ais cresceu. O que é verd ade d esde

há muito tempo para as filhas, esse domínio total da mãe,

t o r n o u - s e t a m b é m v e r d a d e p a r a o s f i l h o s . A m a m ã s a b e o

que é bom para o seu rebento, dizem-nos constantemente

em tod os os tons; ela seria intrinseca m ente portado ra desse

poder assombroso. Réplica doméstica daquilo que se orga

niza no colectivo: o Estado, cada vez mais vigilante, sabe

m elhor do que nós o que devem os com er, beber, fum ar, in ge 

rir, o que estamos aptos para ver, ler, compreender, como

devemos deslocar-nos, gastar o nosso dinheiro,

distrair--nos. Q uando Sarkoz y exige a po lícia na escola, ou Ro yal o

exército no s ba irros, não estão a introduzir na s crian ças um a

figura viril da lei, mas o prolongamento do poder absoluto

da mãe. Só ela sabe castigar, enquadrar, manter as crian

ças em e stado de engorda prolongada. Um E stado que se arvora

e m m ã e t o d o - p o d e r o s a é u m E s t a d o f a sc i z a n te . O c id a d ã o

(19)

de uma ditadura regressa ao estado de bebé: fraldado, ali

mentado e mantido no berço por uma força omnipresente,

que sabe tudo, que pode tudo, tem todos os direitos sobre

ele, para o seu próprio bem. O indivíduo é privado da sua

autono m ia, da sua faculdade de se engan ar, de correr riscos.

É para aí que caminha a nossa sociedade, possivelmente

porque o no sso tem po de grandeza ficou já m uito p ara trás;

estam os a reg ressa r a estádios de organ ização c olectiva que

infantilizam o indivíduo. N a tradição, os valore s viris são os

 v a lo re s da exp e rim en taçã o , da assu n çã o de risc o s, da ru p 

tura com o lar. Q uando a virilidad e das m ulheres é sistem a

ticam ente desprezada, entravada e apontada com o n efasta,

o s h o m e n s f a r i a m m a l e m r e g o z i j a r - s e o u s e n t i r - s e p r o 

tegidos. Com efeito, é a sua autonomia, tal como a nossa,

que é posta em causa. Numa sociedade liberal de vigilân

cia, o ho m em é um con sum idor com o outro qualquer, e não é

dese jável que tenh a muito m ais pode res do que um a mulher.

O corpo colectivo fun cion a com o um corpo ind ividua l: se o

sistema é neurótico, gera espontaneamente estruturas

auto-destrutivas. Quando o inconsciente colectivo, através des

ses instrum entos de poder que são os m eios de com unicação

social e a ind ústria do entretenim ento, sobrev aloriza a m ater 

nidade, não o faz por am or do fem inino n em por benevo lência

global. A m ãe inv estida de todas as virtude s é o corpo co lec

tivo que preparam os p ara a regressão fascista. U m po der que

um Estado doente concede é obrigatoriamen te suspeito.

Ouvimos hoje em dia homens a lam en tarem -se de que a em an

cipação fem inista os desviriliza. Se ntem no stalgia de um estado

anterior, em que a sua força se en raizava na op ressã o fem inina.

Mas esquecem-se de que essa vantagem política que lhes era

(20)

dada teve sempre um preço: os corpos das m ulheres só perte n cem aos homens como contrapartida de os corpos dos hom ens pertencerem à produção, em tempo de paz, e ao Estado, em tempo de guerra. O confisco do corpo das mulheres pro du z-se ao m esm o tem po que o confisco do corpo dos hom ens. A lém de alguns dirigentes, aqui não há ganh ado res.

O soldado mais conhecido da guerra no Iraque é uma mulher. Os Estados enviam agora os seus pobres para afren te de batalha. Os conflitos armados tornaram-se territ órios mistos. Cada vez mais, a polaridade na realidade fa z-se em função da classe so cial.

Os homens denunciam com virulência injustiças sociais ou raciais, mas mostram-se indulgentes e compreensivos quando se trata de dom inação m achista. M uitos deles preten dem explicar que o combate feminista é acessório, u m des porto de ricos, que não é oportuno nem urgente. E preciso ser imbecil, ou absolutamente desonesto, para considera r uma opressão insupo rtável e a outra plena de poe sia.

De igual modo, as mulheres teriam interesse em tomar maior consciência das vantagens do acesso dos homens a um a paternidade activa, em vez de tirar proveito do pod er que lhes é conferido politicam en te através d a exaltação do instinto m aternal. A m aneira com o o pai olha para a criança constitui um a revolução em potência. O s pais podem d esignadam ente m ostrar às filhas que elas têm um a existênc ia própria, fora do mercado da sedução, que podem ter força física, espírito de iniciativa e indepe ndê ncia, e va lorizá -las po r essa força, sem tem or de um castigo im ane nte. E po dem advertir os filhos de que a tradição m ach ista é um a arm adilha, um a forte restrição das em oções, ao serviço do Exército e do Estado. Co m efeito, a ¡virilidade tradicional é um a d ispo sição tão m utiladora com o

(21)

um a fixação n a fem inilidade. O que im plica, em con creto, ser u m h o m e m , u m h o m e m v e rd a d eir o ? R e p r e s s ão d a s e m o ç õ e s. Calar a su a própria sensibilidade. Ter vergon ha da sua fragili dade, da sua vulnerabilidade. D eixar a infân cia bruscam en te e d e u m a m a n e i r a d ef in i ti va : o s h o m e n s - c r i a n ç a n ã o t ê m b o a imp rensa. Ter angústias com o tam anh o da pila. S ab er fazer gozar as mulheres sem que elas saibam ou queiram in di car a ma neira de lá chegar. Não m ostrar fraqueza. Am ord aça r a s u a s e n s u a l id a d e . V e s t i r -s e c o m c o re s n e u t r as , u s a r s e m  p r e o s m e s m o s s a p a t o s p e s a d õ e s , n ã o b r i n c a r c o m o s c a b e  l o s, n ã o u s a r d e m a s i a d a s jó i as , n e m n e n h u m a m a q u i lh a g e m . Dever dar o prim eiro passo, sem pre. Não ter nen hu m a cultura sexual para melhorar o seu orgasmo. Não saber pedir ajuda. D e v e r s er c o ra jo s o m e s m o q ue n ão s e te n h a n e n h u m a v o n  tade de o ser. V alorizar a força seja qual for a su a natu reza. D ar provas de agressividade. Ter um acesso restrito à paternidade. Triunfar socialmente, para conseguir as melhores mulheres. T e m e r a s u a h o m o s s ex u a li d ad e , p o rq u e um h o m e m , u m v e r 

dadeiro, não deve ser penetrado. Não brincar com bonecas quando se é pequeno , contentar-se com carrinho s e arm as de plástico horrorosas. Não cuidar do seu corpo. Estar sujeito à brutalidade dos outros hom ens sem se queixar. Sa be r defen-der-se, mesmo que se seja pacífico. Estar cortado da sua feminilidade, simetricamente às mulheres que renunciam à s u a v i ri lid a d e , n ã o e m f u n ç ã o d a s n e c e s s i d a d e s d e u m a s i tu a  ção ou de um a personalidade, m as em função do que exige o corpo colectivo. Pa ra que, sem pre, as m ulheres d êem os filhos para a guerra, e os homens aceitem ir deixar-se matar para salvar os intere sses de três ou quatro im bec is de v ista s curtas.

Se não cam inharm os em direcção a esse d esconhecido que é a revolução do s géneros, conhecem os exactam ente para onde

(22)

 v a m o s regredir. Um E stad o to d o -p o d ero so que nos in fa ntiliz a e intervém em todas as nossas decisões, para nosso próprio bem , que - sob o pretexto de m elhor nos proteger - nos m an 

tém n a infância, na igno rância, no tem or do castigo e da exclu são. O tratamento de favor que até então estava reservado às m ulheres, com a vergonh a como instrum ento de ponta pará as m an ter no isolam ento, na passividade, no imo bilismo , poderia estender-se a todos. Compreender os mecanismos da nossa inferiorização e o modo como somos levadas a ser os seus m elhores vigilantes é com preender os m ecan ism os de controlo de tod a a pop ulação. O capitalismo é um a religião igualitarista,  já que nos subm ete a tod os e leva cad a um de n ós a sentir que

(23)

Nos Estados Unidos e noutros países capitalistas, as Nos Estados Unidos e noutros países capitalistas, as leis relativas à violação enquanto regras foram leis relativas à violação enquanto regras foram ini-cialmente pensadas para a protecção dos homens das cialmente pensadas para a protecção dos homens das classes altas, cujas filhas e esposas podiam ser classes altas, cujas filhas e esposas podiam ser ataca-das. O que acontecia às mulheres das classes das. O que acontecia às mulheres das classes traba-lhadoras era pouco importante para a justiça; é assim lhadoras era pouco importante para a justiça; é assim

qu

que foram muito poucos os homens brancos e foram muito poucos os homens brancos acusadosacusados pelos crimes sexuais que infligiram a estas mulheres. pelos crimes sexuais que infligiram a estas mulheres.

 a

(24)

IIM

M P O

P O S S Í V E L V I O L A

S S Í V E L V I O L A R E S

R E ST A M U

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11

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 Juulhlh o o dde e 1199 88 66 , , tteenn hho o dd eezzaasssseette e aann oo ss. . SS oo mm oo s s dd uuaas s rraa pp aa rriigg aa ss,, de

de mm ini-saia, eu ini-saia, eu comcom collantscollants às risca às risca s es e conversesconverses de cano baixo de cano baixo  v

 v eerrmm eellhh oo ss. . RR ee gg rree ssssaa mm oo s s dde e LL oo nn dd rreess, , oonndde e gg aa ssttáá mm oo ss, , ee m m dd iiss  cos,

cos, tintas para o cabeltintas para o cabelo o e diverse diversos os acessórioacessório s s cravejadcravejad os, tos, todoodo o

o dinheirdinheiro que o que títínhnh amam os de os de parte, parte, de de mm odo que estamodo que estam os os semsem c h e

c h et a t a p a r a a p a r a a v i a g e m v i a g e m d e d e v o lv o lt at a. V e m. V e m o - n o s o - n o s e d e s e j a me d e s e j a m o - no - n o s o s p a r ap a r a ir a

ir até Caté Ca lais à boleia, lais à boleia, foi precifoi preciso um so um dia intdia inteireiro, e po, e p arar a pagaa paga rr 0 ferry

0 ferry   tivemos de nos pôr a pedir ao lado das bilheteiras, de  tivemos de nos pôr a pedir ao lado das bilheteiras, de modo que quando chegamos é já noite cerrada. Durante a modo que quando chegamos é já noite cerrada. Durante a travess

travessia, ia, procurámoprocurámo s pessoas pessoa s s de de carcarro quro que e fosfos sem sem mm aisais do nosso género. Dois italianos, belos homens, que fumam do nosso género. Dois italianos, belos homens, que fumam marijuana, levam-nos até às portas de Paris. Agora estamos marijuana, levam-nos até às portas de Paris. Agora estamos numa estação de serviço, em plena noite, algures no bulevar numa estação de serviço, em plena noite, algures no bulevar periféri

periférico. Dco. D ecidimecidim os eos e sperar o nascer do dia sperar o nascer do dia e e o acordao acorda r r dosdos cam

cam ionistionistas, para encontraas, para encontrar r um um que nos lque nos levaeva sse sse dirdirectaectamm enteente aN

aN anan cycy . . VagueamVagueam os pelos pelo paro parque dque de ese estacitacionon amam ento ento e e depoisdepois p

p ela lela loja, não oja, não faz muito frifaz muito frio.o.  A

 A uu ttoo mm óó vveel l dde e ttrrêês s rruufifi aass, , bb rraann ccoo ss, , ttíípp iiccoo s s hh aabb iittaann ttees s ddooss subúrbios d

subúrbios d a a época, cervejas, época, cervejas, charros, charros, fafa la-la- se se de de ReRe naunau d, o d, o cancan to

torr. Com. Com o o são são trtrês, aês, ao princípio recusamo princípio recusam os ir os ir com ecom e les. Dãoles. Dão -se-se ao trabalho de serem verdadeiramente simpáticos, de dizer ao trabalho de serem verdadeiramente simpáticos, de dizer

1

(25)

 p

 p iiaa dd aa s s e e dd e e ffaallaar r ccoo nn nn oo sscc oo . . CC oo nn vv ee nn cc ee mm --nn oo s s dde e qquue e sseerriiaa

 estú

 estú

pido

pido

esperar a oeste de Paris, quando nos poderiam deixar aesperar a oeste de Paris, quando nos poderiam deixar a leste,

leste, ondond e seria e seria mm ais fácil arrais fácil arranjaanjar r uma uma boleiboleia. E lá entramoa. E lá entramo ss

no carro. Das duas, sou a mais viajada, a que fala mais alto,

no carro. Das duas, sou a mais viajada, a que fala mais alto,

a que decide que podemos ir. Porém, no momento em que as

a que decide que podemos ir. Porém, no momento em que as

portas se fecham, já sabemos que foi estúpido. Mas em vez de

portas se fecham, já sabemos que foi estúpido. Mas em vez de

gritarmos «deixem-nos sair» nos poucos metros em que isso

gritarmos «deixem-nos sair» nos poucos metros em que isso

ainda é possível, cada uma de nós pensa com os seus botões

ainda é possível, cada uma de nós pensa com os seus botões

que temos de nos debcar de paranoias e de ver violadores por

que temos de nos debcar de paranoias e de ver violadores por

to

todo o lado. Já há m

do o lado. Já há m ais

ais de urn

de urna

a hora que

hora que fal

falam

am os

os com

com eles; têm

eles; têm

um simples ar de calões, divertidos e nada agressivos. Depois

um simples ar de calões, divertidos e nada agressivos. Depois

havia aquela proximidade entre as coisas indeléveis: corpos

havia aquela proximidade entre as coisas indeléveis: corpos

de homens num espaço fechado de onde não podemos sair,

de homens num espaço fechado de onde não podemos sair,

onde estam

onde estam os junta

os juntam

m ente com el

ente com eles

es,

, m

m as nã

as não somo

o somo s sem

s sem elhan

elhan

tes a eles. Jamais semelhantes, com o nosso corpo de mulheres.

tes a eles. Jamais semelhantes, com o nosso corpo de mulheres.

 J Jaam

m aaiis

s eem

m sseegguurraan

n ççaa, , jjaa m

m aaiis

s aas

s m

m eessm

m aas

s ddo

o qquue

e eele

le ss. . N

N óó ss

som

som os do sexo d

os do sexo do me

o me do, da

do, da hum

hum il

ilhação, o s

hação, o sexo al

exo alheio.

heio. É sobre

É sobre

essa exclusão do nosso corpo que se constroem as virilidades;

essa exclusão do nosso corpo que se constroem as virilidades;

é nesses momentos que se tece a sua famosa solidariedade

é nesses momentos que se tece a sua famosa solidariedade

masculina. Um pacto que assenta na nossa inferioridade. Os

masculina. Um pacto que assenta na nossa inferioridade. Os

seus riso

seus riso s de

s de gajos, en

gajos, en tre eles, o

tre eles, o riso do

riso do m

m ais

ais forte, em núm

forte, em núm ero.

ero.

Enquanto isso se passa, eles fingem não saber bem o que

Enquanto isso se passa, eles fingem não saber bem o que

sse passa. Dado que estam

e passa. Dado que estam os de m

os de m ini-

ini-sai

saia, um

a, um a c

a com

om os cabe

os cabe 

los verdes e a outra com os cabelos cor-de-laranja, temos

los verdes e a outra com os cabelos cor-de-laranja, temos

obrigat

obrigatori

oriam

am ente de

ente de «foder como

«foder como coel

coelhos», pel

hos», pelo

o que a

que a vv iola

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ção que s

o que se perspectiva não é

e perspectiva não é bem u

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violação. C

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e com a m

a m aioria das vi

aioria das violações, imagino

olações, imagino eu

eu. Suponho

. Suponho que,

que,

depois,

depois, nenh

nenh um

um destes três

destes três ti

tipos

pos se i

se irá

rá reconhecer como v

reconhecer como v io

io 

lador. Com efeito, o que eles fizeram foi outra coisa. Os três

lador. Com efeito, o que eles fizeram foi outra coisa. Os três

com um

com um a carabina contra duas rapari

a carabina contra duas raparigas a quem bateram

gas a quem bateram at

atéé

fazê-las sangrar: nad

(26)

não quiséssem os ser violad as, teríam os preferido m orrer, ou

teríamos conseguido matá-los. Aquelas a quem isso acon

tece, do ponto de vista dos agressores —eles lá se arranjam,

de um a m an eira ou de outra, para acreditar nisso a , desde que

escapem com vida é porque o ocorrido não lhes desagradou

tanto quanto isso. É a única explicação que tenho para este

paradoxo: desde a publicação de

Baise-moi,

 tenho encontrado

mulheres que me vêm contar coisas do género «fui violada,

com tal idade, em tais circunstân cias». Isso re pe tiu-se a po nto

de se tornar incómodo, e num primeiro momento cheguei a

pergun tar-m e se estariam a mentir. Faz parte da n o ssa cul

tura, desde a Bíblia e da história de José no Egipto, a palavra

da mu lher que acusa o hom em de violação ser antes de m ais

uma palavra de que duvidamos. Por fim, acabei por admitir

que isso acontece constantemente. Eis aqui um acto unifi

cador, que liga todas as classes, sociais, etárias, de beleza e

até de person alidad e. Sen do assim , como explicar que a parte

contrária quase nunca seja ouvida: «violei fulana, em tal dia,

em tais circunstân cias»? Porque os hom ens co ntinuam a fazer

aquilo que as mulheres aprenderam a fazer durante séculos:

cham ar a isso outra coisa, bordar, am an ha r-se, sobretudo não

utilizar

a

  palavra para descrever o que fizeram. Eles «força

ram um pouco» uma rapariga, foi uma «brincadeira levada

um pouco longe demais», ela estava «demasiado toldada»

ou era uma ninfomaníaca que fingia não querer: mas se isso

se pôd e fazer, foi porque, no fundo, a rap ariga con sentiu. Q ue

tenha sido preciso bater-lhe, a m eaçá-la, jun tarem -se vários

para a forçar e ela choramingar antes, durante e depois não

altera nada: na maior parte dos casos, o violador arranja-se

com a sua consciência, não houve qualquer violação, apenas

uma galdéria que não se assume e que só foi preciso saber

(27)

convencer. A m eno s que isso tam bém seja difícil de aguentar, para a outra pa rte. Não sabem os, eles não falam .

 A v erd ad e é que só os p sicó p a tas graves, vio lad o re s em série que retalham as ratas a golpes de cacos de garrafas, ou pedófilos que ata cam rapariguinhas, são identificado s na p ri são. Porque os hom ens con denam a violação . M as o que eles fazem é sem pre outra coisa.

D iz-se m uitas vezes que a porno grafia aum enta o número de violações. A sserç ão h ipócrita e absurda. Com o se a agres são sexual não passasse de uma invenção recente e f ossem precisos film es p ara a introduzir nos espíritos. Em com pen

sação, o facto de os hom ens franceses n ão irem p ara a guerra desde os ano s se ssen ta e o conflito argelino aum entam s egu  r am e n t e a s v i o l a ç õ e s « c i v is » . A v i d a m i li ta r e r a u m a o c a s iã o , que se apresentava periodicamente, de praticar a violação colectiva, «p or um a boa cau sa». Trata-se em prim eiro lugar de um a estra tégia de gue rra que contribui para a virilização do grupo que a comete ao mesmo tempo que enfraquece,

hibri-dizando-o, o grupo adversário, e isto desde que existem as guerras de conquista. Deixem de nos querer impingir que a i violencia sexu al co ntra as m ulheres é um fenóm eno recente  ypu e sp ecífico de u m grupo qualq uer.

No s prim eiros ano s, evitava-se falar nisso. P assado s três anos, no bairro d a C roix Ro usse, um a rapariga de quem gosto muito foi violada em casa, em cima da m esa da cozinha, por um tipo que a seguiu da rúa. No dia em que soube disso, trabalhava numa pequena loja de discos, a Attaque Sonore, na v elha Lyon. Tem po m aravilho so, sol, grande lum inosidade de Verão que se espraiava ao longo das paredes das ruas estreitas da cidade antiga, velha s ped ras de cantaria polidas, nos brancos

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amarelecidos e alaranjados. O cais do Saône, a ponte, as fachadas das casas. Sempre me impressionou aquela beleza, sobretudo n esse dia. A violação não pe rturba qualquer tran  quilidade, está já inse rida na cidade. Fech ei a loja e fui dar um a  volta. A q u ilo revo lto u -m e m ais do que q u an do n o s aco n teceu a nós. Atravé s da sua história, com preendi que era um a coisa que apan háv am os e de que não nos con segu íam os livrar. Que nos fora inocu lada. A té então, estava con ven cida de que tinha aguen tado o golpe, que tinha a pele co riácea e m ais que fazer na vida do que permitir que três labregos m e traum atizassem . Só quando vi até que ponto eu equiparava a su a violaçã o a um acontecimento após o qual nada seria como dantes, aceitei ouvir, po r ricochete, o que sentia por nó s pró prias. Fe rida de um a guerra que tem de se travar no silêncio e na obscu ridade. Eu tinha vinte anos quando aquilo lhe aconteceu, e não q u e r i a o u v i r f a l a r d e f e m i n i s m o , q u e c o n s i d e r a v a n ã o s e r s u f i c i e n t e m e n t e  punk rock   e e s t a r d e m a s i a d o i m p r e g n a d o d e b o a s i n t e n ç õ e s . D e p o i s d a a g r e s s ã o d a m i n h a a m i g a , m u d e i de o p in i ã o e p a r t ic i p e i n u m f i m - d e - s e m a n a d e fo r  m a ç ã o d e e s c u t a d e S t o p V i o l , u m s e r v i ç o t e l e f ó n i c o p e r  m a n e n t e , p a r a f a la r n a s e q u ê n c i a d e u m a a g r e s s ã o , o u o b t e r i n f o r m a ç õ e s j u r í d i c a s . A q u i l o m a l t i n h a c o m e ç a d o , e e u e s t a v a j á a r e s m u n g a r c o m i g o p r ó p r i a : p o r q u e h a v e m o s d e e s t a r a a c o n s e l h a r a l g u é m a a p r e s e n t a r q u e i x a ? I r t e r c o m a b ó f ia n ã o s e r v i a d e n ad a , a m e n o s q u e f o s s e p a r a o b t e r u m a i n d e m n i z a ç ã o d a c o m p a n h i a d e s e g u r o s . P e n s a v a i n s t i n t i   v a m e n te que d ec la ra r u m a v io la ç ã o n u m a e sq u a d ra de p o lí c i a e r a c o r re r u m r i s c o d e s n e c e s s á r i o . A l ei d o s c h u i s é a l e i d o s h o m e n s . D e p o i s , u m a d a s p a r t i c i p a n t e s e x p l i c o u : « N a m a i o r p a r t e d o s c a s o s , u m a m u l h e r q ue fa l a d a s u a v i o l a ç ã o c o m e ç a p o r lh e c h a m a r o u tr a c o i s a . » C o n t in u e i a r e s m o n e a r

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interiormente: «Tretas.» Eis o que me parecia altamente improvável: por que razão elas não diriam a palavra, o que é que esta que está a falar sabe d isso? Se calhar pen sa que som os todas iguais. De repente, contenho o meu impulso: o que fiz até ago ra? A s raras vezes - na m aior parte do s caso s já bem entornada —em que quis falar disso, terei dito a pala  v ra? N u n ca. A s p o u cas vezes em que p ro cu rei co n tar o que se p a s s o u , c o n t o r n e i o t e r m o « v i o l a ç ã o » : « a g r e d i d a » , « e n r o  l a d a » , « a b u s a d a » , « u m a a l h a d a » , whatever ... A qu estão é que, enquanto ela não for cham ada pelo seu nom e, a agressão perde a sua especificidade, pode confundir-se com o utras agre ssões, como ser assaltada , ir presa, ser detida preven ti  v am en te o u e sp a n ca d a . E sta estratég ia da m io p ia tem a su a utilidade. Com efeito, quando chamamos violação a u ma  v io lação , to d o o ap arelh o de v ig ilâ n c ia das m u lh eres en tra em acção: queres que se saiba o que te aconteceu? Queres que toda a gente olhe para ti como um a m ulher a quem isso aconteceu? E, de todo s os m odos, como pu deste sair viva de u m a c o i s a d e s s a s s e n ão f o s s e s u m a r e m a t a d a g a ld é r ia ? Uma mulher que prezasse a sua dignidade teria preferido m atar-se. A circunstância de ter sobrevivido con stitui, em si m esm a, um a prova contra m im. O facto de ficar m ais aterro  rizada com a ideia de ser morta do que traumatizada com o t r u c a - t r u c a d o s tr ê s id i o t a s a p r e s e n t a v a - s e c o m o u m a c o i s a m on struosa , algo de que nun ca tinha ouvido falar, em p arte nenhum a. Felizmen te que, na m inha qualidade de  punk   pra-' ficante, podia prescindir da minha pureza de mulher como deve ser. Co m efeito, tem os de ficar traum atizadas co m um a  v io laçã o , h á u m a série de m arcas v isív e is que é p re c iso r e s  peitar: medo dos homens, da noite, da autonomia, nojo do sexo e outras graças. O uvimos repetir o m esm o em tod os os

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tons: é grave, é um crime, os homens que te amam, se sou

berem , vão ficar doidos de dor e de raiva (a viola çã o tam bém

é um diálogo privado, onde um homem declara aos outros

homens: fodo as vossas mulheres à bruta). Mas o conselho

mais sensato, por toda uma série de razões, continua a ser

«guarda isso para ti». Ou seja, sufoca entre as duas

injun-ções. V ai-te lixar, minh a puta.

De mod o que se evita a palavra. Por ca usa de tudo o que ela

envolve. No cam po das agredidas, tal com o no do s a gressores,

fala -se com rodeios. E um silêncio cruzado.

Nos primeiros anos após a violação, surpresa desagradável:

os livros não poderão fazer nada por m im, coisa que nunca m e

tinha acontecido. Quando, por exemplo, em 1984, fui inter

nada durante alguns meses, a minha primeira reacção, ao

sair, foi a de ler.

0 Pavilhão das Crianças Loucas

a,

One Flew Over 

The Cuckoo'sNest, W henlW asF ivelKilledM yself,

 e ensa ios sobre

psiquiatria, internamento, vigilância, adolescência. Os livros

estavam ao meu lado, faziam-me companhia, tornavam a

coisa possível, dizível, partilhável. Prisão, doença, maus-tra

tos, drogas, aban don os, depo rtações, todos os traumas têm a

sua literatura. M as este traum a crucial, fundam ental, defini

ção prim eira da fem inilidade, «aqu ela que se pode possuir por

arromb am ento e que deve ficar sem d efesa», e sse traum a não

entrava na literatura. N enhu m a mulher, depois de ter passado

pela violação, recorreu às palavras para fazer disso um tema

de romance. Nada, nem que guie, nem que acompanhe. Isso

não tran sitava para o dom ínio do simbó lico. É extraordinário

que, entre mu lheres, não se d iga nad a às rapar igas, não ocorra

2 Valerle Valere, O Pavilhão das Crianças Loucas, trad. Estela Cruz Ferreira, Lisboa, Via Editora,

(31)

a m ais pequena transm issão de saber, de dicas de sobreviven  cia, de conselhos práticos simples. Nada.

Finalmente, em 1990, vou a Paris para ver um concerto das Limbomaniacs. No TGV, leio a revista Spin.  Nela, urna certa Camille Paglia escreve um artigo que me invectiva e que de inicio me fez rir, em que desc reve o efeito que lhe pr o  v o cam os futeb oli stas no cam po, fascin an tes b estas de se xo, plenos de agressividade. Começava o artigo a falar de toda aquela raiva guerreira e de como lhe dava prazer tal exibi ção de suor e de coxas m uscu ladas em acção. O que, pouco a pouco, a ia levando para o assunto da violação. Não m e lem  bro dos termo s exactos, m as dizia essen cialm en te o seguinte: «E um risco inevitável, é um risco que as mu lheres devem ter em conta e aceitar correr se quiserem sair de casa e andar á  vo ntad e. S e isso te aconte cer, lev a n ta -te , dustyourself e passa

à frente. Se te aterroriza, então o m elhor é ficares em casa d a mãezinha a arranjar as unhas.» Aquilo, na altura,

revoltou--m e. N áu sea de defesa, e, nos m inutos que se seguem, ná u sea de ssa coisa da grande calm a interior: estou apardalada. G are de Lyon, era já de noite, telefone i à Caro line, a am iga de sempre, antes de me pirar para norte em direcção à sala da rúa Ordener. Falei-lhe, toda excitada, daqu ela italiana am e ricana, e disse-lhe que tinha de ler isto p ara m e dar a sua op i nião. A Caroline ficou tão ap ardalada com o eu.

S

Depois, nunca mais nada ficou compartimentado, afer rolhado, como antes. Pensar pela primeira vez a violação de um a m aneira nova. A té agora, o assunto tinha permanecido tabu, estava de tal modo minado, que ninguém se permitía

dizer nada além de «que horror» e «p ob res raparigas ».

Pela primeira vez, alguém valorizava a faculdade de uma mulher se recompor, em vez de discorrer indulgentemente

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sobre o florilégio dos traum as. Desv alorização da vio laçã o, da sua importancia, da sua ressonância. Isso não anulava nada do que se tinha passado , não apagava n ada do que tínham os aprendido nessa noite.

Cam ille Paglia é sem dúvida a m ais controversa das fem i nistas am ericanas. Ela sugeria que se co nsiderasse a violação

como um risco que era preciso correr, inerente à nossa con dição de mulheres. Uma liberdade inaudita, de desdrama-tização. Sim, tínhamos estado lá fora, num espaço que não

era para nós. Sim, tínhamos vivido, em vez de morrer. Sim, estávam os de m ini-s aia sozinhas, sem um gajo conn osco, de noite, sim, tínhamos sido parvas, e fracas, incapazes de lhes dar cabo da fronha, fracas como as raparigas aprendem a ser quando as agridem. Sim, aquilo tinha-nos acontecido, mas pela prim eira vez com preendíamos o que ha víam os feito: s a í ramos para a rua porque em casa do papá e da mam ã não acon tecia nada de interessante. Assumimos o risco e pagámos o preço, e em vez de termos vergonha de estarm os viva s, p od ía m os decidir voltar a pô r-no s de pé e recom po r-nos o melhor possível. Paglia permitia que nos im aginássem os com o gu er reiras, já não responsáveis pessoalmente por algo que está  v am o s m esm o a pedir, m as v ítim a s v u lgares do que seria de esperar que nos acontecesse quando somos mulheres e nos queremos arriscar a sair do casulo. Ela era a prim eira a reti rar a violação do pe sad elo absoluto, do não dito, do que é p re  ciso que nunca ocorra, tran sform and o-a num a circunstância política, em algo que devíamos aprender a aguentar. Paglia mudava tudo: já não se tratava de negar nem de sucumbir, m as sim de viver com isso.

 V erão de 2 0 0 5 , F il ad élfia , ten ho d ia n te de m im C am ille P a g l i a , q u e e s t á a se r e n t r e v i s ta d a p a r a u m d o c u m e n t á r io .

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 A cen o que sim com a c abeça, en tu siasm ad a com o que ela diz: «Nos anos sessenta, nos campi  universitários, as raparigas estava m fech ada s nos dorm itórios às dez da noite, enquanto os rapazes faziam o que queriam. Quando perguntámos: “Porquê essa diferença de tratamento?”, explicaram-nos: "Porque o mundo é perigoso, arriscam-se a ser violadas.” E nós respondemos: “Então dêem-nos o direito de nos arris carm os a ser violadas.” »

Entre as reacções que o relato da minha história suscitou, houve a seguin te: «E continuaste a pedir boleia, depo is?» Não tinha dito nada aos meus pais, com medo de que me fechas sem a sete chaves, para m eu bem. Sim, voltei a pedir boleia. M eno s coquete, m eno s airosa, mas voltei. A té outros punks m e darem a ideia de viajar de comboio a apanhar multas sem as pagar, não conhecia outra m ane ira de pod er ir a um concerto em Toulouse, na quinta-feira, e a outro em Lille, no sábado. E, nessa época, ir a concertos era o mais importante de tudo.  Ju stifica v a que s e corressem riscos. N ad a p od ia ser p ior do que

ficar no m eu quarto, arredada da vida, enquanto se passa vam tantas co isas lá fora. C ontinuei, pois, a chegar a cidades onde não con he cia ninguém , a ficar na estação até ela fechar para lá pa ssa r a noite, ou a dorm ir no corredor de entrada dos prédios à espera do comboio do dia seguinte. A com portar-m e como i se não fosse u m a mulher. E, em bora nunca m ais tivesse sido  vio la d a, a rrisq u e i-m e a sê -lo cem vezes depois, só por p a ssa r muito tempo cá fora. O que vivi, nes sa época, com es sa idade, era insub stituível, bem m ais intenso do que me ir encerrar na escola a aprender a ser obediente ou do que ficar em casa a  ver revistas. Foram os m elh ores anos da m in h a vida, os m ais ricos e retum bantes, e encontrei os recursos suficientes para aguentar toda s as chatices assoc iadas.

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Mas evitei escrupulosamente contar a minha historia

porque conhecia antecipadamente o julgamento: «Ah, por

que depois co ntinuaste a ped ir boleia; se isso não te refreou,

é porque deve s ter go stado .» C om efeito, nisto da violação , é

preciso sem pre provar que não se estava de acordo. A culpab i

lidade está como que sujeita a um a atracção m oral não e nu n

ciada, que faz que ela se incline sempre para o lado daquela

que foi pe netrad a e não p ara aquele que agrediu.

Quand o o film e

Baise-moi

 foi retirado de cartaz, muitas mulhe

res —os hom ens não ousara m pron un ciar-se sobre este aspecto

- fizeram q uestão de afirmar publicamen te: «Q ue horror, não

nos queiram convencer de que a violência é uma solução para

a violação.» Ah não? Nos jornais nunca se fala de rapari

gas, sozinhas ou em grupo, que arrancam pilas com os dentes

durante as agre ssões, ou que depois vão p rocurar os atacantes

par a lhes dar cabo do canastro ou lhes chegar a roup a ao pêlo.

Por agora, isto só existe nos filmes realizados por homens.

 A Ultima Casa à Esquerda,

 d e Wes Crav en,

Vingança de Uma Mulher,

de Ferrara,

 Mulher Violada,

 de M eir Zarchi, por exe m plo. Os três

filmes com eçam por violações m ais ou m eno s ignóbeis (aliás,

mais mais do que menos). E, numa segunda parte, descrevem

pormenorizadamente as vinganças ultra-sanguinárias que as

mulheres exercem sobre os seus agressores. Quando homens

encenam person agens de m ulheres, raramente é com o

objec-tivo de tentar compreender o que elas suportam e sentem

enquanto mulheres. É sobretudo um a mane ira de encenar a sua

sen sibilidad e de hom ens, nu m corpo de mu lher. Voltarei a isso

quando falar da pornografia, que segue a me sm a lógica. Nestes

três filmes, vê-se, pois, como os homens reagiriam, no lugar

das mulheres, perante a violação. Banho de sangue, de uma

(35)

 vio len cia desum ana. A m ensagem que nos transm item é clara:

por que razão não se defendem vocês de uma maneira mais

brutal? De facto, é espanto so não reagirm os d esse mo do. Uma

operação política ancestral, implacável, ensina as mulheres a

não se defenderem. Como de costume, temos aqui um caso

de duplo vínculo: dizer-no s que não há nad a pior e, ao m esm o

tempo, que não nos devemos defender nem vingar. Sofrer e

não poder fazer mais nada. É uma espada de Dâmocles entre

as coxas.

Mas há mulheres que sentem a necessidade de repetir

que a violência não é solução. No entanto, no dia em que

os ho m ens com eçarem a ter medo de que lhes cortem a pila

a golpes de xis-acto quando abusam de uma mulher, fica

rão bruscamente a saber controlar melhor as suas pulsões

«masculinas» e a perceber o que quer dizer «não». Nessa

noite, teria preferido ser capaz de me abstrair daquilo que

foi inculcado no m eu sexo e esg an á-los a todos, um a um , em

 vez de v iv e r com o u m a p e sso a que n ão tem co ragem p ara se

defend er, porque é mu lher, a vio lên cia não é o seu território

e a integridad e física do corpo de um ho m em é m ais im po r

tante do que a de um a mulher.

Du rante a violação, tinha no bolso do m eu

body

 vermelho e

branco um a nav alha de ponta e m ola, de cabo negro cintilante,

mecânica impecável, lâmina fina mas longa, afiada, polida,

brilhante. Uma navalha de que eu sacava com a maior das

facilidades nesses tempos globalmente confusos. Tinha-me

afeiçoad o a ela e, à m inha man eira, aprendera a u sá-la . N essa

noite, ficou no meu bolso, e o único pensamento que tive a

respeito daq uela lâm ina foi: oxalá não a encon trem e não se

pon ham a brincar com ela. N em me pa ssou pela cabeça u ti

lizá-la. De sde o m om ento em que percebi o que nos estava a

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acontecer, tive consciencia de que eles eram os mais fortes. Uma questão mental. Mais tarde, convenci-me de que, se a questão tivesse sido eles quererem roubar-nos os blusões, a minha reacção teria sido diferente. Eu não era temerária, mas bastante inconsciente. Porém, nesse momento preciso,

senti-me mulher, miseravelmente mulher, como nunca o ha via sentido, como nun ca me viria a sentir depois. Defen der

a minha pele não me permitia ferir um homem. Creio que teria reagido da mesma maneira se houvesse apenas um rapaz contra mim. Era a perspectiva da violação que fazia outra vez de m im um a mulher, alguém e ssencialm ente vu l nerável. A s m eninas são am estradas para nunca fazerem m al aos hom ens, e as mulheres são cham adas à pedra sem pre que infringem essa regra. N inguém gosta de saber até que ponto é cobarde. N inguém tem vontade de o ficar a saber n a carne. Não estou zangada comigo por não ter ousado matar um deles. Estou zangada com um a sociedade que me educou sem  ja m a is m e e n sin ar a ferir u m h o m em se ele m e abrir as p ern a s à força, enquanto essa m esm a sociedade me inculcou a ideia de que a violação era um crim e de.que. nunca m e iria re co m  por. E estou absolutamente furiosa por, perante três homens

e um a carabina, e presa num a floresta de onde seria im p o ssí  vel fugir a correr, me sentir ain d a hoje culp ada po r n ão te r tido

coragem de nos defender com u m a pequena n avalha.

Finalmente, um que encontra a faca e m ostra -a ao s outros, sinceramen te admirado por eu não a ter usado. «E ntão é po r que ela estava a gostar.» Para dizer a verdade, os hom ens igno  ram a que ponto o d ispositivo de castração Idas rap ariga s é imp arável, a que ponto tudo está escrupu losam ente o rganizado para garantir que eles vencem, sem arriscar muito, quando atacam as mulheres. Acreditam, inocentemente, que a sua

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