• Nenhum resultado encontrado

sua literatura M as este traum a crucial, fundam ental, defini ção prim eira da fem inilidade, «aqu ela que se pode possuir por

No documento Teoria King Kong - Virginie Despentes (páginas 30-34)

arromb am ento e que deve ficar sem d efesa», e sse traum a não

entrava na literatura. N enhu m a mulher, depois de ter passado

pela violação, recorreu às palavras para fazer disso um tema

de romance. Nada, nem que guie, nem que acompanhe. Isso

não tran sitava para o dom ínio do simbó lico. É extraordinário

que, entre mu lheres, não se d iga nad a às rapar igas, não ocorra

2 Valerle Valere, O Pavilhão das Crianças Loucas, trad. Estela Cruz Ferreira, Lisboa, Via Editora,

a m ais pequena transm issão de saber, de dicas de sobreviven  cia, de conselhos práticos simples. Nada.

Finalmente, em 1990, vou a Paris para ver um concerto das Limbomaniacs. No TGV, leio a revista Spin.  Nela, urna certa Camille Paglia escreve um artigo que me invectiva e que de inicio me fez rir, em que desc reve o efeito que lhe pr o  v o cam os futeb oli stas no cam po, fascin an tes b estas de se xo, plenos de agressividade. Começava o artigo a falar de toda aquela raiva guerreira e de como lhe dava prazer tal exibi ção de suor e de coxas m uscu ladas em acção. O que, pouco a pouco, a ia levando para o assunto da violação. Não m e lem  bro dos termo s exactos, m as dizia essen cialm en te o seguinte: «E um risco inevitável, é um risco que as mu lheres devem ter em conta e aceitar correr se quiserem sair de casa e andar á  vo ntad e. S e isso te aconte cer, lev a n ta -te , dustyourself e passa

à frente. Se te aterroriza, então o m elhor é ficares em casa d a mãezinha a arranjar as unhas.» Aquilo, na altura, revoltou-

-m e. N áu sea de defesa, e, nos m inutos que se seguem, ná u sea de ssa coisa da grande calm a interior: estou apardalada. G are de Lyon, era já de noite, telefone i à Caro line, a am iga de sempre, antes de me pirar para norte em direcção à sala da rúa Ordener. Falei-lhe, toda excitada, daqu ela italiana am e ricana, e disse-lhe que tinha de ler isto p ara m e dar a sua op i nião. A Caroline ficou tão ap ardalada com o eu.

S

Depois, nunca mais nada ficou compartimentado, afer rolhado, como antes. Pensar pela primeira vez a violação de um a m aneira nova. A té agora, o assunto tinha permanecido tabu, estava de tal modo minado, que ninguém se permitía

dizer nada além de «que horror» e «p ob res raparigas ».

Pela primeira vez, alguém valorizava a faculdade de uma mulher se recompor, em vez de discorrer indulgentemente

sobre o florilégio dos traum as. Desv alorização da vio laçã o, da sua importancia, da sua ressonância. Isso não anulava nada do que se tinha passado , não apagava n ada do que tínham os aprendido nessa noite.

Cam ille Paglia é sem dúvida a m ais controversa das fem i nistas am ericanas. Ela sugeria que se co nsiderasse a violação

como um risco que era preciso correr, inerente à nossa con dição de mulheres. Uma liberdade inaudita, de desdrama- tização. Sim, tínhamos estado lá fora, num espaço que não

era para nós. Sim, tínhamos vivido, em vez de morrer. Sim, estávam os de m ini-s aia sozinhas, sem um gajo conn osco, de noite, sim, tínhamos sido parvas, e fracas, incapazes de lhes dar cabo da fronha, fracas como as raparigas aprendem a ser quando as agridem. Sim, aquilo tinha-nos acontecido, mas pela prim eira vez com preendíamos o que ha víam os feito: s a í ramos para a rua porque em casa do papá e da mam ã não acon tecia nada de interessante. Assumimos o risco e pagámos o preço, e em vez de termos vergonha de estarm os viva s, p od ía m os decidir voltar a pô r-no s de pé e recom po r-nos o melhor possível. Paglia permitia que nos im aginássem os com o gu er reiras, já não responsáveis pessoalmente por algo que está  v am o s m esm o a pedir, m as v ítim a s v u lgares do que seria de esperar que nos acontecesse quando somos mulheres e nos queremos arriscar a sair do casulo. Ela era a prim eira a reti rar a violação do pe sad elo absoluto, do não dito, do que é p re  ciso que nunca ocorra, tran sform and o-a num a circunstância política, em algo que devíamos aprender a aguentar. Paglia mudava tudo: já não se tratava de negar nem de sucumbir, m as sim de viver com isso.

 V erão de 2 0 0 5 , F il ad élfia , ten ho d ia n te de m im C am ille P a g l i a , q u e e s t á a se r e n t r e v i s ta d a p a r a u m d o c u m e n t á r io .

 A cen o que sim com a c abeça, en tu siasm ad a com o que ela diz: «Nos anos sessenta, nos campi  universitários, as raparigas estava m fech ada s nos dorm itórios às dez da noite, enquanto os rapazes faziam o que queriam. Quando perguntámos: “Porquê essa diferença de tratamento?”, explicaram-nos: "Porque o mundo é perigoso, arriscam-se a ser violadas.” E nós respondemos: “Então dêem-nos o direito de nos arris carm os a ser violadas.” »

Entre as reacções que o relato da minha história suscitou, houve a seguin te: «E continuaste a pedir boleia, depo is?» Não tinha dito nada aos meus pais, com medo de que me fechas sem a sete chaves, para m eu bem. Sim, voltei a pedir boleia. M eno s coquete, m eno s airosa, mas voltei. A té outros punks m e darem a ideia de viajar de comboio a apanhar multas sem as pagar, não conhecia outra m ane ira de pod er ir a um concerto em Toulouse, na quinta-feira, e a outro em Lille, no sábado. E, nessa época, ir a concertos era o mais importante de tudo.  Ju stifica v a que s e corressem riscos. N ad a p od ia ser p ior do que

ficar no m eu quarto, arredada da vida, enquanto se passa vam tantas co isas lá fora. C ontinuei, pois, a chegar a cidades onde não con he cia ninguém , a ficar na estação até ela fechar para lá pa ssa r a noite, ou a dorm ir no corredor de entrada dos prédios à espera do comboio do dia seguinte. A com portar-m e como i se não fosse u m a mulher. E, em bora nunca m ais tivesse sido  vio la d a, a rrisq u e i-m e a sê -lo cem vezes depois, só por p a ssa r muito tempo cá fora. O que vivi, nes sa época, com es sa idade, era insub stituível, bem m ais intenso do que me ir encerrar na escola a aprender a ser obediente ou do que ficar em casa a  ver revistas. Foram os m elh ores anos da m in h a vida, os m ais ricos e retum bantes, e encontrei os recursos suficientes para aguentar toda s as chatices assoc iadas.

Mas evitei escrupulosamente contar a minha historia

No documento Teoria King Kong - Virginie Despentes (páginas 30-34)