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CAPÍTULO 3 SEMIÓTICA: A TEORIA DE TODAS AS LINGUAGENS

3.1 Categorias Fenomenológicas

As categorias não devem ser interpretadas como entidades mentais, mas como modos de operação do que Peirce chama de pensamento-signo, que tem seu locativo na consciência, explicita Santaella (1996, p. 101). Como já vimos, dependendo da circunstância, uma categoria poderá ser mais proeminente em um fenômeno do que as outras, nos seus aspectos respectivos de qualidade, da relação ou da representação. Explicitar esses níveis é passo inicial para fundamentar qual dessas categorias é predominante em apreensões de nível subliminar.

A Primeiridade é aquilo que é sem referência a nenhuma outra coisa. Ela é presentidade simples e positiva, já que “ela é como é” (CP 5.44), independente de quaisquer relações. É caracteristicamente livre, sem um anterior determinando-lhe as ações (CP 1.302). Primeiridade significa mera aparência, é sem partes, é inanalisável, é instantânea. Idéias

típicas dessa categoria são as qualidades com que os fenômenos se apresentam e as qualidades de sentimento que despertam. Para Peirce (CP 5.44), “a qualidade de sentimento é a verdadeira representação psíquica da primeira categoria do imediato como ela é em sua imediaticidade, do presente em sua presentidade direta, positiva”. Santaella (2001, p. 43) define a pura qualidade de sentimento:

aquilo que dá sabor, tom, matiz à nossa consciência imediata, mas é também paradoxalmente justo aquilo que se oculta ao nosso pensamento, porque para pensar precisamos nos deslocar no tempo, deslocamento que nos coloca fora do sentimento mesmo que tentamos capturar. A qualidade da consciência, na sua imediacidade, é tão tenra que não podemos sequer tocá-la sem estragá-la.

O que se pode depreender dessas afirmações é que o sentimento como qualidade é aquilo que se dá na consciência, na sua imediaticidade, ou seja, como explicita Santaella (1999, p. 45), “qualidades não são pensamentos articulados, nem sensações, mas partes constituintes da sensação e do pensamento”. Daí sua característica de imediaticidade, pois não existe passado ou futuro, apenas o instante presente na sua presentidade. Nada mais oculto à mente consciente, pois o presente é justo aquilo que não permanece, desvanece. É um lapso de tempo, mera possibilidade de ser.

Neste nível de apreensão dos fenômenos, há uma suspensão do pensamento. É a consciência, porosa, disponível para aquilo que a ela se apresenta. É imediata, anterior a qualquer pensamento. É indeterminada, vaga e imprecisa, um mero estado de quase ser. É neste sentido que Peirce (CP 1.357) se refere ao primeiro absoluto, pois o primeiro “não pode ser articuladamente pensado [...] toda descrição dele deve ser falso em relação a ele”.

A Primeiridade diz respeito aos elementos básicos que constituem todo o fenômeno. São experiências monádicas (do grego monás, substância simples) são tais como são, absolutamente sem relação com nenhuma outra coisa (VALENTE; BROSSO, 1999, p.71). Pois a partir do instante em que, decorrente de um mínimo esforço sequer, já se torna possível unir essa qualidade de sentir a uma sensação, estamos diante de um segundo. É a sensação de ser atingido. A realidade desse tipo pressupõe o desmembramento, ou seja, a consciência de polaridade. Peirce define que qualquer sensação, por exemplo, já é secundidade, porque a qualidade de sentimento – característica de primeiridade -, sendo experenciada, já não é mais puro sentir, e sim um sentimento de comoção (CP 1.322).

A Secundidade está presente à consciência, é o elemento de conflito entre uma ação e uma reação. Peirce (1980, p. 90) entende por conflito a ação mútua entre duas

coisas sem relação com um terceiro - ou medium – e sem levar em conta qualquer lei da ação. Essa idéia de segundo está presente nas idéias de causa e efeito. É a experiência de um esforço, independente de qualquer propósito. Um acontecimento que se força contra o pensamento, levando a uma mudança na consciência é um estado de esforço bruto e se coloca como um outro que se impõe na relação com o primeiro e um segundo sem qualquer mediação, explica Pires (1999, p. 23). É o elemento irredutível da resistência que envolve a idéia de mudança e resistência à mudança. Enquanto a Primeiridade consiste na qualidade de algo que pode ser, pois é meramente potencialidade, possibilidade, a secundidade é “uma ocorrência, é algo que realmente acontece” (CP 7.538) e acontece uma única vez.

Seu caráter é essencialmente dual, envolve qualquer relação diádica sem envolver, entretanto, a idéia de um terceiro, embora possa se conformar a uma lei (CP 8.330; 5.66). É proeminente na idéia de realidade, visto que o real insiste, forçando a um reconhecimento de alguma coisa outra distinta de uma criação da mente. O conhecimento se dá, assim, nesse embate experiencial entre esforço e resistência. A consciência dessa categoria compreende a experiência envolvendo expectativa. Desse modo, Secundidade é dominante em relações que envolvem esforço, decisão, descoberta e surpresa. É a categoria na qual a percepção se baseia e envolve sempre “dois objetos que reagem um sobre o outro, [...] uma dupla consciência de um ego e de um não-ego agindo ao mesmo tempo” (CP 5.52; 5.55). Qualquer sensação, por exemplo, já é secundidade, porque a qualidade de sentimento, já experenciada, não é mais puro sentir.

Santaella (1999, p. 47) esclarece que, em todo fenômeno há uma qualidade (primeiridade), que, para ganhar uma existência, tem de, necessariamente, incorporar-se num existente, numa matéria. É nesta corporificação que se dá a Secundidade. Ao passo que, se houver uma aproximação entre um primeiro e um segundo por meio de uma síntese intelectual, já se tem uma experiência de terceiro.

A Terceiridade é a categoria que se caracteriza pela mediação. Enquanto a primeiridade envolve a idéia de começo e a secundidade de fim, a terceiridade é meio. Peirce (1980, p. 92) entende por terceiro “o medium, ou o vínculo ligando o primeiro absoluto e o último. Diferentemente da consciência imediata – primeiridade, e da consciência da polaridade - secundidade, esta é a consciência da síntese (PEIRCE, 2003, p. 16). Esse elemento terceiro da cognição, que não tem o caráter de sentimento nem polaridade, é a consciência de um processo. Há sempre nessa categoria um elemento de inteligência, seu traço diferenciador das demais. É ela que imprime, na teoria peirceana, o traço de

racionalidade como autocontrole. Terceiridade é a síntese intelectual que resulta da aproximação de um primeiro e um segundo. Essa síntese correspondente à camada da inteligibilidade ou pensamento em signos, ou seja, a forma como representamos e interpretamos o mundo. Na passagem a seguir, Santaella (1999, p. 54) vem confirmar a base em que se planta a teoria dos signos:

Aí estão enraizadas na fenomenologia as bases Semióticas, pois é justo na terceira categoria fenomenológica que encontramos a noção de signo genuíno ou triádico, assim como é nas segunda e primeira categorias que emergem as formas de signos não genuínos, as formas quase-sígnicas da consciência e da linguagem.

Neste ponto, necessário se faz dar uma atenção maior para a noção de consciência na concepção peirceana. Este conceito se distancia da psicologia, isto é, nada tem a ver com o sentido dado à consciência pela visão psicológica. A base conceitual de consciência está fundada na lógica da operação da linguagem, ou seja, é na consciência que se opera a passagem do signo apreendido resultando em outro signo (SANTELLA, 1996, p. 30). Todo fenômeno que se apresenta à mente produz na consciência determinado efeito, como foi mencionado anteriormente. Peirce (2003, p. 16) sintetiza: “Sentimento imediato é a consciência do primeiro; o sentido da polaridade é a consciência do segundo, e consciência sintética é a consciência do terceiro ou meio”. A noção de consciência em Peirce é original.