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Carta de Catharina Deschamps Steffen para neta Emilia (Bila) em 1944 O texto foi traduzido por Atília Viera da Rosa Fonte gentilmente cedida por Iza Viera da Rosa Grizard, em entrevista realizada em 17 de

Tensões e conflitos

30 Carta de Catharina Deschamps Steffen para neta Emilia (Bila) em 1944 O texto foi traduzido por Atília Viera da Rosa Fonte gentilmente cedida por Iza Viera da Rosa Grizard, em entrevista realizada em 17 de

pelegos e depois um lençol . Esse, nas dobras que faziam eram pretas de pulgas.31

A tradição oral guardou um outro relato referente aos encontros e desencontros entre o alemão José Suiter com tropeiros lageanos, no início do século XX, no porto de Florianópolis. João Suiter*2, seu filho, conta que seu pai emigrou da Alemanha para a Argentina, onde trabalhou alguns anos como técnico industrial. Posteriormente, migrou para o Brasil, aportando em Florianópolis. Logo que chegou, presenciou a seguinte cena:

O comprador, para concluir o negócio, pediu um recibo e o tropeiro tirou um fio de seu bigode dizendo: Toma, este é o meu recibo. 33

O jovem operário alemão, José Suiter, interpretou os termos da negociação como um sinal de probidade e honradez entre o comprador e o vendedor. Suas conclusões tinham como base as regras de um mundo capitalista, de onde ele próprio originava. Lealdade e honestidade foram traduzidas como expressões sinônimas e, com base nisto, decidiu que iria viver em Lages. Seu filho recorda:

Meu pai pensou: Se um fio de bigode vale um recibo, ele [o tropeiro] deve vir de uma terra de gente muito honesta.34

31 Ibidem (grifos meus)

32 Maria Luiza Suiter Aquino. Entrevista citada.

33 Correio de Lages, Lages, 25 de outubro de 1997, p. 10. 34 Correio de Lages, Lages, 25 de outubro de 1997, p. 10.

No entanto, os negocios feitos no fio do bigode não pressupunham, necessariamente, honestidade. Os termos desta negociação pressupunham uma lealdade35, mantida por uma questão de honra entre as partes. A quebra do termo poderia custar a própria vida daquele que desonrou o contrato.

Conflitos sociais decorrentes de diferentes visões de mundo também foram relatados por Waltrud Hoechel que recorda sobre os modos de sua mãe que, por vezes, causaram estranheza nas vias de Lages:

Na rua, a mamãe falava com todo mundo e naquele tempo mulher nenhuma falava com nenhum outro homem que não fosse seu marido. M as a mamãe conversava com os amigos

do meu pai que encontrava na rua.36

O modo de ser de sua mãe nem sempre foi aceito e compreendido por sua família e, particularmente, por seu marido, que não se relacionava bem com os comentários e olhares reprovadores:

O meu pai às vezes ralhava com ela. Ele dizia: “Você é expansiva demais, você pensa que está em Berlim! Você está aqui, mima cidadezinha do interior! ”37

38

Segundo a filha, a mãe tinha idéias bastante avançadas para aquela época. No entanto, o que se configura são as tensões, conflitos e embates entre pessoas que portavam

35 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 38. 36 Waltrud Hoechel Marques. Entrevista citada.

37 Waltrud Hoechel Marques.Entrevista citada. 38 Waltrud Hoechel Marques. Entrevista citada.

universos culturais distintos, onde os mesmos gestos ou comportamento eram lidos e interpretados de formas diversas. Se para Maria Brandes Hoechel, mãe de Waltrud, cumprimentar e conversar com os conhecidos do seu marido na rua era um ato normal, para muitos homens e mulheres da sociedade lageana, tal ato era, muitas vezes, motivo de escândalo. Maria era natural de Blumenau e havia estudado em Berlim, onde tomou contato com uma sociedade liberal, diferente de Lages.

Segundo Licurgo Costa, no princípio do século XX o lageano tinha um ar severo, quase irado39 e, por vezes, estranhava quem se comportasse de diferente modo, apresentando uma expressão descontraída e sorridente na rua. Sobre isto comenta que:

Havia em Lages uma eminente fam ília que o destino politico fe z mudar-se para Florianópolis e depois para o Rio, e que reaparecia pelo seu velho burgo, com freqüência mas, sobretudo nos tempos de eleição. Nosso pai, que era um lageano típico e homem de lúcida inteligência, boa cultura humanística e razoável senso de humor, disse-nos um dia, ao voltar a casa, depois de encontrar um deles na Rua: ‘Essa gente mudou muito, e para pior. Cumprimenta os outros rindo’.40

Algumas fotos de mulheres lageanas do mesmo período confirmam a rudeza e austeridade, conferindo-lhes uma fisionomia quase masculina. Tal postura se relaciona com os códigos de sociabilidade vigentes para os lageanos, mas que nem sempre eram cumpridos, como observa Licurgo Costa:

39 COSTA, Op. Cit p. 534.

Uma tia nossa, bonita, moça, simpática, alegre, tirou uma fotografia, no famoso 'retratista ’ porto-alegrense, Caligari. O fotógrafo apanhou-a quando esboçava um sorriso, por certo belíssimo. Um primor da arte fotográfica.41

O sistema normativo da sociedade lageana, por mais estruturado que fosse, não eliminou as possibilidades de escolhas conscientes da jovem senhora. No entanto, sua postura entrou em conflito com os valores da coletividade local:

Pois quando o Caligari mandou entregar a encomenda, o marido sumariamente a confiscou porque ‘era uma vergonha que uma mulher séria tirasse retrato sorrindo’. O fa to fo i muito comentado, ou melhor, cochichado na fam ília toda, e ninguém ousava dizer que o meu tio enérgico estava errado.42 As memórias das experiências que envolveram as posturas e condutas destas duas mulheres, uma luso-brasileira e a outra teuto-brasileira, remetem às tensões e conflitos sociais que envolveram as questões de gênero em Lages, o que sem dúvida merece um estudo específico futuramente.

As relações de tensões e conflitos abordadas até aqui adquiriram uma significação ainda maior, ao meu ver, no universo da religiosidade que alemães e seus familiares encontraram em Lages. Inicio, pois, considerando que até onde se pode averiguar, os alemães e seus descendentes que se fixaram em Lages eram católicos e luteranos, sendo que alguns destes últimos, por falta de ministração de sua igreja, migraram para a Igreja Presbiteriana como se verificará. Afirma Licurgo Costa:

41 Ibidem, p. 535. 42 Ibidem, p. 535

Entre os imigrantes alemães que se estabeleceram em Lages no último quarto do século passado, alguns eram filiados a Igreja Luterana, mas a ausência de pastores desta confissão

levou a maioria a afastar-se dela.43

No entanto, evangélico-luteranos, na maioria alemães, chegaram em Lages bem antes do fim do século XIX. Em 1866, foi realizado um recenseamento nesta cidade, que era composta até o momento das paróquias de Nossa Senhora dos Prazeres, São João de Campos Novos, Nossa Senhora do Patrocínio dos Baguaes e Nossa Senhora da Conceição de Curitibanos. Este levantamento verificou a existência de uma população de 9356 pessoas, que estavam divididas em 9 J17 católicos e 239 não católicos. E possível que estes últimos fossem evangélicos-luteranos, já que havia 260 estrangeiros vivendo na região investigada e os imigrantes africanos não eram computados.44 Três anos mais tarde:

Em 11 de abril de 1869, Frederico Kelem, Carlos Schmites, Frederico Enesco, João Rüenster e Artur Roepling, requereram à Câmara 30 palmos de terras, junto ao cemitério Público, para fazerem o deles, visto que sendo

protestantes, não poderiam ser enterrados no Cemitério

Municipal. A Câmara concedeu.45 (sic.)

Até então, os cemitérios eram administrados pela Igreja, que acumulava funções do Estado. Através da união da Igreja Católica Apostólica Romana ao Império do Brasil, os

43 COSTA, Op. Cit. p.421

44 Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de Santa Catarina, na sessão ordinária, pelo