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Foto 9 Apresentação do espetáculo Boneco Neco e Maria Flor no Teatro Apolo

5 PERCURSO FORMATIVO: CAMINHOS TRILHADOS

5.4 FORMAR(SE) E EDUCAR(SE) PELOS SENTIDOS

5.4.1 O que causa angústia na caminhada

[...] a sociedade de uma maneira geral, né? Que tá ficando cada vez mais, assim, burra – eu não queria usar essas palavras, mas assim, cada vez mais conservadora, sabe? Cada vez mais assim.... porque, assim, quando eu comecei a entender a vida, Valéria? Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos. Quando eu comecei a entender o que era que eu estava fazendo no mundo, teve o “golpe” de Dilma, quando eu comecei a entender que o lugar da sala de aula é o meu lugar enquanto gente, nesse momento, que é o lugar que eu tô produzindo existência, aí tem um projeto de “uma escola sem partido” que quer silenciar a gente, que quer tirar filosofia, história, arte, cultura, música, dança, literatura, quer tirar isso da gente, quer colocar a gente numa neutralidade epistemológica dentro de sala de

aula, que eu não sei como é que a gente consegue fazer isso. Porque isso é uma coisa pensada por gente que não tá dentro de sala de aula. E, e, assim, é, é, é, eu tenho muito medo sabe, dessas coisas, dá, dá uma vontade de dizer mesmo assim: “oh, pare o mundo que eu quero descer!” (Bernardo, entrevista, p. 18).

“Eu fico angustiada, né? Eu fico angustiada de não poder fazer mais nada do que eu faço. [...] a vontade é sempre tá aprendendo alguma coisa, sabe? De, como eu disse, a vontade agora é fazer uma aula de, de violão [riso] pra ver se ajuda eles [alunas e alunos] de alguma forma” (Madona, entrevista, p. 20). Esta fala é tão forte para Madona que ela

anteriormente traz outra similar, a qual foi usada, em exemplo, na sua apresentação.

Por outro lado, Renato narra que para ele é “deprimente” não ter um espaço “estético”, prazeroso, organizado e limpo para trabalhar. Então logo que foi lotado na escola conseguiu uma sala para “chamar de sua” (Marina Lima) e arrumou do seu jeito para esperar a turma. Contudo, é “angustiante o professor, chegar e precisar fazer isso”:

Então, a primeira coisa que eu fiz pra poder fazer um trabalho diferenciado com os meninos foi o seguinte: eu assumi uma sala, eu consegui com a direção uma sala, como eu ia trabalhar os dois horários. É, de manhã o meu, o meu horário efetivo e à tarde acumulação, então, eles me cederam uma sala para eu ficar o dia todo. Então, como eu ia ter essa sala o dia todo, eu é.... me reuni com algumas pessoas que eu até contratei pra poder fazer uma limpeza nessa sala, pra poder pintar essa sala. E aí a gente fez essa limpeza, pintou essa sala; não tava ainda com a turma nesse período (Renato, entrevista, p. 5).

Outro motivo de inquietação para Renato é:

Então, essa, essa união desse momento das minhas formações e eu enquanto pedagogo, me sinto... não me sinto, ainda, né? Como eu já falei totalmente pleno, porque eu não consegui, ainda, colocar a arte enquanto eixo, principal, mas, é enquanto pedagogo eu consigo me sentir mais à vontade por ter essas minhas formações (Renato, entrevista, p. 23 grifo nosso).

[...] quando falo da questão de você “tá muito técnico” é no momento que eu tava muito preocupado em atender essas demandas e aí, eu terminava sempre dando prioridade na semana a dar aula de Português, sempre dava prioridade a dar aula de Matemática. Aí, ia esquecendo até, um pouco, a Geografia, a História, a Ciências, ficavam em segundo plano e as, a Arte mais ainda. Tá muito técnico me angustia. E, aí, atender essas datas, atender essa demanda, atender o, o que estava sendo trabalhado como o mote do ano letivo. É, é, isso traz uma, uma questão técnica que termina fazendo você se enquadrar ali numa coisa que você tá querendo trazer qualidade praquilo, mostrar qualidade naquilo, você termina produzindo apenas por produzir. Aí, isso dificultava muito. E, aí tinha momentos que eu chegava e dizia: não, eu não vou fazer do jeito que vocês querem não, vou fazer o, a minha, o que eu estou produzindo agora, vai se encaixar nisso aí que vocês querem, porque o que eu tô produzindo com os meninos tem um sentido e esse sentido vai ter que atender, vocês queiram ou não, né? Porque aí se eu tivesse toda vez que mudar pra atender eu terminava diminuindo essa qualidade que eu queria. (Renato,

Além, de precisar alterar o planejamento, a forma como é cobrada as demandas da Secretaria de Educação, aflige Renato.

[...] é cobrado... através mesmo de: ‘oh! Tal dia...’ de documentos internos, né? Que, ‘oh! Estamos comunicando..., queremos professor que o senhor é... fique ciente de que tal data tem tal evento, o senhor precisa ter uma produção pra esse evento. É... olhe, o evento tem que falar sobre isso’, é isso que tem que ser feito. [...] Claro, que pra alguns professores isso solucionava uma lacuna, né? Uma lacuna, tem uma lacuna de: como o meu planejamento não atende, aí, com o lego vai atender. Então, eu como tinha o meu planejamento todo preenchido, sabendo do que eu tava querendo fazer, aí eu tinha dificuldade pra sair do meu planejamento que era algo que eu queria muito ser, fazer de uma forma diferenciada e atender o que eu tava querendo, de trabalhar a criatividade, que era de trabalhar a, a autonomia dos alunos e, aí, tinha que sair pra encaixar nessa estrutura, né?

(Renato, entrevista, p. 28).

Apesar de a docência ser prazerosa, a carga de trabalho é causticante porque, normalmente, as (os) docentes têm mais de uma jornada de trabalho. Além de lidarem com espaços inapropriados e infraestruturas inadequadas.

[...] e, tem problema do professor, também, né? Porque você é um professor. Eu mesmo sou um professor.... eu trabalho os dois horários, tenho duas turmas de alfabetização, [...] e quando eu falo nessa minha prática eu tô tentando mesclar essas duas turmas, eu olho pra essas duas turmas, né? A turma da tarde é do, é um terceiro ano, que é uma turma que é cheia de conflitos porque as crianças estão é naquela fase já despertando pra outras coisas, sabe? Saindo dos oito e entrando nos nove, dez anos. É uma turma que tem crianças que repetiram várias vezes o terceiro ano, sabe? É uma turma que, que as crianças, em sua grande maioria, não têm uma rotina em casa, vai dormir de duas horas da manhã, se acorda de meio dia, na hora de vir pra escola e muitas vezes não almoça, e dorme na sala de aula, sabe? Quando não, fica irritado porque está com fome e irrita os outros colegas e irrita o professor. Então, assim, é, é, a escola é esse lugar é do lúdico, da aprendizagem, do prazer, da alegria, mas é esse lugar, também, da, da obrigação, sabe? É esse lugar também que, que é entediante, é entediante. A escola é entediante pra, pra criança. É, a escola que a gente tá, sabe? Com a estrutura arquitetônica que a gente tem, sabe? (Bernardo, entrevista, p. 17).

“Eu não dou conta”. Assim Bernardo externa sua angústia pelos “problemas do social, do entorno da escola”, da comunidade circunvizinha à escola, da demanda com que as

crianças chegam, que acontecem ali, ao seu lado.

[...] e, muitas vezes, apesar de eu falar muito bonito assim sobre a minha prática do ensino de artes, mas, muitas vezes para conter a disciplina na sala de aula, eu passo um texto mesmo para as crianças escreverem, sabe? E, assim, eu não tenho é, é, é.... não tenho vergonha de dizer isso, não é? Porque eu vou ser um professor é menor, um hipócrita ou, ou, sabe? Ou reduzido por conta disso. Ou quero me espelhar em outra prática, não. É porque eu não dou conta, assim, como muitos colegas meus não dão conta, eu também não consigo dar conta. Tem muita coisa dentro da sala de aula que eu não consigo dar conta. “Tio, o meu pai foi preso hoje e minha mãe ficou chorando eu nem, a gente nem sabe se ele vai comer na cadeia e vai ficar com fome”, sabe? Eu não dou conta disso. Eu não consigo dar conta porque a gente tem, assim, tenta conversar com a criança sobre que isso é problema de adulto, as coisas vão se resolver, né? Que não é pra ela tá pensando naquilo dali, que ela é criança e

o lugar da criança é o lugar do brincar, é o lugar do estudar é o lugar de se divertir. Mas, isso tá atravessando ela, sabe? Do traficante que foi assassinado e que ela foi lá e viu ele em cima da moto, sabe? E, é todas essas coisas estão atravessando… (Bernardo, entrevista, p. 18 grifo nosso).

A questão inerente à polivalência aparece nos relatos de todas(os). Como expressa Bernardo.

Ser pedagogo, ser homem, ser professor alfabetizador de crianças é muito desafiador, mas, eu acho que, que é, que tem sido mais desafiador na minha prática, enquanto professor é a questão da polivalência. É, ser, ter que dar conta de uma série de, de, de disciplinas que acabam é se, se desdobrando em uma série outra muito maior de conteúdos que a gente precisa dar conta de um tempo didático, que é extremamente curto, não é? (Bernardo, entrevista, p. 37).

Renato indica, tanto na narrativa oral como na narrativa escrita, que a cobrança do sistema educacional através da Secretaria de Educação, com suas interferências nos planejamentos organizados por ele, é motivo de angústia.

Ainda estou longe de atingir esse objetivo [arte como eixo principal], mas também, sei que interferências do sistema funcional da educação pública dificulta essa minha implementação. Através das exigências de ter que apresentar projetos comprados para dar visibilidade a Secretaria de Educação Municipal, para atender às demandas desses projetos, para atender aos escritos do Diário Online, e pela eterna falta de recursos e estruturas de atendimento tanto para o professor quanto para os alunos (Renato, narrativa escrita, p. 4).