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Até aqui, descrevi os contextos amplos e os debates mais gerais do contexto de transformações sociais e políticas atravessado no contexto paulistano, nos anos 80 e 90, que oferecem condições estruturais para a aparição da figura jurídica dos CEDECAs. Elaborei em seguida, de modo minimalista, algumas das questões que me parecem contextualizar a atuação destas figuras na mediação entre as periferias da cidade (e seus habitantes) e o sistema de garantias públicas e políticas dos direitos da cidadania. Agora, trata-se de verificar como, no plano local, a percepção destas condições se desenrolou, para culminar na materialização do Centro de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente “Mônica Paião Trevisan”, entidade de história singular, que completa 17 anos em 2008.

Nascido no Parque Santa Madalena, o CEDECA foi conseqüência de mais de uma década de ação direta da militância católica das Comunidades Eclesiais de Base, inspiradas desde os anos 70 pela teologia da libertação. Reconstruo em linhas muito gerais parte dessa trajetória, especialmente desde 1983, quando Valdênia, que viria a ser a principal liderança

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Rancière (2005b) trata deste paradoxo recente dos direitos humanos, entre de um lado atuar frente a sociedades que os deslegitimam, e de outro funcionar como argumento para a ingerência sobre populações inteiras, como no caso das intervenções “humanitárias” do governo americano e das agências multilaterais em zonas de interesse econômico.

da entidade, ingressava na ação social e militante. Pela forma como ela própria narra esse período, percebe-se o que todos os militantes e funcionários da organização admitem, ou seja, que a trajetória da entidade se entrelaça na dela própria. Logo nos primeiros dias de pesquisa de campo me esforcei, então, por obter uma entrevista focada na sua trajetória de vida.

A família de Valdênia migrou de Minas Gerais para São Paulo em 1972 quando ela, uma das filhas do meio, tinha 6 anos de idade. A história é parecida com a de muitas outras famílias, como as narradas nos capítulos anteriores, que chegam a São Paulo atraídas pelas promessas de emprego do “milagre econômico”. Mas como “as promessas eram maiores do que a realidade”, nas palavras de Valdênia, ela relata uma infância marcada por privação material, que levou a família até a margem de expansão da cidade. A privação era associada a um ordenamento moral cristão, significado de forma muito específica depois de mais de duas décadas de militância política (Valdênia tinha 39 anos em 2005, data desta entrevista):

Minha mãe vem de origem afro, meu pai indígena. A cultura indígena tem muito isso, meu pai pregava sempre humildade, pé no chão... meu pai nunca permitiu que nós déssemos esmola no portão. Sempre convidava a pessoa pra entrar, pra se sentar, então sempre isso nos ajudou muito.[Valdênia].

A presença da Igreja foi marcante em sua formação desde a família, e era nos preceitos de ação social das paróquias de Sapopemba que estavam as origens das palavras, encadeadas com fluidez, que eu gravava nessa primeira entrevista, nos fundos do prédio do CEDECA. Adolescente, Valdênia passou a freqüentar as Comunidades Eclesiais de Base do bairro.

Naquela época os espaços que tinha para a população se organizar eram as Comunidades Eclesiais de Base, então era no espaço da igreja, que a gente se reunia pra aprender a ler, pra conseguir asfalto, pra rezar, pra velar algum morto, pra fazer festa, e aí educada sempre numa relação muito comunitária, não obstante a pobreza material, a gente foi aprendendo, com o auge da Teologia da Libertação, que precisava viver uma vida cristã encarnada na realidade. Muitos dos movimentos sociais da região de Sapopemba, falo desta porque é aqui que a gente está, nasceram mesmo do movimento das Comunidades Eclesiais de Base. E eu também sou fruto desse movimento. [Valdênia].

Com 14 anos eu fui auxiliar uma irmã, uma freira na favela do Jardim Elba. Eu sempre gostei de estudar, gostava de ler, e aí pra ler alguma coisa tinha que ir pra casa dos padres e das freiras, porque os meus pais são semi-analfabetos e, eles não tinham dinheiro nem pra comer, imagina

pra ter acesso a um jornal, uma revista. Mas ao menos essas coisas boas na casa de padre tem, as revistas, e isso dava um certo acesso. (...) Logo a gente percebeu que já tinha meninos e meninas usuários de droga, meninos envolvidos na vida criminal etc. [Valdênia].

Valdênia já começava a atuar na ajuda às famílias e suas crianças, que viviam em favelas próximas à sua casa. Anos 80, e a região já era marcada pelo surgimento de um “mundo do crime”, no entanto bastante mais delimitado como universo de práticas e sociabilidade que atualmente, e controlado naquele momento tanto pela violência policial quanto pelas milícias privadas de extermínio, pagas por famílias e comerciantes locais, investidos da tarefa de pacificar seu território205. Valdênia interessa-se por conhecer e intervir junto a esta população de crianças e adolescentes. É neste momento inicial de seu trabalho que Valdênia conhece Mônica Paião Trevisan, que daria nome ao CEDECA a partir de sua fundação.

Nós começamos essa história mesmo com a Mônica, que é o nome do CEDECA hoje. A Mônica ela foi gestada dentro da penitenciária, o pai preso. (...) A mãe também [tinha sido presa], mas sai primeiro que o pai, radicaliza, vira crente, acha uns companheiros, que depois a menina sofre abuso. O pai preso, e a Mônica acaba na rua. E nessa época tinha uma história de ‘correr a carioca’, que é a mesma coisa que ‘correr a curra’, ou seja, se a menina pisasse na bola (...) juntava uma roda de meninos, e ela era violentada sexualmente por todos eles. E a gente descobriu isso porque a Mônica apareceu na região, (...) eu levei ela pra casa dos meus pais, onde eu morava. (...) E aí ela contou, e a gente começou todo um diálogo. E a gente sempre sonhava: olha, poderia ter um lugar pra defender [esses adolescentes]. (...) E ela acabou, antes da gente conseguir mesmo montar a casa, ela acabou tendo que ir morar com um rapaz, que era envolvido [com a prostituição infantil] também. Ela resolveu denunciar. Aí já naquela época uma garota de 15 anos. (...) Aí ela um dia depois foi pega e cortada em três pedaços. E mandaram avisar a gente onde estava a cabeça, onde estava o corpo, onde estavam as pernas. E aí em memória dela que a gente resolveu preservar isso. [Valdênia].

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Para os militantes, os grupos de extermínio dos anos 80 geravam uma sensação de terror maior do que a que se vivencia hoje, apesar de agora as estatísticas de violência, ainda que em queda, sejam muito maiores do que as do período. A gente vivia assustado [nos anos 80], era uma época, apesar de hoje ter a violência, a gente parece que perde menos hoje a garotada, sabe? Naquele tempo a gente perdia muito. E muito trágico assim, menino que você ia embora à tarde, que você atendia no projeto, no outro dia tava com a cabeça decepada dentro de um saco de lixo, nesses escadões aqui, né? [Juliana]. A gente foi vendo assim o quanto de adolescentes que eram assassinados pelos famosos “justiceiros”, (...) grupos assassinos, naquela época era justiceiro, depois veio [o nome] grupos de extermínio. [Valdênia].

A radicalidade da experiência destes adolescentes, de idade próxima à de Valdênia no período, mobiliza a jovem católica a integrar-se de corpo e alma na militância. Estuda ao mesmo tempo em que participa das Comunidades de Base, e na atuação junto a estes adolescentes do bairro vão se desvelando alguns dos circuitos percorridos por eles. Crianças e adolescentes de Sapopemba circulavam também pelo centro da cidade, compondo distintos mercados de trabalho infantil, em geral ilícitos: agenciamento de crianças e adolescentes tanto para pequenos furtos e pedidos de esmola, quanto e principalmente de meninas para a exploração sexual.

Todo mundo sempre usou o slogan “meninos de rua”: meninos, meninos; mas se a maior parte da população é menina, é mulher, é feminino, onde é que estavam as meninas das famílias das favelas com as quais a gente já trabalhava? Aí fomos pesquisar, e aí a gente percebeu que na verdade havia muitas meninas da região na prostituição infantil. As famílias, mesmo percebendo a mudança de hábito das filhas, precisavam dos recursos financeiros. (...) [Por outro lado] aquelas que queriam sair [da prostituição], as famílias já não aceitavam mais que elas ficassem o tempo todo na família, com os novos costumes, com os novos vícios, vício de cigarro, álcool, essas coisas. [Valdênia].

Estes circuitos, fundamentalmente, retiravam as adolescentes de suas casas nas favelas das periferias, supostamente para trabalhar como empregadas domésticas, em casas de família. Levadas para o centro da cidade, e distantes da proteção familiar, ficava mais fácil convencê-las a ingressar nas redes de exploração sexual comercial. Valdênia passa a atuar diretamente com algumas delas no centro da cidade, na Praça da Sé e na Avenida São João. Decide-se então por encampar a questão de gênero e demonstrar sua especificidade no debate sobre o “menor”. Evidentemente, a politização da questão se fazia no interior de todo um campo movimentista. Em 1987, data em que estas histórias se desenrolavam, a Campanha da Fraternidade da CNBB tratava justamente do tema do “menor”206, e impulsionava a visibilidade dos discursos de proteção. A região de Sapopemba traz o tema da adolescente mulher e de suas privações. Neste tema, direciona suas ações diretas às meninas em situação de rua e exploração sexual. Mas o problema não era fácil de

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Para mais informações sobre a Campanha da Fraternidade, inclusive os temas e lemas de cada ano, desde 1986, ver http://www.cf.org.br.

solucionar, e a ação encontrava dificuldade na tentativa de reinserir estas meninas em suas famílias.

Alguém pra sair da rua não é um toque de mágica, precisa de um espaço pra fazer essa transição. (...)[Em] 1987 nós montamos a casa para abrigar as meninas. Foi uma casa comprada com a ajuda da UNICEF e da Região Episcopal Belém. [Valdênia].

Uma casa de acolhida para as adolescentes foi montado no Parque Santa Madalena, em Sapopemba, em edificação muito visível no bairro, a algumas quadras de onde está a sede do CEDECA hoje. Aos 20 anos Valdênia resolveu dedicar-se a este projeto. Deixou a casa de seus pais, para desespero da mãe, e passou a morar em uma casa com mais de uma dezena de meninas inseridas na prostituição (e seus filhos)207. A essa altura ela já tinha feito magistério e se tornado professora numa escola pública. Com móveis doados e muito poucos recursos, tocada em regime de autogestão208, não tardou para que a casa ganhasse espaço na fofoca de todo bairro popular: os homens julgavam se tratar de uma casa de prostituição, os comentários circulavam por bares e padarias. As mães de família passaram a combater o trabalho.

e a gente foi fazendo uma reeducação na comunidade, pra aceitar essas meninas. Porque também houve protestos, dos comedores de hóstia, porque nem todo mundo que vai à igreja é cristão mesmo, não é? [Mas] nós tínhamos apoio dos padres, de outras pessoas da comunidade, da Dona Maria que era a mãe de santo, que hoje faleceu, então tinha uma rede de apoio.(...) Depois outro fator que nos ajudou, é que o Apostolado da Oração é composto, geralmente, por pessoas idosas. E nós tínhamos uma senhora muito querida, a D. Luiza, e ela foi a primeira a entrar na casa. E nos trouxe panos de prato, pintados por ela. Depois que ela entrou, calou a boca de muita gente. Mas o receio era que, olha, ‘essas meninas não vai roubar nossos maridos?’ [Valdênia]

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O desafio era que os poucos espaços que atendiam meninas era, o Amparo Maternal, que é um hospital inclusive na época dirigido por irmãs. A gente chegou até a manifestar nossa indignação e denunciar porque elas na verdade, dentro daquela lógica retrógrada da igreja, melhor pra essa criança e pra família que pode cuidar. Então as meninas que chegavam na casa, ‘cadê o seu bebê?’ ‘Ah, tive bebê, no Amparo Maternal, foi pra adoção’. E a gente começou a acolher as meninas com os seus filhos, porque quando alguém pode cuidar dos seus entes, queridos, o paradigma de vida é outro, então nós sempre valorizamos isso. [Valdênia].

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Todo dinheiro era um caixa comum. (...) Como eu sempre fui magra, e tive anemia quando pequena, minha mãe mesmo não apoiando o trabalho mandava marmita, com bife de fígado, [risos] ia para as crianças, porque a gente privilegiava as crianças. Então foi assim... [Valdênia].

O período era o de surgimento da AIDS, e de controle ainda muito precário sobre o desenvolvimento da doença. Muitas garotas morreram porque já não dava mais tempo de

cuidar, bebês morreram, me conta Valdênia. Ainda assim a “Casa das Meninas”, como os

militantes a chamavam, ou a “Casa da Luz Vermelha”, como a apelidara o estigma no bairro, terminou por encaminhar uma série de mulheres a trabalhos formais. Conheci bem na pesquisa de campo uma delas, Cristina, hoje funcionária do CEDECA. Sua trajetória é marcada desde a infância remota por situação de rua e internações, alternadas, até a acolhida na Casa das Meninas. Passou a viver próxima da rede de relações locais da Igreja, que oferece suporte para que cuide de seu filho e deixe o vício no álcool. No final de 2007, Cristina acabara de derrubar seu barraco de tábua, numa das favelas do Madalena, e amigos iriam ajudá-la a erguer uma nova casa de tijolos no mesmo lugar.

Conversando sobre ela sobre o tempo em que ela vivia na “Casa das Meninas”, ela me contava que naquele tempo muitos meninos do bairro iam até lá “para encher o saco”. Aos poucos, estes adolescentes passaram a também ser convidados a entrar na casa, e surgiu também o interesse em atuar com eles. Inicia-se um trabalho chamado “pequenos trabalhadores”, no qual Valdênia, já professora na região, saía pelas ruas coletando material reciclável junto com os meninos, como estratégia de criar com eles vínculos que permitissem a atuação educativa posterior. O vínculo com os adolescentes aumenta, aumentam também as demandas a suprir:

A professora catando papelão? Demorou para cair a ficha [no bairro]. E fazendo muitas coisas concomitantemente, porque esse é o movimento da comunidade. (...) Morreu alguém, vamos velar, vamos orar ou rezar o terço, dependendo de qual era o credo da família. (...) O Instituto Médico Legal já é ruim hoje, na época demorava três dias pra buscar um corpo; aí quando a gente sabia, acabou de morrer, a gente jogava no carro, colocava no carro, e falava que morreu no caminho. Tanto o hospital que atendia, que é da Vila Prudente, já falava: “morreu no caminho?”. Morreu no caminho. (...) Aí: ‘a Rota pegou os meninos!’ Você pega o carro e sai correndo atrás. Porque nós ganhamos o carro em 1988, dos padres maristas. (...) Você vai aprendendo a conviver com o limite da vida. É assim, não dá muito tempo de chorar. [Valdênia].

Entre velórios, incursões à delegacia, cultos, reuniões de militantes da causa da infância, atuando nos movimentos de base da região e morando na “casa das meninas”, a atuação de

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