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Cidade e política na esteira do projeto familiar operário

Quando nós chegamos, aqui não tinha nada, era tudo mato. Quantas vezes escuta-se esta

frase, em pesquisa nas periferias consolidadas de São Paulo. Trata-se aqui também de um depoimento regular. Que abre para mais e mais regularidades. A casa da família foi conseguida seguindo seqüência costumeira: construído um cômodo no terreno recém- comprado, a família nuclear se muda para lá; deixa de pagar aluguel e investe na autoconstrução, com a ajuda da família ampliada (os irmãos do pai também eram operários, e também compraram terrenos no mesmo bairro). Com o passar dos anos, e com a mediação das ações coletivas de tipo local, acompanha-se a chegada da luz, a instalação dos postes, dos relógios, as obras de implantação da rede de água e esgoto. Os vizinhos se conhecem nesse processo, as demandas são compartilhadas, os interesses são comuns. Aí é fazer abaixo-assinados para as empresas de ônibus, ver o asfalto chegar e, com o tempo, o bairro em construção virar cidade.

Chegam ali, então, as escolas públicas, creches, farmácias e padarias, telefones, postos de saúde, igrejas e traficantes de drogas115. As pequenas praças e áreas de lazer são desenhadas nos terrenos livres que restaram entre um e outro loteamento. Primeiro são os campos de futebol, e depois são as favelas que tomam estas áreas. A cidade mantém seu padrão de crescimento, pela expansão das periferias, e com os anos estas periferias se consolidam.

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Durham (1980, 2005).

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Aí eu recebi uma indenização [acordo de rescisão do primeiro emprego], arrumei mais um dinheirinho emprestado e dei entrada no terreno. [Seo Cláudio].

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Esse processo de urbanização é central na configuração da cidade, e de todo um mundo social e político. É dele que surge a “periferia trabalhadora” da cidade de São Paulo, que gerou uma sociabilidade muito própria. Esta camada de tecido social já foi relativamente bem estudada na literatura específica. Interessa-me aqui sublinhar que, como neste caso específico, a expansão das periferias em São Paulo é coerente a um projeto específico de família.

Seo Cláudio e Dona Sílvia não chegam ali por falta de opção, mas por seguir o script traçado por uma experiência mais ampla, que se apresentava aos trabalhadores do período. A dignidade da família se fundava na seqüência trabalho, casamento, casa própria e sacrifício para “fazer a vida”. É a ascensão social da família (melhores condições para os filhos etc.) o que está em questão, porque aparecia como possibilidade concreta a este conjunto da população. Este projeto de família, centrado na estabilidade do trabalho, é coerente com uma conjuntura específica de alta necessidade de mão de obra industrial, e funciona enquanto esta conjuntura permite, ou seja, até meados dos anos 80.

Neste cenário, é evidente que os setores trabalhadores que colonizavam as periferias tinham interesses comuns. E, pela novidade de sua aparição, estes setores ainda não tinham construído adequadamente sua representatividade destes interesses no mundo público. A conjuntura de abertura política era, então, uma oportunidade. Politicamente os ventos também são favoráveis para famílias como a de Seo Cláudio. Diversos outros setores pouco representados buscavam fazer-se representar na cena pública, e a legitimidade dos trabalhadores era inquestionável. O que Eder Sader (1988) percebe é o potencial político desta condição, num contexto de transição de poder de Estado e redefinição do estatuto do trabalho produtivo. É deste setor (de famílias como as de Seo Cláudio e Dona Sílvia) que nasceriam as bases dos movimentos sindicais e populares do período.

Mas para que estes movimentos emergissem, muita ação política foi realizada nas bases. O resultado desta ação foi que as camadas trabalhadoras operárias se aliaram, de um lado, a grupos de moradores de favelas e cortiços, ainda mais pauperizados, organizados pelas alas “progressistas” da Igreja católica. E, de outro lado, às “esquerdas” das universidades, associações e sindicatos, que renovavam de modo muito particular as matrizes discursivas da luta popular do período (o catolicismo, o sindicalismo, o marxismo). Daí, surgem os

“novos personagens” de Eder Sader, conhecidos como “novos movimentos sociais” na literatura específica116.

No plano local, os indivíduos que assumem postos de direção nas associações, sindicatos e movimentos populares, que “pipocavam” nas periferias de São Paulo desde o final dos anos 70, são provenientes de famílias de perfil muito semelhante à de Dona Sílvia. A partir de 1980 estas organizações articulam-se sob o programa do Partido dos Trabalhadores, e aproveitam da visibilidade de sua aliança com todos estes setores sociais para buscar, desde a transição democrática, legitimidade pública para suas demandas117. Se nunca foram hegemônicos, estes setores foram politicamente centrais para a demarcação das balizas no interior das quais se desenrolou o debate político das últimas décadas. É graças a este campo discursivo, esta experiência pública, que “trabalhadores” como Dona Sílvia e Seo Cláudio, de formação original tão conservadora, aderiram ao mundo das esquerdas, no período. O projeto da família casava-se perfeitamente com as promessas de justiça social contidas nas lutas sindicais do período de abertura política. Além do mais, as tintas cristãs que o discurso popular de esquerda imprimia nos imaginários eram muito coerentes à moral familiar do trabalho, que estruturava esse universo social desde os tempos da imigração. A ideologia construía um país de trabalhadores. Os operários aderiram a ela: o Lula fazia reuniões na

casa do meu tio, conta Clarice, relembrando a infância. Eu era comunista, eu vi o PT nascer. Acompanhar a trajetória desta família – como de tantas outras famílias operárias e

“trabalhadoras” de Sapopemba, e das periferias de São Paulo – é, então, verificar como se articulavam pela base um modelo de família popular a um projeto urbano e político centrados no trabalho, no trabalhador. Havia um mundo social específico, que se fundava aí e tinha correspondentes desde a esfera privada à pública, passando pela construção da sociabilidade. Pois bem, foi este mundo social, amparado num projeto privado de família e num projeto público de ação política que se desloca na década de noventa. As seguidas crises no mundo do trabalho, centro desta equação, e o desmantelamento dos aparatos

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Revisões desta literatura, no Brasil, são feitas por Baierle (1992), Paoli (1995) e por mim mesmo em Feltran (2005). Para uma revisão muito completa e atual dos estudos, linhas de análise e teorias das ações coletivas, em escala internacional, ver Cefaï (2007).

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públicos de sua regulação, que as acompanham, fazem com que todo este edifício estremeça.

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