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O testemunho de Pedro e, mais do que isso, a experiência mais ampla que o conforma – a “vida loka” permitiria abrir diversas frentes de argumentação, algumas pontuadas telegraficamente ao longo do texto, nas notas de rodapé, outras omitidas, outras além da minha observação. Escolho precisar aqui as definições das categorias em questão já no título do capítulo, para introduzir apenas um argumento, específico e restrito, que interessa para fazer notar um problema político que se desenha em seu depoimento, e que se pretende desenvolver nos capítulos seguintes. Extraio da narrativa de Pedro, por enquanto, apenas a demarcação das fronteiras entre o “mundo social” das periferias de São Paulo (entendido como a totalidade das relações sociais que conformam e estão presentes nas dinâmicas de relações sociais nestas periferias) e o “mundo do crime” local (entendido não como qualquer atividade criminosa ou ilícita, mas como uma experiência, relativamente regular, que oferece aos indivíduos que ingressam nela vivências de mesmo padrão daquelas que Pedro acaba de descrever, ou seja, experiências-limite).

Nestas definições, fica claro que o “mundo do crime” está contido no “mundo social”, integra-o como uma de suas partes. Assim, fica também claro que neste “mundo do crime” local há uma parte dos códigos de conduta que são compartilhados com os do restante do “mundo social”, e outra parte que se distingue deles, sendo às vezes mesmo oposta à eles. Afirmo que há “fronteiras” entre estes conjuntos de relações sociais, e o depoimento de Pedro demarca nitidamente como elas operam: para as mercadorias (sanfonas, carros, motos, drogas) é mais fácil atravessar a separação entre estes mundos, há um mercado que torna seus fluxos mais fluidos. Mas para os indivíduos há rituais específicos de entrada e saída, códigos de conduta muito estritos a seguir, punições severas e, quanto mais “envolvido” no mundo do crime, mais violência se enfrenta. A violência é sempre presente na relação entre estes mundos, aliás: desde as ações criminais, de violência extrema, até as

perseguições e tiroteios, as delegacias e prisões, as relações internas com os membros do mundo do crime.

Pedro demonstra conhecer bem as regras do jogo – há fronteira, e, portanto, há comunicação. Por vezes, era importante falar como “ladrão”, outras vezes era melhor nunca ter roubado uma caneta de ninguém. Ao final, resgata o “respeito ao próximo”. “Assim, você ganha confiança de ladrão e trabalhador”. O código moral-religioso conclui o testemunho, como uma síntese aprendida no transitar de um lado e outro da fronteira que separa e comunica o “mundo social” legítimo da “vida no crime”. Se ao seguir este código obtém-se respeito dos dois lados da fronteira, é porque nos dois lados dela, em algum nível, compartilham-se estes princípios. Há ainda, como se viu, uma série de justificações morais que são acessadas repetitivamente tanto para justificar o ingresso e a participação em atividades ilícitas, entre os que as integram, quanto para afirmar a opção veemente por não aderir ao crime, entre os que a criticam.

Conheci muitas histórias, de meninos e meninas de Sapopemba, que viveram de formas distintas a mesma experiência coletiva que conforma estas vivências de Pedro. Douglas, Allan, Wesley, Marcela, Diogo, Helder, Aline, Jonatas, Michel, Robson, Lázaro, Fernando, Raul, a lista é longa, os casos são reais. E, em todos os casos, há dinheiro, objetos de consumo, passagens de lado a lado, famílias sofrendo, armas, prisões, mães fortes e tiroteios. Foram tantos outros casos assim que conheci nesses anos, em outras regiões da cidade, em outras cidades do Brasil. Conheci também em Sapopemba adolescentes e jovens que, ao me narrarem suas vidas, sem serem estimulados, o fizeram tendo como parâmetro discursivo central a resistência à entrada na vida no crime: Paulo, Neto, Rafael, Ivonete, Alex, Bianca, muitos outros107.

Mas a totalidade deles apresentou suas trajetórias tendo o “mundo do crime” como um parâmetro narrativo central, e às vezes o mais central dela, em torno do qual gravita a

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Não há, nesta oportunidade, como apresentar cada um dos depoimentos, percorrer com detalhe seus pontos de inflexão e contextos, alternar comparações entre casos e apontar diferenças e regularidade entre as histórias. De certa forma, a narrativa de Pedro é tão instrutiva deste caminho, e tão densa em elementos de discussão, que optei por diluir as outras trajetórias estudadas, apresentando-as quando contribuem para pontos específicos da argumentação, ao longo dos próximos capítulos.

construção discursiva da trajetória. Afirmando, justificando ou negando ter entrado nesse mundo, este é o parâmetro com o qual se lida. Para uma pessoa nascida em favelas de São Paulo, a partir da segunda metade dos anos 80, esta experiência coletiva se apresenta com grande centralidade aos indivíduos, conforma-lhes os caminhos. Os amigos mortos ou presos, os convites para “entrar no crime” e as formas de lidar com a violência do tráfico ou da polícia etc. são temas corriqueiros dessas trajetórias. Apesar de serem minoritários numericamente os que, como Pedro, encaram vivenciá-la, a centralidade da experiência da violência nestas vidas, e sempre relacionada ao “mundo do crime”, é sintoma claro da mudança nos parâmetros da organização das dinâmicas sociais das favelas e, por extensão, primeiro das periferias e depois da cidade de São Paulo.

Em política, importa mais a capacidade de impor os parâmetros comuns em que a disputa se desenrola, ou seja, a pauta de temas e a demarcação dos terrenos dentro dos quais os sujeitos são obrigados a disputar espaço, do que os “conteúdos” ou “resultados” da disputa em si. O “mundo do crime” e seus métodos têm ampliado, nas últimas décadas, sua capacidade de impor os parâmetros de organização ao “mundo social” das periferias de São Paulo. E, portanto, tem conquistado poder político naqueles territórios. Hoje já não há mais como ignorá-lo. Para todos os adolescentes e jovens entrevistados, moradores de favela – há uma questão de geração e de divisão espacial clara aí – há que se lidar com sua presença ou disputar espaço com ele. Para muitas das suas famílias, e também para famílias que vivem fora das favelas, também tem sido assim. De modos heterogêneos, como demonstram os próximos capítulos, o mundo do crime tem abordado uma série de outras dinâmicas sociais das periferias urbanas, e o caso de Sapopemba é, também neste aspecto, muito instrutivo.

A seqüência de três histórias familiares que se inicia aqui, e segue pelos Capítulos 3 e 4, parte de uma das famílias colonizadoras do bairro, de perfil operário. Acompanhar a história de Seo Cláudio e Dona Sílvia é acompanhar a trajetória da família operária que chega a Sapopemba, e conhecer o projeto que animou a ocupação inicial do distrito. Mas é mais do que isso. Deste projeto, desdobram-se evidentemente as funções econômicas desempenhadas pela força de trabalho industrial no crescimento da região e da cidade, e vislumbra-se a relevância da proteção social que acompanhou os trabalhadores do período, bem como as conseqüências sociais de seu desmanche recente. Mas tudo é muito mais. Nos circuitos da família desenham-se também, de um lado, as formas de crescimento e urbanização da cidade, e de outro as conformações originais do associativismo popular paulistano, que desaguou, numa conjuntura específica, no ambiente de formulação de um projeto político central na conformação da cena pública brasileira. Tudo isso até o final dos anos 80. Os temas emergem conforme a narrativa da família caminha, mas passo por eles telegraficamente, na primeira parte do capítulo. Pois a intenção é avançar na cronologia, e contextualizar, na segunda parte, o que ocorre na mudança de geração, a partir dos anos 90, e notadamente nas dinâmicas sociais contemporâneas das periferias, nas quais se inserem – diferentemente – os três filhos do casal.

Eu cheguei a Sapopemba mais de trinta anos depois deles. Foi na casa própria da família, auto-construída, agora já bem acabada, que fiz algumas entrevistas com Seo Cláudio e Dona Sílvia, mas sobretudo com a filha mais velha, Clarice, e um dos seus irmãos. Agora, vivem ali só ela e os pais, os meninos já se casaram. Chegar no portão e bater palmas, ouvir o cachorro latir e, depois do cadeado aberto, entrar para conversar. Conversar, de fato. As entrevistas foram sempre muito agradáveis, repletas de assunto, e não se restringiram às minhas perguntas. Todos se interessavam pela minha família, por histórias dos meus filhos, dos amigos que eu levei para acompanhar a pesquisa108. A família recebe bem as visitas.

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Em algumas destas visitas fui acompanhado, uma vez por Ana Paula Galdeano Cruz, outra por Robert Cabanes, outra por Suresh Naimar, todos pesquisadores em ciências sociais.

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