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Centro de Berlim por volta de 1900 (1904)

16 HOBSBAWM, Eric. The Age of Empire, 1875-1914. New York: Vintage books, 1989, p. 20ss. 17 KROLL, 2013, p. 69.

A segunda revolução industrial fomentava rapidamente o desenvolvimento de empresas de grande porte nas áreas de engenharia mecânica, eletrotécnica, química e farmacêutica.A maior empregabilidade nas indústrias, sobretudo no Vale do Reno, no Oeste do Império, criava uma mobilidade social sem precedentes, ainda que estruturalmente limitada.18 Em decorrência do aumento da classe trabalhadora urbana e do nível geral de alfabetismo, escolaridade e poder aquisitivo, o acesso a instalações culturais, como associações, bibliotecas e até mesmo cinemas expandiu-se e a circulação de jornais e revistas cresceu consideravelmente.19

A revolução industrial foi marcada por um crescimento da variedade de inovações tecnológicas, de modo a transformar o laboratório de pesquisa em um componente central do complexo industrial. Na Alemanha um dos exemplos mais bem-sucedidos da cooperação entre a pesquisa acadêmica e a indústria foi o estabelecimento da empresa de lentes microscópicas Carl Zeiss em Jena.20 No âmbito da história da etnologia indígena, a Carl Zeiss é conhecida por ter sido a empresa em que Curt Nimuendajú (1883-1945) foi aprendiz antes de se mudar ao Brasil em 1903.21 Em suma, de acordo com Hobsbawm, “a Alemanha era inquestionavelmente um gigante na ciência e no conhecimento, na tecnologia e desenvolvimento econômico, em civilidade, cultura e artes e não menos importante, em poderio”.22

A fundação do império alemão pode ser pensada ao mesmo tempo como o resultado de um complexo de fenômenos políticos e sociais e como um evento norteador de mudanças estruturais. Para o sociólogo Norbert Elias o habitus alemão no fim do século retrasado – ou para empregarmos uma terminologia humboldtiana, o Nationalcharakter dos alemães daquela época – é resultado do complexo processo de formação do Estado alemão e das mudanças estruturais que o envolviam.23 O autor aponta quatro características idiossincráticas, que entrelaçadas, definem o transcurso formador do habitus: a particularidade linguística dos povos germânicos e a relação com vizinhos de outras línguas, com consequências para a ascensão e o declínio de centros de poder na Europa (e da Europa em escala global), em que forças

18 KROLL, 2013, p. 69-70. 19 KROLL, 2013, p. 91. 20 HOBSBAWM, 1975, p. 55.

21 WELPER, Elena Monteiro. Curt Nimuendajú: um capítulo alemão na tradução etnográfica brasileira.

Dissertação (mestrado em antropologia social). Museu Nacional / UFRJ, Rio de Janeiro, 2002, p. 45.

22 HOBSBAWM, 1989, p. 188.

23 ELIAS, Norbert (1989). Os Alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de

integradoras e desintegradoras criavam e transformavam relações de poder, comumente através de conflitos armados de diversas naturezas. 24 A terceira peculiaridade do processo de formação do estado alemão e sua influência sobre o habitus remete imediatamente ao próprio desenvolvimento progressivo da unificação alemão, que, diferentemente de outras nações europeias, foi fundamentalmente pautada por rupturas e descontinuidades. Por fim, o resultado desse processo histórico foi uma luta de classes entre as classes médias emergentes e a nobreza militar. As classes médias alemãs ascendiam financeiramente desde o início do século, e o embate entre as classes transformou, de acordo com Arendt, “a estrutura semifeudal do despotismo esclarecido prussiano num Estado-nação mais ou menos moderno, cujo estágio final foi o Reich alemão de 1871”.25 Elias aponta que a vitória alemã na França em 1871 foi ao mesmo tempo uma vitória da nobreza sobre as classes médias, que então “conciliaram-se com o Estado militar e adotaram seus modelos e normas”.26

Assim, a sociedade alemã imperial era marcada por uma organização social, cujos graus de ordem e poder, decrescentemente sucessivos, transmitiam valores e signos militares, como hierarquia, organização, ordem e obediência. É notável que os princípios militares adotados pela burguesia eram compartilhados pela nobreza, no entanto, as classes burguesas repudiavam o estilo de vida da nobreza, ao menos na Prússia. Outros valores constituintes da socialidade alemã são apontados da seguinte maneira pelo historiador Frank-Lothar Kroll: era uma sociedade caracterizada por uma regência de normas, valores e princípios burgueses, como “sucesso e eficiência, disciplina de trabalho e esforço pessoal, modo de vida econômico- racional e anseio por formação cultural [Bildung], pontualidade, solidariedade e cumprimento do dever”.27

24 Os conceitos de habitus de Elias e Nationalcharakter de Wilhelm von Humboldt, são, evidentemente, distintos.

Por habitus Elias avalia incorporação de características sociais adquiridas. Incorporação, neste sentido, pode ser entendido como embodiment, ou seja, expressões corporais de um conjunto de saberes sociais historicamente constituídos e geracionalmente transmitidos. Eric Dunning e Stephen Mennel apontam que o

habitus é dinâmico e transformador e, por isso, suprime o conceito supostamente estático de caráter nacional.

No entanto, quando temporalmente circunscrito, o conceito de Elias se assemelha muito ao de Wilhelm von Humboldt, uma vez que dessa maneira o conjunto de características sociais compartilhadas dentre um registro temporal é revelado. Cf. DUNNING, Eric; MENNEL, Stephen. “Prefácio à edição inglesa”. In: ELIAS, Norbert (1989). Os Alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 9.

25 ARENDT, 1949, p. 59. 26 ELIAS, 1989, p. 26. 27 KROLL, 2013, p. 79.

Além do militarismo e dos princípios burgueses, na ostensiva modernidade da era Guilhermina o protestantismo desempenhou um papel fundamental enquanto norteador de normas e valores e regulador de padrões de socialiade, conforme sustentado pelo sociólogo Max Weber (1864-1920), filho e testemunho do período imperial alemão.28 A crescente centralidade do protestantismo no espaço público alemão remete às inúmeras alianças entre líderes religiosos e governantes das monarquias germânicas desde a idade média.29 Na era Guilhermina o padrão confessional foi pouco alterado e a população continuou majoritariamente protestante. Nesse sentido, o protestantismo não foi uma fonte para o habitus alemão da época imperial apenas.

Apesar da estratificação social, que grosseiramente dividia a sociedade em nobreza, classes burguesas, trabalhadores urbanos e camponeses, havia uma mobilidade social sem precedentes em territórios germânicos, que contribuía para a formação de camadas no interior dos estratos.30 A própria burguesia era diversificada. A burguesia financeira (Wirtschaftsbürgertum) era composta pelas camadas economicamente mais poderosas, como empresários, banqueiros e industriais que, via de regra, possuía acesso às monarquias regionais e às diversas categorias governamentais, além de contar com representantes nas assembleias regionais e imperial. A elite intelectual e cultural da era Guilhermina era representada pela burguesia letrada (Bildungsbürgertum) – cujo desenvolvimento histórico já foi delineado anteriormente – prosperava desde o início do século XIX e se encontrava no Reich em seu ápice. A esse círculo pertenciam “funcionários públicos de alto escalão, médicos, juízes, advogados, professores universitários e escolares, editores, jornalistas, escritores, artistas” e o clero evangélico.31 O “capital de conhecimentos humanístico-clássico” apresentado pela burguesia letrada impunha respeito e notoriedade social, fundamentava a sua influência social, política e cultural e justificava sua presença nas diversas esferas do Estado.32 Ringer argumenta, mais claramente, que a formação acadêmica era o único meio de compensar a ausência de um título nobiliárquico. Os espaços públicos culturais e educacionais eram significativamente ocupados pela burguesia letrada, seja como produtora ou consumidora de conhecimento.

28 Cf. WEBER, Max (1904/1920). Die protestantische Ethik und der “Geist” des Kapitalismus. Wiesbaden:

Springer VS, 2016.

29 KROLL, 2013, p. 61-62. 30 KROLL, 2013, p. 70-79. 31 KROLL, 2013, p. 71. 32 KROLL, 2013, p. 71.

Os americanistas alemães pertenciam justamente à burguesia letrada.33 Karl von den Steinen (1855-1929) nasceu no seio de uma família protestante. Seu bisavô, avô e pai eram médicos e ele mesmo estudou medicina e obteve o título de doutor em psiquiatria.34 Paul Ehrenreich (1855-1914) era filho de um hoteleiro e também estudou medicina, doutorando-se nessa área.35 O avô e o pai de Max Schmidt (1874-1950) foram advogados e membros do conselho jurídico da cidade de Altona (Hamburgo). Seu pai Johann Georg Max Schmidt ocupou vários cargos na administração municipal e foi membro do parlamento da província de Schleswig-Holstein. O próprio Max Schmidt estudou ciências jurídicas, doutorando-se em Direito Romano. Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) era filho de pastor protestante e estudou filologia clássica, Wilhelm Kissenberth (1878-1944) provinha de uma família abastada do sul da Alemanha. Seu pai era proprietário da fábrica de tabaco brasileiro “Kissenberth und Straub” na cidade de Landshut.36 Kissenberth obteve o título de doutor em teoria literária com uma tese sobre escritor irlandês Antoine (Anthony) Hamilton (1646-1720). Fritz Krause (1881-1963), que era filho de um diretor de escolas para pessoas com deficiência visual, estudou geografia e física.37

No interior dessa burguesia letrada havia um certo segmento social o qual Ringer denominou de “mandarins”. Os mandarins da burguesia letrada eram, sobretudo, professores universitários, cientistas sociais, filósofos, historiadores e até mesmo burocratas. A “inteligência acadêmica alemã”, que entre 1890 e 1933 viveu seu apogeu e declínio, via a si mesma como um grupo relativamente homogêneo.38 Os mandarins constituíam uma “elite cultural e social”, que “deviam seu status, acima de tudo, às suas qualificações educacionais, e não à riqueza ou a direitos herdados”.39

A terceira classe era a pequena burguesia (Kleinbürgerschaft), composta sobretudo por pequenos comerciantes, artesãos, funcionários públicos de baixo escalão, além de funcionários de empresas de diversos setores. Em uma via de duas mãos, dessa para a classe trabalhadora das fábricas, que em 1907 já constituía um terço das pessoas remuneradas no

33 KRAUS, 2004a, p. 450-452.

34 VON DEN STEINEN, U., 2010, p. 5. 35 KRAUS, 2004a, p. 30-33.

36 TAUSCHE, Gerhard; EBERMEIER, Werner. Geschichte Landshuts. München: C.H. Beck, 2013, p. 146. 37 KRAUS, 2004a, p. 38-42.

38 RINGER, 1969, p. 13. 39 RINGER, 1969, p. 15.

Reich, ocorria a maior mobilidade social.40 Kroll revela que essas duas classes sociais também adotaram o estilo de vida dos burgueses mais bem estabelecidas, imitando vestuário, gostos, aparência pessoal e hábitos.41

Foi, em suma, nesse contexto socialmente complexo, culturalmente rico e economicamente estável, que floresceram obras e teorias extremamente impactantes nos mais diversos domínios acadêmicos e artísticos, de modo a caracterizar a virada do século como

Belle Époque.42 Portanto, a ascensão da etnologia se insere em um campo intelectual muito mais amplo. Durante o período de estabelecimento dos museus de antropologia na Alemanha, Bastian, Ratzel, Virchow e Wundt dominavam a cena etnológica alemã. A psicologia étnica de Waitz e os estudos sobre o direito matriarcal realizadas pelo jurista suíço Johann Jakob Bachofen (1815-87) causavam impacto. Ainda ecoavam as repercussões da publicação do primeiro volume da obra Das Kapital (1867) de Karl Marx. Wilhelm Dilthey (1833-1911) desenvolvia uma hermenêutica empiricamente sustentada e Friedrich Nietzsche (1844-1900) martelava os pés de barro dos seus ídolos. Rudolf Clausius (1822-88) cunhava a entropia e Johannes Brahms (1833-97) preenchia o espaço musical deixado por Ludwig van Beethoven (1770-1827). A primeira geração de americanistas – Karl von den Steinen e Paul Ehrenreich – viveu na mesma época em que Ferdinand Tönnies (1855-1936), Georg Simmel (1858-1918) e Max Weber (1864-1920) reestruturavam a sociologia e Edmund Husserl (1859-1938) estabelecia a fenomenologia. Sigmund Freud (1856-1939) fundava a psicanálise e Max Planck (1858-1947) a física quântica. A segunda geração de americanistas – Theodor Koch-Grünberg (1872-1924), Max Schmidt (1874-1950), Wilhelm Kissenberth (1878-1944), Felix Speiser (1880-1949) e Fritz Krause (1881-1963) – cresceu, foi educada e iniciou suas atividades acadêmicas especificamente durante o período Guilhermino. Nessa época houve, nos países de língua alemã, um impressionante florescimento da filosofia, artes e ciências: Ernst Cassirer (1874-1945), Karl Jaspers (1883-1966) e Ernst Bloch (1885-1977) contribuíram decisivamente para o neokantismo, a filosofia existencial e o marxismo. Rosa Luxemburgo (1871-1919) e Karl

40 KROLL, 2013, p. 72-73. 41 KROLL, 2013, p. 73.

42 Evidentemente, o Reich alemão não era desprovido de problemas sociais. Hannah Arendt descreve

minuciosamente o antissemitismo no Reich alemão. Ela considerava que o movimento antissemita prussiano tenha se originado entre a nobreza. Bismarck protegia seus aliados judeus, mas Guilherme II tinha certa simpatia por agitadores antissemitas (Arendt, 1949, p. 644). O termo Bélle Époque originalmente é aplicado ao caso francês, no mesmo período do Reich, mas por convenção pode ser aplicado a outros países que experimentaram essa época cosmopolita.

Liebknecht (1871-1919) revolucionavam a teoria e a prática políticas e Carl Gustav Jung (1875- 1961) fundava a psicologia analítica. Durante a Belle Époque a literatura e a poesia de língua alemã se expandiram em várias correntes: o simbolismo de Hugo von Hofmannstahl (1874- 1929) e Rainer Maria Rilke (1875-1926), o épico moderno de Thomas Mann (1875-1955) e Hermann Hesse (1877-1962), o expressionismo de Alfred Döblin (1878-1957) e o drama psicológico de Stefan Zweig. Outras expressões artísticas estiveram em consonância com a literatura, como o expressionismo. Um dos representantes alemães mais relevantes desse movimento artístico foi Paul Klee (1879-1940), e o russo radicado na Alemanha Wassily Kandinsky (1866-1944) forneceu elementos fundamentais. Hofmannstahl foi um dos nomes do modernismo austríaco, Wiener Moderne, ao qual também pertenceram o pintor de art nouveau Gustav Klimt (1876-1918) e o compositor Arnold Schönberg (1874-1951) com suas experimentações atonais. Fritz Haber (1868-1934) postulou contribuições fundamentais na área da termoquímica, Albert Einstein (1879-1955) alterou os paradigmas científicos da física teórica e Erwin Schrödinger (1885-1962) foi um dos fundadores da mecânica quântica. Desse período, no entanto, também provêm alguns pensadores que décadas mais tarde tiveram relações mais ou menos explícitas com a ideologia nazista. Por um lado, havia o compositor Richard Strauss (1864-1949) que tinha um relacionamento ambíguo com os dirigentes nazistas, sobretudo para proteger sua nora e seus netos, que eram judeus. Martin Heidegger (1889-1976) não só foi filiado ao partido nazista, como tirou vantagens pessoais da ascensão do partido. Por outro, havia um dégradé nefasto, que descreve a atuação dos pensadores, desde simpatizantes da causa até participantes perversos. Os laureados com o Nobel de Física Philipp Lenard (1862- 1947) em 1905 e Johannes Stark (1874-1957) em 1919 foram as principais vozes da “física ariana”. O filósofo Carl Schmitt (1888-1985) além de teórico do nazismo foi um antissemita convicto, o antropólogo Eugen Fischer (1874-1967), que seguiu carreira na máquina estatal nazista, foi membro ativo das políticas de higiene racial e eugenia, e o historiador Erich Rothacker (1888-1965), mais conhecido pela sua fundamental contribuição para o desenvolvimento da Begriffsgeschichte, ou história dos conceitos, foi membro da Akademie

für deutsches Recht, a academia de leis alemãs do estado nazista, e um ativista teórico do

governo. Grande parte dos apoiadores intelectuais do nazismo nascia, todavia, depois da virada do século.

Enfim, o historiador norte-americano H. Glenn Penny discute em seu excelente livro Objects of culture. Ethnology and Ethnographic Museums in Imperial Germany os fatores sociais que contribuíram para a fundação dos museus etnográficos na Alemanha imperial. Para além daqueles apontados na presente tese (modernização da Alemanha, crescimento das cidades, oferecimento pelo estado de diversas possibilidades de educação, estabelecimento de valores burgueses e protestantes como norteadores de estilo de vida, influência social da burguesia letrada etc.), Penny ressalta a importância de um grupo de acadêmicos alternativos à educação clássica das elites alemãs do final do século XIX, que dominavam as universidades centrais europeias: “O reconhecimento de acadêmicos na década de 1860 de que a cultura material os abastecia com outro tipo de ‘texto’ dava a um grupo de cientistas jovens e entusiasmados a oportunidade de desenvolver uma expertise que poderia mudar o conhecimento universitário baseado em filologia”. A etnologia, que se estabilizava como ciência, “provia-lhes os meios intelectuais, os museus etnográficos forneciam-lhes os novos espaços culturalmente respeitados – uma instituição alternativa que eles rapidamente aproveitaram para a produção de conhecimento”. Assim, “uma nova geração de outsiders intelectuais começou a mudar o cânone acadêmico, a criar identidades profissionais respeitáveis para si mesmos e a desestabilizar a Kultur das elites educadas”.43

Desde aproximadamente 1800 as universidades alemãs eram financiadas e administrados diretamente pelo ministério de educação e cultura (Kultusministerium). As universidades relacionavam-se intimamente com a burocracia e desempenhavam um “papel tradicional de guardião da ciência pura”.44 A era Guilhermina, afirma Ringer, foi uma época de grande incremento material para as universidades alemãs, em que houve expansão nos corpos docente e discente.45 A expansão do número de discentes se deve, dentre outros fatores sociais e políticos, ao enraizamento da ideologia da Bildung na sociedade alemã. Só que as universidades eram, como todo o sistema educacional, dominadas por grupo restrito de acadêmicos, os mandarins, que acumulavam poder simbólico e financeiro, além do cabedal intelectual.46 Isso significa que os acadêmicos alemães que se estabeleceram em museus eram “alternativos”, mas não porque não tivessem uma formação clássica. Pelo contrário, como

43 PENNY, 2002, p. 36. 44 RINGER, 1969, p. 41. 45 RINGER, 1969, p. 54-55. 46 RINGER, 1969, p. 21.

descrito anteriormente, tanto o fundador do Museu Real de Antropologia de Berlim Adolf Bastian, quantos os americanistas empregados por ele posteriormente, obtiveram uma formação em campos científicos considerados clássicos, como ciências jurídicas, medicina e filologia. Os intelectuais dos museus eram alternativos porque desempenhavam seu ofício profissional fora da universidade e assim ocupavam outros espaços institucionais, os quais rapidamente transformaram em referência para uma determinada área de estudo, a saber, a ciência do homem.

Desse modo, foram criados museus de antropologia nas principais e mais dinâmicas cidades da Alemanha: em 1868 em Munique (Königliche Ethnographische Sammlung), em 1869 em Leipzig (Museum für Völkerkunde) e em 1879 em Hamburgo (Museum für

Völkerkunde, antes Ethnographische Sammlung).47 O principal museu etnográfico alemão, o

Königliches Museum für Völkerkunde, “Museu Real de Antropologia”, foi fundado em 1868,

abriu as portas ao público em 1873 e presidido por seu fundador Bastian até sua morte em 1905 (imagem 6).48 A criação dos museus de antropologia na Alemanha se situava, portanto, na interconexão entre disputas intelectuais intracientíficas com interesses nacionais, regionais e municipais, em que elites regionais e associações desempenhavam um papel importante como financiadores.49 Assim, a análise historiográfica seja da atividade museal, do trabalho das ciências do campo e de outros ofícios intelectuais precisa considerar as políticas da ciência: a multiplicidade de atores relevantes em um campo de disputas semânticas, ideológicas, simbólicas e de poder. Os museus e seu aparato institucional (funcionários burocratas e diretores, desenhistas e curadores) se inserem uma rede técnico-social gigante, em que eles, ao lado de outros agentes, como funcionários de várias instâncias governamentais, funcionários consulares, editores de revistas científicas e povos nativos, surtiam ações nos e sofriam reações dos etnólogos.

Os museus antropológicos apresentavam características de pesquisa singulares. Penny argumenta que os museus eram locais em que “os traços empíricos da história humana eram reunidos e onde poderiam ser produzidas e testadas as teorias sobre a humanidade”.50 A etnologia alemã, construída ao longo de mais de um século como uma disciplina empírica e

47 VERMEULEN, 2015, p. 426-427. 48 PENNY, 2002, p. 2.

49 PENNY, 2002, p. 114. 50 PENNY, 2002, p. 2.

indutiva, preocupada em analisar cientificamente a cultura e a história humanas, encontrava nos museus um lar, que também fornecia uma oficina para a investigação da natureza dos humanos.

Berlim tornou-se, à princípio, o propagador da epistemologia que sistematicamente norteava o trabalho nos museus: motivações teóricas, técnicas de campo, coleta e organização do material e arranjo das exibições. Contudo, Penny demonstrou que após a virada do século, as grandes modificações expositivas ocorreram primeiramente em museus municipais menores e somente mais tarde em Berlim, onde os etnólogos trabalhavam alheios às mudanças políticas e a problemas financeiros mais graves.51 Mais distantes das demandas dos públicos visitantes e das exigências de elites locais, os etnólogos em Berlim continuaram exercendo o mesmo modus

operandi até a mudança de geração de diretores perto da virada do século. Todavia, durante a

institucionalização e profissionalização da etnologia na Alemanha, e o estabelecimento de um círculo americanista, Berlim era o centro de aglomeração de intelectuais e propagação de técnicas – todos os caminhos levam a Berlim.