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Encontro com os Suyá (1886)

Não apenas em suas atividades de campo, mas também nas narrativas a figura do etnólogo poderia se confundir com a de outros profissionais. Enquanto no campo os etnólogos constantemente se distanciavam dos colecionadores profissionais, nas narrativas eles precisavam se apartar dos simples aventureiros em busca de fama instantânea. Após o tiroteio com os Trumai, por exemplo, que impediu os expedicionários de se dedicar mais intensivamente ao estudo desse povo, e antes dele encontrar com os Suyá, o etnólogo confessou: “Será que desceremos o Xingu, não como uma expedição científica, mas como aventureiros ousados, olham para trás para suas realizações, e ficam contentes porque chegaram sãos e salvos ao ponto de chegada, independentemente de suas realizações”?113

Assim, ainda que os americanistas não tivessem proposto abertamente reflexões sobre a atividade literária da etnologia, como Michel Leiris ou Lévi-Strauss, o cuidado quanto ao estilo e a forma de transmissão de suas experiências de campo é notório nas suas etnografias. Em Durch Central-Brasilien há um notável compromisso com a realidade em si e na comunicação absolutamente fiel da aquisição dos dados de campo. Karl von den Steinen enumera para todos os dias as coordenadas geográficas em que os expedicionários se encontravam, a temperatura do ar e da água, medidas duas vezes ao dia, a umidade do ar e os fenômenos meteorológicos relevantes. Outros aspectos, menosprezados nas etnografias a partir da hegemonia da antropologia anglo-saxã, mas de acordo com a ideia de elencar os acontecimentos de forma mais exata possível, são pormenorizados, tais como virulentas discussões com auxiliares, os problemas de logística e os erros da expedição. A delimitação detalhada da natureza, das cidades, das pessoas e dos trajetos acarreta uma “descrição densa” muito própria, que, por fim, torna-se um artifício literário para inculcar na imaginação dos leitores a experiência do etnólogo. James Clifford apontou acerca do modo de produção etnográfico do polaco Bronisław Malinowski (1884-1942), que “a etnografia é, do início ao fim, imbricada na escrita. Essa escrita inclui, minimamente, a tradução da experiência em uma forma textual”.114 Além das dificuldades impostas pelo ordenamento das experiências subjetivas e da análise de dados objetivos, pode se acrescentar a inevitabilidade de conceber uma narrativa verossímil.

113 VON DEN STEINEN, 1886, p. 200.

114 CLIFFORD, James. The Predicament of Culture. Twentieth-century Ethnography, Literature, and Art.

Neste sentido, outra estratégia literária que confere singularidade à narrativa de von den Steinen é seu tom constantemente sarcástico, para o que nada nem assunto algum eram vetados.Ele chamou o comandante Tupy de “bebum”, um outro soldado de molenga e revelou que “paciência” precisa ser a primeira regra no trato com os brasileiros. Von den Steinen também caçoava da aparência física das pessoas. Explicitamente racista, ele afirmou que o soldado Chico se assemelharia a um macaco, um rapaz Kustenau a um “assaltante berlinense de lojas”, algumas índias idosas pareceriam bruxas e um índio Suyá idoso um “abutre velhíssimo”. No livro há diversos julgamentos feitos sem pudor algum: os Trumai são feios, um rapaz indígena tem “aparência semítica” por causa do formato do nariz.115 Em uma passagem particularmente reveladora por seu tom grosseiro, pretensioso e eurocêntrico, von den Steinen denominou os índios Suyá que conversavam noite adentro de “homenzinhos da idade da pedra” que ousariam atrapalhar com suas “lendas infantis” o merecido descanso dos cientistas.116 Von den Steinen vocifera que mesmo em fantasia, os cientistas europeus mal conseguem regressar ao estado cultural dos índios “e mesmo quando nós os observamos de forma tão benevolente, mal podemos imaginar de forma convincente que seus descendentes conseguiriam inventar a locomotiva e o microscópio, sem falar da filosofia de Hegel”.117 A tecnologia é tão cara ao europeu que ela é quase parte do seu corpo e mesmo na natureza selvagem ele carrega consigo bússola, espingarda, faca e livros: “nós que somos alguns séculos mais inteligentes do que vocês”.118

Se essas frases fossem escritas por um etnólogo ou uma etnóloga contemporânea em seu diário íntimo e, por alguma razão, viessem à tona, elas provavelmente seriam escandalosas o suficiente para estremecer sua reputação intelectual e enterrar seu compromisso moral com os povos estudados, caso tivessem algum. Isso ocorre, no entanto, porque os e as profissionais dessa ciência têm, em geral, uma relação com os povos que estudam que ultrapassa as fronteiras da simples relação de sujeito e objeto de estudo. Há atualmente uma série de fatores envolvidos na atividade etnológica que no final do século XIX eram inexistentes, como afinidades, afetividades, engajamento político, comprometimento ético e moral, dentre tantas coisas. Além disso, a publicação dos diários de campo de Malinowski em 1967 e o debate

115 VON DEN STEINEN, 1886, p. 84, 96, 71, 159, 181, 179, 182, 206-207, 195, 211. 116 VON DEN STEINEN, 1886, p. 203-204.

117 VON DEN STEINEN, 1886, p. 203. 118 VON DEN STEINEN, 1886, p. 203.

subsequente acerca do posicionamento dos etnólogos em campo e de suas relações com seus interlocutores de pesquisa, contribuiu para uma reavaliação não apenas da atividade de campo deste antropólogo, mas das políticas éticas do trabalho de campo em geral.119 Uma das consequências foi a revisão da ideia de uma neutralidade observadora do etnólogo em campo, que agora passou a ser pensado antes como um diálogo intersubjetivo em zonas perpassadas por relações de poder, uma miríada de interesses e afetividades.

O estranhamento que a fúria de von den Steinen causa nos seus leitores contemporâneos é alimentado sobretudo pelo papel que os etnólogos têm em relação aos seus interlocutores em campo nos dias atuais, ancorada em noções de companheirismo e aliança. O trabalho de campo de von den Steinen, contudo, ocorreu antes do estágio atual da atividade etnológica (marcada pelo comprometimento) e da pretérita (marcada pela objetividade). A fúria de Karl von den Steinen revela cruelmente que o comportamento dos etnólogos em campo não é dado ou que emana naturalmente das relações com os povos que pesquisam, mas construído, suportado por gerações de trabalhadores do campo, moldado por suas atividades e envolvido em contextos sociais diversos. Se o comportamento do etnólogo é construído e não dado, historicamente variável e adaptado aos contextos sociais, então é possível dizer que o trabalho de campo realizado pelos etnólogos deixa transparecer mais do que ele intenciona. O trabalho de campo revela informações sobre os povos estudados, mas também sobre aqueles que os estudam. A observação participante apresenta a visão de mundo dos nativos e a visão de mundo dos etnólogos que estão observando.

O ataque de raiva também apresenta uma outra perspectiva, presente em todas as variedades de trabalho: a dimensão humana do convívio social. Essa dimensão foi omitida por alguns etnólogos, apresentada por outros e motivo de reflexão por poucos. Mas para ele, que queria assegurar a idoneidade da etnografia como diário, ela era a piori. É uma passagem muito interessante, para além dos insultos, do ponto de vista da construção literária. Durch Central-

Brasilien tem forma de diário, o que significa que o autor relata os acontecimentos cotidianos

da forma mais fiel possível. A fúria, todavia, não foi dirigida aos índios. Ela apenas é relatada no livro em forma de pensamentos, portanto, é omitido ao leitor o que ocorreu efetivamente naquela noite. Talvez von den Steinen tenha feito aquilo que todos os etnólogos fariam na situação dele: nada. No entanto, no momento da escrita do livro, ao invés de narrar

simplesmente os fatos, ele optou também por descrever seus sentimentos. Neste processo de escrita, memórias são revisitadas, dados são reordenados, momentos são reconstruídos, pensamentos são repensados, coisas são suprimidas. A realidade não condiz com a expectativa que se construiu sobre ela, a frustração decorrente da percepção da incompatibilidade entre as expectativas pessoais e a situação real gerou uma frustração, que naquele momento foi suprimida, mas revelada no momento da escrita. A redação da etnografia não é apenas a oportunidade de revisitar os dados de campos, mas também de enfrentamento das experiências pretéritas. O ordenamento das anotações também é um reordenamento das emoções. A etnografia de Karl von den Steinen também é uma autoetnografia, uma autor-etnografia. A etnografia é o produto de uma relação. Seu objetivo é transmitir conhecimento sobre um grupo social a partir da percepção do etnógrafo. Mas no caso dele, uma leitura atenta, e a contrapelo, revela os fundamentos de sua percepção.

Por fim, há uma última faceta a ser considerada. Trata-se então também de uma estratégia literária. O autor intenciona revelar ao leitor os sentimentos e as condições psicológicas da expedição. As ofensas aos índios e os elogios aos europeus foram escritas para serem lidas pelos burgueses letrados orgulhosos de seu império. A reconfortante afirmação da pretensa superioridade europeia, expressa no calor do momento, filia von den Steinen ao estrato social dos seus leitores ao mesmo tempo em que possibilita que seus leitores se coloquem em seu lugar, porque a ideologia é compartilhada por autor e leitor. É um recurso literário e mercadológico bastante arguto, pois é capaz de cativar o leitor médio, ao invocar orgulho europeu e acariciar sua vaidade. Uma vez que o compromisso moral com os povos estudados ainda não era parte integrante da atividade etnológica e ele jamais considerou que algum dia suas obras seriam consultadas por leitores indígenas, essa passagem eurocêntrica e racista não sofreria consequências negativas. Von den Steinen equivocou-se em relação a isso.

Do ponto de vista científico, os resultados da expedição são geográficos, etnológicos e linguísticos. Karl von den Steinen e Otto Clauss foram os primeiros cientistas a percorrer rio Xingu em sua extensão e alguns de seus afluentes. Eles produziram o primeiro mapa completo da bacia do Rio Xingu, o que por si só já é um enorme feito cartográfico. A ele também devem ser creditadas as primeiras descrições propriamente etnológicas de vários povos xinguanos e, em alguns casos, as únicas existentes, porque alguns grupos sociais desapareceram enquanto unidades autônomas. Já na sua primeira monografia ele demonstrou que o Xingu era

uma área dinâmica com relações interétnicas bem estabelecidas (várias vezes ele se deparou com índios de diversas etnias na mesma aldeia), formada por povos falantes de línguas dos dois troncos linguísticos (Suyá-Kisêdjê do tronco Marco-Jê, e os Kamaiurá e os Juruna-Yudjá do tronco Tupi), além de falantes de línguas de outras famílias, como Aruaque (Kustenau e Waujá) e Karib (Bakairi) e de línguas isoladas (Trumai).120 Com as expedições seguintes, o número de povos citados pelos americanistas aumentou consideravelmente. Muitos dos apontamentos certeiros de von den Steinen a respeito de alguns povos se tornaram referência no estudo de determinados povos indígenas, como grafismo e mitologia Bakairi (ao qual há um capítulo todo dedicado em Durch Central-Brasilien), xamanismo e relações interespécie entre os Juruna e as relações interétnicas. Assim, Karl von den Steinen pode ser considerado o pioneiro da etnologia indígena do Brasil.

No entanto, além das descrições de determinados povos e de aportes específicos ao estudo de alguns deles, as suas maiores contribuições ocorreram no âmbito da linguística. Como mencionado, do ponto de vista etnológico e linguístico, suas pesquisas tinham, basicamente, três objetivos específicos: estabelecer contato com povos em isolamento, classificar as línguas em grupos linguísticos e descobrir o “lar primordial” (Urheimat) dos povos de língua Karib. Antes dele, além de Martius apenas Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) se dedicara enfaticamente ao estudo das línguas indígenas. Von den Steinen levou para a Alemanha vocabulário dos grupos pelos quais passou e a ele acrescentou dados provenientes da literatura primária e secundária. Esses dados se avolumaram a ponto de ele afirmar espirituosamente que “se a localização da antiga Babilônia fosse desconhecida, ela deveria ser procurada às margens do Amazonas”.121

A classificação das línguas ocorreu através do método comparativo. Os “conceitos centrais” para essa comparação foram as partes do corpo e os fenômenos da natureza, reunidos em grandes tabelas. Em seguida ele buscava por semelhanças fonéticas entre as línguas e a partir da correspondência de termos ele estabeleceu relações entre as línguas, enquadrando-as em grupos linguísticos. Dessa forma, ele comparou 18 palavras oriundas de 46 grupos indígenas. Ele considerou que a apreensão dos vocabulários indígenas poderia ser influenciada

120 Apenas na década de 1920 os Bakairi emigraram do Xingu. 121 VON DEN STEINEN, 1886, p. 286.

pela língua materna do pesquisador (ou pela língua em que a obra à qual ele teve acesso) e que por isso haveria uma espécie de erro tolerável na grafia das palavras em línguas indígenas.

Um exemplo extremamente simplificado de sua gigante tabela que contém 828 termos é o que segue:

Grupo Região Autor Idioma da

fonte

“língua” “dente” “olho” Kustenau Rio Xingu K.v.d.Steinen alemão nunei Nuté Nutitai Paresí Mato

Grosso

Bartolomé Bossi

espanhol nunisu Naiculi nuduro

Kaixana Rio Tonantins

Johann Spix alemão no-nené no-é nô-hlo

Baniwa Rio Içana Alfred Wallace

alemão (nu)ni-ñe (no)yei- hei

nu(iti)

Apesar da comparação detalhada, precisa e exaustiva, o método não estava prevenido de cometer equívocos, uma vez que se apoiava também no trabalho de terceiros. Spix, por exemplo, considerou que os Kanamari fossem de língua Aruaque, quando na verdade são Katukina. Apesar disso, o americanista foi capaz não apenas de atribuir corretamente a classificação dos Kustenau, mas propor a base de investigação sobre a qual se sustentaria durante meio século a pesquisa no Alto Xingu, a saber, a caracterização étnico-linguística dos povos xinguanos.

O trabalho de campo também serviu para solucionar várias questões etnográfico- linguísticas de sua época. Ao demonstrar que a língua Bakairi é puramente Karib, sem influência Tupi, ele refutou a tese de Martius que no desenvolvimento das línguas indígenas o Karib tenha se originado no tronco Tupi. Assim, ele também desmontou a existência de outro tronco linguístico, chamado por Martius de “Guck” ou “Coco”. Von den Steinen percebeu que em várias línguas Aruaque, o prefixo “nu” acompanhava os substantivos. Aos grupos cuja língua apresentam essa particularidade ele chamou de tribos Nu (Nu-Stämme) ou Nu-Aruaque. Cruzando os dados linguísticos e a localização dos grupos indígenas, ele determinou que o centro das “tribos Nu” estava na região norte dos afluentes do rio Amazonas. A ideia da existência de uma ramificação na família Aruaque – as “tribos Nu” – seria fonte de controvérsias dentre os próprios americanistas alemães e não sobreviveu até os dias atuais.

O trabalho de campo de Karl von den Steinen não apenas ofereceu idiomas isolados nunca antes estudados, mas uma área de pesquisa extremamente fértil propícia para a sistematização, porque através da etnografia era possível ter acesso às próprias fontes sem necessidade de investigação arqueológica e com carga consideravelmente menor de análise linguística. Então, ele observou no Brasil Central um problema empírico semelhante àquele ao qual linguistas europeus se dedicaram ao decorrer do século XIX. Em contrapartida, von den Steinen atestava a validade da metodologia da linguística comparada para determinar as transformações da linguagem e acompanhar os fluxos migratórios. Assim, ele colocava o Xingu na rota de análise da linguística. O Xingu fornecia problemas geográficos, etnológicos, antropológicos e linguísticos, reiterando a ideia de que a América do Sul não era apenas uma

terra incognita, mas uma terra-para-a-ciência. Então, através da comparação de vocábulos e

calculando a relação entre migração e transformação da linguagem, von den Steinen buscou pelo lar primordial dos Karibes no América do Sul, em que a protolíngua Karib (ou língua matriz, como quer o etnólogo teuto-brasileiro Egon Schaden) era falada.122 O resultado foi a confecção de uma mapa étnico-linguístico.

Ainda que o método linguístico-histórico empregado por von den Steinen se sustentasse por uma precisão científica característica do século XIX, Schaden apontou que nos dias atuais a sua técnica de pesquisa é considerada incompleta e obsoleta.123 Apesar disso, muitos de seus resultados etnológicos e linguísticos foram confirmados por pesquisas posteriores. Por meio dessa metodologia, o americanista conseguiu transformar os dados empíricos sobre as línguas indígenas em fatos científicos, no sentido empregado por Bruno Latour e Steeve Woolgar, ou seja, como construção social resultado de processos empregados pelos cientistas para criar sentido para suas observações.124

Não obstante o pioneirismo de von den Steinen – tanto em cada esfera científica em particular, quanto na sua articulação – seu mapa se insere ainda em uma certa tradição historicamente datada ao reproduzir o binômio Tupi-Tapuia. De acordo com o grande historiador e antropólogo John Monteiro, a divisão entre Tupi e Tapuia foi promovida ainda no século XVI a partir dos relatos de Gabriel Soares de Sousa (décadas de 1540-1591). Os Tapuia

122 SCHADEN, Egon. “Pioneiros alemães na exploração etnológica do Alto Xingu”. In: COELHO, Vera Penteado

(Org). Karl von den Steinen: Um Século de Antropologia no Xingu. São Paulo: Edusp, 1993, p. 114.

123 SCHADEN, 1993, p. 114.

124 LATOUR, Bruno; WOOLGAR, Steve. Laboratory Life. The construction of scientific facts. Princeton:

foram descritos a partir de relatos de informantes Tupi e assim foram caracterizados de forma bastante imprecisacomo a “antítese da sociedade Tupinambá”, seus inimigos.125 No século XIX historiadores como Martius e Varnhagen retomaram a leitura de Gabriel Soares de Sousa. Martius tinha uma visão extremamente pessimista sobre as sociedades indígenas. Ele afirmava que as populações indígenas contemporâneas eram os resquícios tristes de uma civilização outrora gloriosa. Monteiro revela que Martius era simpático às interpretações setecentistas postulavam a decadência dos índios e ele mesmo as considerava povos que deixariam de existir em um futuro próximo.126

Varnhagen transformou a visão negativa sobre a situação contemporânea dos índios em aversão aos ameríndios. Em decorrência da releitura de Sousa e da avaliação dos grupos indígenas de sua época, as imagens dos Tapuia com outros grupos se mesclaram. Segundo Monteiro, “Varnhagen e outros historiadores traduziam as lições da história num discurso que condenava os grupos indígenas contemporâneos, sobretudo os Botocudo no leste, os Kaingang no sul e vários grupos Jê do Brasil central”.127 O próprio von den Steinen confirmou que os Conquistadores acreditavam na existência de duas “nacionalidades” no século XVI, os Tupi e os Tapuia, sendo que os índios dessa nacionalidade eram, na verdade, “os autóctones selvagens” culturalmente inferiores: os Goitacá e os Botocudo.128 Na definição histórico-linguístico- etnográfica de von den Steinen, os Tapuio são “aborígenes do Brasil Central e Ocidental”, aos quais pertencem os Goitacá, os Botocudo e os Jês. Assim, apesar das inúmeras críticas do americanista alemão aos intelectuais que o antecederam, sobretudo Martius, ele contribuiu para perpetuar a existência dessa nomenclatura genérica.

Em todo caso, sua abordagem linguística dialoga diretamente com os problemas da linguística do século XIX e com toda a tradição etnológica alemã, que aponta até Leibniz. Pois foi com o célebre polímata que se iniciou o interesse linguístico-etnológico por povos extraeuropeus, e a metodologia que cruzava etnografia, história e linguística. Neste sentido, já na primeira expedição ocorreu o importante movimento de deslocar para o Brasil a atenção da

Völkerkunde alemã, que fora construída sobre dois séculos de conhecimentos.

125 MONTEIRO, John Manuel. Tupis, Tapuias e Historiadores. Estudos de História Indígena e do Indigenismo.

Tese de livre-docência, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 2001, p. 19.

126 MONTEIRO, 2001, p. 27. 127 MONTEIRO, 2001, p. 30.

Assim, por meio da determinação de que os Bakairi falam uma língua puramente Karib, ele constatou que não existe relação, ou “parentesco” (Verwandtschaft) entre Karib e Tupi. As Guianas teriam a maior aglomeração de falantes de Karib, e por meio do